As gay, as bi, as trans e as sapatão, tão tudo organizada pra fazer revolução!, por Eduardo Leal Cunha

Por Eduardo Leal Cunha

Do blog Psicanalistas Pela Democracia

As gay, as bi, as trans e as sapatão, tão tudo organizada pra fazer revolução. Com as puta!

Que as questões de sexo e gênero e de suas dissidências ocupam atualmente o centro da cena política no Brasil me parece uma evidência incontornável, como nos mostram os recentes empreendimentos repressivos da nossa neodireita contra exposições, museus, corpos nus e a vinda de Judith Butler ao Brasil. Falta, contudo, explorar todas as múltiplas dimensões, impactos, implicações e não-ditos que sustentam esse violento recrudescimento da moral sexual civilizada (mesmo que nesse momento de contrarreforma ela nos pareça bem pouco civilizada).

Tampouco estamos dispensados de localizar o lugar estratégico que, como psicanalistas, ocupamos nesse campo de batalha organizado em torno dos corpos e dos seus destinos.

Em recentes declarações publicadas no Brasil, Butler[1] tem insistido no vínculo entre o combate à discriminação, às segregações de qualquer ordem, e a sustentação de um regime político verdadeiramente democrático. Também Nancy Fraser[2], há alguns anos vem tratando da indissociabilidade entre lutas por reconhecimento e lutas por redistribuição das riquezas e sustentado que os embates identitários –  por mais estratégicos que pareçam e mesmo por mais bem-sucedidos que sejam – não darão conta sozinhos da transformação social, econômica e política necessária à superação das desigualdades, sejam estas referidas a categorias tão diversas quanto gênero, raça, classe ou orientação sexual.

Nesse contexto, o grito de guerra entoado por transvestigêneres[3] em manifestações no Rio de Janeiro nos anuncia não apenas a força política potencialmente transformadora das dissidências de sexo e de gênero, mas a necessidade urgente de não deixar que tal força se reduza à conquista localizada de direitos ainda submetidos à lógica biopolítica neoliberal. Ou seja, se pensamos que os dissidentes de sexo e de gênero têm potencial revolucionário e que sua inclusão efetiva na sociedade como cidadãos de plenos direitos terá efeitos positivos no combate a outras formas de discriminação contra populações e grupos diversos, talvez devamos ter também em mente que o horizonte necessário da luta pela efetiva liberdade dessas vidas às quais muitas vezes se nega a existência, bem como de outras vidas menosprezadas e subalternas, é um projeto radical de transformação da sociedade e de suas estruturas e, portanto, de transformação dos próprios modos de funcionamento do que entendemos como democracia.

Ao mesmo tempo, nos últimos anos e no Brasil muito especialmente nos últimos meses, parece relativamente fácil perceber o caráter estratégico dos movimentos conservadores que privilegiam uma ação política regulada não apenas por uma lógica do indivíduo proprietário e gestor de si mesmo mas enunciada preferencialmente por uma semântica da vida íntima, como nos mostra em geral o privilégio dado às emoções individuais na descrição de acontecimentos de impacto político e social e nos mostrou também, de modo mais específico, a votação do impedimento da presidente Dilma Roussef, quando afetos e laços familiares constituíram o núcleo da justificativa de voto dos nossos ilustres parlamentares, como se a tomada de decisão quanto ao destino de um país, testemunhada por milhões de eleitores, não fosse muito diferente da celebração de um aniversário ou de um casamento no espaço sagrado e inviolável do lar da família tradicional brasileira.

Mas talvez não seja ainda tão claro, por outro lado, o quanto o íntimo e sua afirmação podem se constituir em uma força política potente. É isso que nos propõe Paul B. Preciado[4] com sua sexopolítica: a radicalização da subversão entre público e privado que até agora só a direita parece ter conseguido explorar enquanto muitos de nós preferem investir na nostalgia da lei e da comunidade[5].

Apresentada como forma política da resistência do que chama multidões queer, a sexopolítica confere valor político à esfera da vida íntima, projetando a intimidade na esfera pública e a enunciando politica e eticamente; se contrapondo ao que fazem hoje os meios de comunicação de massa e a indústria cultural, que procuram, de modo inverso, ler constantemente o social e o político através da intimidade individual.

Fazer sexopolítica é ainda fazer com que o corpo, lócus de poder e de normalização, seja também o campo das lutas de resistência através das quais se busca empoderamento, a partir, não custa repetir, da reapropriação discursiva e da subversão dos saberes ou ainda da reapropriação da competência – hoje exclusiva dos dispositivos médico-jurídicos – sobre a configuração e usufruto dos corpos sexuados.

