O desmonte das farsas do regime militar, por Zuenir Ventura

Do O Globo

Desmontando farsas
 
Episódios desonrosos cuja memória os militares tentam apagar voltam à tona, como tem acontecido ultimamente
 
Zuenir Ventura

Por meio de um mecanismo interior conhecido como “retorno do recalcado”, a psicanálise explica que não adianta reprimir as lembranças dos traumas antigos: um dia elas ressurgem, e com mais força. O passado sempre bate à porta. Isso acontece na esfera individual, mas também no plano da história coletiva. Por exemplo, episódios desonrosos cuja memória os militares tentam apagar voltam à tona, como tem acontecido ultimamente. Ora por meio da confissão espontânea de um culpado perseguido pela consciência. Ora pela revelação através de uma reconstituição jornalística. Ora por uma exposição retrospectiva ou uma descoberta feita por investigação policial.

O mais recente “retorno” tem a ver com um dos casos mais nebulosos do regime militar: a bomba que explodiu por acidente no colo de um sargento que a conduzia, junto com um tenente, para ser lançada no Riocentro durante um show com 20 mil espectadores, em 1981. O atentado seria atribuído a “grupos subversivos” e visava a interromper o processo de abertura política. A versão oficial apresentou logo os dois militares como vítimas, não como autores frustrados do atentado (o sargento morreu na hora e o tenente saiu ferido e, depois, foi promovido). Na edição de domingo, os repórteres Chico Otávio e Juliana Castro revelaram que o Ministério Público Federal desmascarou a farsa e está denunciando um ex-delegado e cinco militares reformados, entre os quais três generais (para um deles está sendo pedida pena de 36 anos de prisão). Uma das provas inéditas é o depoimento do major Divany Barros, que contou ter ido ao local da explosão para sumir com os indícios da participação dos seus colegas.

O ex-delegado é Claudio Guerra, o mesmo que em 2012, no livro “Memórias de uma guerra suja”, de Marcelo Netto e Rogério Medeiros, confessou ter incinerado 11 corpos de militantes numa usina de cana-de-açúcar. Em outro capítulo dessa sinistra série, o coronel reformado Raymundo Ronaldo Campos admitiu para a Comissão da Verdade ter participado do que chamou de “teatro montado” para mascarar a execução do então deputado federal Rubens Paiva. A versão das Forças Armadas, de que ele fora sequestrado por guerrilheiros, é mantida, apesar de desmentida por outro personagem do “teatro”, o tenente-médico Amílcar Lobo, que em 1971 atendeu Paiva no DOI-Codi, onde servia. O médico afirmou que o paciente morreu em consequência de torturas sofridas na prisão. Se não bastasse, em 2013, a viúva de Lobo, Maria Helena Gomes de Souza, compareceu àquela mesma Comissão para informar que, pouco antes de morrer, o marido a encarregara de, em seu nome, pedir perdão aos torturados que ele atendeu.

O mais patético nesse inútil esforço de sustentar as farsas é que elas estão sendo desmoralizadas não mais pelas vítimas, mas pelos próprios algozes.

 

Redação

7 Comentários

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    1. …E um punhado de dementes

      …E um punhado de dementes defendendo direitos em cuba; em cuba. Serão meros teleguiados ou participaram da escrotidão e querem escamoteá-la?

  1. Pegando o mote da

    Pegando o mote da psicanbálise, enquanto não houver a ab-reação ao trauma da ditadura – julgamento/condenação – a sociedade brasileira vai ter que conviver ainda com muitos xistes; atos-falhos; fobias; somatizações dos sintomas; ansiedades….

    Os conflitos passados mal resolvidos levam ao sujeito atribulações emocionais de toda ordem! (ou desordem)

    Fui… 

  2. Atentado do Rio Centro

    Você sabe, Nassif, que o capitão-terrorista Wilson Machado chegou a coronel? E que, em seus anos finais na ativa, era coordenador de disciplina do Colégio Militar de Brasília? Da disciplina de História!

    Sabe V., Nassif, que nos colégios militares Brasil afora, nenhum livro escolar de História do Brasil, desses que os outros estudantes usam, é adotado? Porque TODOS  se referem ao episódio de 1964 como GOLPE.

     

  3. Jornalista lembra em carta aberta a morte de seu filho
    http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Jornalista-lembra-em-carta-aberta-a-morte-de-seu-filho/4/30295
      > > Jornalista lembra em carta aberta a morte de seu filho19/02/2014 – Copyleft

    Jornalista lembra em carta aberta a morte de seu filho

    Em carta aberta divulgada nas redes sociais, o jornalista Dermi Azevedo, colunista da Carta Maior, lembrou ontem o primeiro ano da morte do seu filho.