Imagem da internet

Se, como nos diz Agamben[6], os corpos-organismos, reduzidos à sua vida nua, sem qualidades, se converteram no elemento central do cálculo político contemporâneo, a sexopolítica propõe a qualificação política dos corpos a partir mesmo da sua anormalidade, daquilo que poderia transformá-los em vidas indignas de serem vividas, aquelas que se pode deixar a deriva para que morram ou sejam mortos, como as travestis assassinadas cotidianamente no Brasil ou os refugiados que poluem o mediterrâneo civilizado.

Mas se esse é o quadro geral, as gay, as bi, sapatão, putas e sobretudo as pessoas trans tem lições específicas a nos dar nesse campo de batalha biopolítico. Lições preciosas sobre os vínculos cada vez mais estreitos entre luta política, processos de subjetivação e afetos corporificados. Destacarei aqui três dessas lições que me parecem as mais urgentes.

A primeira delas diz respeito ao embate em torno da produção da verdade sobre o corpo próprio, afinal quando uma pessoa trans afirma ao médico que o genital é insuficiente para enunciar a verdade do seu corpo e do seu lugar na sociedade, ela está desafiando o poder soberano que o saber médico pretende ter sobre esse corpo. Ela está afirmando o direito de gerir e enunciar o seu corpo vivo sem se submeter ao discurso competente e ao dispositivo médico-jurídico que regula esse corpo. Está afirmando ainda o direito singular sobre o uso político-afetivo do próprio corpo, incluindo a possibilidade de  transformá-lo, colocando a seu serviço a mesma tecnologia que pretende normalizar esse corpo e impor limites à sua existência.

A segunda lição diz respeito à colocação em cena de um trabalho permanente de construção de si a partir da auto-enunciação, trabalho de memória, de rememoração e de experimentação constante de novas e distintas formas de enunciar a existência individual e coletiva, e portanto de vivê-las. Trabalho de memória que requer o testemunho do outro e assim lança um apelo à formação de coletivos sustentados em novos ideais e formas outras de viver junto.

Por fim, a última lição diz respeito particularmente a nós, psicanalistas. Porque se a política é hoje indissociável da experiência subjetiva, dos afetos e dos corpos, esse é o nosso campo próprio de ação. Terreno privilegiado para que possamos combater bons combates.

Se, como sustenta de modo bastante rigoroso e provocador Eva Illouz[7], a psicanálise contribuiu ao longo de sua história, em particular com sua difusão na cultura norte-americana, para a circunscrição da vida social a uma semântica da intimidade, dos afetos e do sofrimento, talvez seja este o momento de subverter esse movimento.

Ao longo das últimas décadas as psicoterapias, inclusive a psicanálise, foram estimuladas a converter-se em ferramentas de regulação identitária e em bastiões de afirmação da individualidade. Talvez nos caiba agora mostrar como a transformação dos laços sociais também pode ter aí um ponto de apoio absolutamente estratégico, na medida em que se faça do espaço transferencial um território privilegiado da luta micropolítica.

Para tanto, o que se espera é a produção, em um setting analítico ampliado, de campos de experimentação ética abertos à produção de novos inteligíveis que sustentem formas outras de existência, de construção subjetiva e de relação com o outro, produzindo assim, por exemplo, um deslocamento entre o empreendimento identitário unificador e a multiplicação de identificações contingentes.

Pois enquanto alguns analistas, provavelmente de espírito mais conservador, ainda sonham com o prestígio social da psicanálise e se esforçam para a sustentação de alianças com os dispositivos médico-jurídicos hegemônicos, o que – acreditam – lhes permitirá a preservação de certo espaço no mercado da medicalização e normalização das existências, a outros analistas, àqueles que ainda preferem o desconforto da resistência às benesses pequeno-burguesas das cercanias do poder, cabe a tarefa urgente da transformação da clínica – inclusive aquela que se instala para além dos consultórios – em campo permanente de experimentação de novas vidas, de novas formas de estar no mundo.

Lembrando que só conseguiremos realizar essa tarefa se ficarmos de ouvidos atentos a novas falas, outras palavras e vozes antes silenciadas. Ou seja, precisamos reconhecer o alcance ético da associação livre e da atenção flutuante, tomando-as como estratégias fundamentais de abertura ao ininteligível e ao indeterminado e tendo em vista seu alcance político, materializado na produção de novas inteligibilidades e existências. É urgente que orientemos nossa clínica e nossa teoria para a ampliação do humano e não para a vigilância e controle das fronteiras da humanidade,  o que acaba por criar monstros tão imaginários quanto reais.