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    Dermi Azevedo Carlos Alexandre Azevedo, no colo dos pais (Arquivo pessoal)

     

    Carta ao meu filho

    Caro Carlos Alexandre Azevedo (Cacá)

    Meu querido filho,

    Bom dia !

    Faz hoje exatamente um ano que você partiu para outra vida. Como aconteceu com muitas outras crianças, você foi uma das vítimas da cruel e sanguinária ditadura civil-militar de 19648. Com apenas um e ano oito meses, você foi submetido a torturas pela “equipe” do delegado Josecyr  Cuoco, subordinado ao  delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais violentos esbirros da história contemporânea.

    Já no sofá da pequena casa em que morávamos no bairro de Campo Belo, na zona sul paulistana, os investigadores da repressão quebraram os seus dentinhos; mais tarde, você foi submetido a novos vexames na sede do DEOPS. Em seguida, na madrugada de 14 de janeiro de 1974, você foi levado a São Bernardo do Campo, onde moravam seus avós Carlos e Joana. Eles foram acordados  com o barulho dos agentes que jogaram você no piso da sala…

    Toda a sua vida foi marcada por esses acontecimentos. Quando você, anos mais tarde, tomou conhecimento do que viveu, você leu muito e estudou a história da repressão fascista.  Em entrevista à repórter Solange Azevedo, da ISTO É,  você sussurrou:  “Minha família nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a ditadura… Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil…”.

    É isto mesmo, meu filho. Ainda há muita gente que não acredita que milhares de brasileiros e de brasileiras, de estrangeiros e de estrangeiras que viviam no Brasil, dedicados aos mais oprimidos e excluídos, tenham sido perseguidos e esmagados pela ditadura…”

    Ainda há cidadãos, fardados ou não, no Brasil e na América Latina, que praticam e legitimam a tortura…

    Definitivamente marcado pela dor…por sua dor e pelo sofrimento (inenarrável ) de sua mãe e de seus irmãos, você decidiu partir…

    Cabe a mim, seu pai, a tarefa quase apenas de compartilhar a narração do seu calvário, de denunciar – como jornalista – os crimes da ditadura e de lutar para que dores e agonias, como as que você viveu, nunca mais aconteçam…

    Do seu pai

    Dermi Azevedo

     

    Créditos da foto: Carlos Alexandre Azevedo, no colo dos pais (Arquivo pessoal)

     

  4. segredos de polichinelo

    Desmontar as farsas é revelar segredos de polichinelo. A questão que efetivamente  importa é o que será feito a partir desses fatos.

    No mais, é o seguinte: do governo petista – avesso a confrontos que extrapolem as enfadonhas arengas eleitorais – só se pode esperar um cala-boca em dinheiro para quem foi torturado e para descendentes de quem foi assassinado.

    É isso, só isso e nada além disso.

  5. ‘Forças Armadas devem um pedido de perdão à sociedade brasileira

    ‘Forças Armadas devem um pedido de perdão à sociedade brasileira’

    Em entrevista à Carta Maior, Rosa Cardoso, integrante da Comissão da Verdade, fala sobre os trabalhos da comissão que entrega relatório final em dezembro.

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    Dario Pignotti – @DarioPignotti Arquivo

     

    Dizem que Rosa Cardoso está entre as pessoas a quem Dilma Rousseff escuta com  mais atenção quando necessita de uma opinião sobre Direitos Humanos. A presidenta sabe da lealdade de sua advogada defensora durante a ditadura a quem designou como integrante da Comissão da Verdade que em dezembro apresentará seu informe final. A doutora Cardoso não desperdiça o tempo: trabalha a pleno vapor para concluir o relatório sobre os crimes da ditadura, que chama de “fábrica” de mentiras, instalada há 50 anos com a derrubada do presidente João Goulart.

    Apesar de sua agenda saturada de compromissos, Rosa conversou durante uma hora com a Carta Maior, período no qual não evitou nenhum tema, abordando todos de um modo direto, como quando, por exemplo, se referiu à atitude omissa dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica frente aos delitos perpetrados por seus colegas de armas nos anos de chumbo.

    “Primeiro quero dizer que até hoje as Forças Armadas devem um pedido de perdão à sociedade brasileira, com o que estariam assumindo uma posição civilizada e democrática, que é, afinal de contas, o que se espera dos militares no século 21. Lamentavelmente, até agora, não recebemos nenhum sinal, nenhuma mensagem, que nos indique que haja algum desejo, por parte dos militares, de pedir desculpas. Assim como a Rede Globo, respondendo a motivos diversos e oportunistas, inclusive a razões de mercado, fez uma autocrítica (sobre sua cumplicidade com os militares), é preciso que as Forças Armadas façam uma autocrítica política sobre seu comportamento”.