Nesse sentido, as sexualidades e os gêneros dissidentes, bem como os discursos que procuram lhes dar sustentação no campo do pensamento, como a teoria queer, não apenas nos oferecem novos significantes e nos mostram outras vidas vivíveis, elas funcionam ainda como analisadores da própria psicanálise e de qualquer outra prática de transformação subjetiva, sempre delicadamente equilibradas entre o assujeitamento e a subjetivação.

Pois essas dissidências se materializam em práticas e discursos, atos cotidianos, ao mesmo tempo individuais e coletivos, que acabam por sabotar qualquer tentação universalista e totalizante, agindo como alertas constantes e audíveis contra a sedução pela norma e pelo pensamento único.

Atos corporificados que produzem o encontro potente entre pulsão e política, pois como nos disse ainda Indianara em sua campanha para câmara de vereadores do Rio de Janeiro na última eleição municipal: “Não temos panfletos, mas temos corpos que são panfletos, corpos como panfletos, corpos como panfletos, corpos como panfletos…”

Referências

[1] Ver, por exemplo, artigo publicado na folha em 19/11/2017, no caderno Ilustríssima: “Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil.

[2] Ver, por exemplo: Fraser, Nancy (2002) A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de ciências sociais 63 p.7-20 ; Fraser, Nancy (2006) Da redistribuição ao reconhecimento: dilemas da justiça numa era pós-socialista. Cadernos de Campo 14/15 p.231-239

[3] Transvestigêneres é o termo cunhado por Indianara Siqueira para dar conta da enunciação solidária de formas diversas de transgressão das fronteiras de gênero e de subversão da lógica heterocisnormativa.

[4] Preciado, Beatriz (2011) Multidões queer: notas para uma política dos anormais. Revista Estudos Feministas 19(1) Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000100002 Acesso em 18/04/2016.

[5] Sobre isso ver os comentários de: Lagasnerie, Geoffroy (2013) A última lição de Foucault. São Paulo: Três estrelas.

[6] Agamben, Giorgio (2007) Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG

[7] Illouz, Eva (2011) O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar.

Sobre o autor: Eduardo Leal Cunha é psicólogo e psicanalista. Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ). Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador Associado do Centre de Recherches Psychanalyse Médicine et Société da Universidade de Paris VII – Diderot

Redação

3 Comentários

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  1. Muita conversa para pouco resultado.

    1)      A humanidade é uma só.

    2)      Todos têm o direito a igualdade em todos os sentidos.

    3)      Ninguém deve se meter nas orientações pessoais de cada um.

    Se for criado uma organização de Estado que siga a risca estes três princípios e além disto garantam estes, os problemas dos LGTBs, dos negros e das mulheres estarão resolvidos.

    Uma coisa é certa, dentro da lógica de mercado, do sistema capitalista NUNCA estes três princípios serão seguidos.

    Só dando um exemplo: Por que muito dos transexuais tem que se prostituir para poder sobreviver? Simplesmente porque quem emprega não os empregam. O resto tudo é um longo papo que não vai ao cerne da questão.

    Todo o artigo poderia ficar restrito a uma só frase:

    “Em recentes declarações publicadas no Brasil, Butler[1] tem insistido no vínculo entre o combate à discriminação, às segregações de qualquer ordem, e a sustentação de um regime político verdadeiramente democrático.”

    Se o artigo tivesse partido desta frase em diante seria o mais importante, porém enrola muito e deixa o substantivo encoberto por vários adjetivos. Lendo bem, mas lendo bem mesmo se encherga as verdadeiras razões, ou seja, o texto não esconde o principal simplesmente encobre-o.

    Posso até ser acusado de reducionista, mas não aceito longos textos em que há boas motivações mas que ficam muito discretamente escondidas, pode ser um erro meu!

  2. Que revolução?
    Só se for de confirmação libidinal ou de abolição heterossexual! Não foi definido, o que é revolução, a qual num contexto de luta social no Brasil é tida por socialista. Contudo, em termos freudianos, não sendo o homossexualismo doença nem natural, o intenso emergir do homossexualismo está ligado a crise da família – abandono da família pelo pai e mulher com Labor fora de casa -, além do hedonismo capitalista toyotista, exposição de imensa quantidade de mercadorias. O texto é fraco, bem arrumada hoje para parecer ter consistência.

  3. A distração da esquerda

    A distração da esquerda brasileira com essas questões secundárias de cunho íntimo foi um dos principais fatores que tornou o golpe o passeio que foi pra direita.

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