    Ela prossegue:

    “Até hoje os militares escondem o que ocorreu, nas escolas militares segue se estudando uma versão fantasiosa do que aconteceu. Chama a atenção a capacidade que têm de fabricar histórias e de mantê-las ao longo do tempo. Devem deixar de dizer coisas inverossímeis. Eles continuam com a farsa do suicídio de Vladimir Herzog e a versão absurda de que Rubens Paiva morreu em um enfrentamento. A Constituição de 46 fez com que as Forças Armadas assumissem um papel como poder moderador, uma visão que ainda perdura na corporação. Volta e meia algum general enuncia essa ideia. O general Leônidas Pires ainda repete que as Forças Armadas não deveriam estar submetidas ao poder civil”.

    Anistia, Barbosa e STF

    Há cerca de um ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, disse a correspondentes estrangeiros que era a favor que, em algum momento, fossem revisados os alcances da Lei da Anistia, um assunto sobre o qual houve posições divergentes dentro da própria Comissão da Verdade. Rosa Cardoso avalia:

    “A mudança de posição do STF sobre a auto-anistia vai depender muito da mobilização da sociedade. Se a mobilização for importante, isso pode contribuir para que haja uma mudança de posição dos ministros. Há ministros sensíveis à opinião pública. Em minha opinião, essa mobilização poderá ocorrer a partir da apresentação do informe da Comissão que ocorrerá em dezembro. Não sei se o STF vai dar esse passo sobre a auto-anistia em 2014, ano do cinquentenário do golpe. Talvez dê, talvez não dê. Mas não considero adequado que, neste momento, os integrantes da Comissão da Verdade iniciem uma luta contra a auto-anistia no STF. Mas creio que, necessariamente, dentro das considerações finais de nosso relatório, deve se recomendar o cumprimento de uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual somos obrigados a cumprir, que questiona essa auto-anistia”.

    A advogada prossegue:

    “A Corte Interamericana se pronunciou sobre o Araguaia, dizendo que o Brasil tem que punir os crimes de lesa humanidade que são imprescritíveis, como a tortura, a desaparição e o ocultamento de cadáver. Os trabalhos da Comissão terminam em dezembro. Ia ser até maio. Nosso desafio é enfrentar todas as tarefas e realiza-las, principalmente escutar as vítimas, dar-lhes voz, escutar todas as pessoas interessadas, ver todo o material nos arquivos estaduais e no Arquivo Nacional. É preciso trabalhar na elaboração das recomendações enlaçando o passado e o presente, a revisão dos currículos das escolas públicas, das escolas militares, das escolas de polícia. Temos que fazer audiências exemplares porque não podemos cumprir todos os casos dos torturadores. Temos que aprofundar a investigação sobre a Casa da Morte de Petrópolis, que era um centro de extermínio. Talvez tenha sido o mais importante centro de extermínio. Temos que fazer uma audiência na Casa da Morte, uma audiência no Araguaia, uma audiência sobre o Riocentro, que é o exemplo mais claro das farsas montadas”.

    Washington, 1964: converter o Brasil e um Vietnã

    Rosa Cardoso falou também sobre o golpe de 1964:

    “O golpe foi realizado pela elite militar, não por todos os militares, mas muitos dos que participaram da deposição do presidente Goulart em 64 haviam participado em outras conspirações que serviram como ensaio. Por exemplo, a que se fez contra Getúlio Vargas. É preciso lembrar que Getúlio se suicidou para evitar um golpe. Mais tarde, os militares quiseram impedir que Juscelino assumisse o governo. Houve outra tentativa de golpe quando se quis impedir que Goulart assumisse em 1961”.

    “Na Comissão da Verdade, estamos revisitando o golpe. É importante a reconstrução desde uma ótica própria, revisar essa ditadura tão longa que deixou tantas marcas profundas. A recente liberação de documentos e a possibilidade de reconstruir a história oral ouvindo as vítimas permitem que abordemos outros ângulos. Cada vez fica mais evidente a participação no golpe a partir da penetração norte-americana desde o final da Segunda Guerra, compreender a visão estratégica que os Estados Unidos tinham acerca do Brasil e o que queriam do Brasil. Desde os anos 50, os Estados Unidos exigiam posições e pressionavam os governos brasileiros para que se alinhassem a Washington. Os EUA chegaram a planejar uma guerra civil, como a das duas Coreias, ou a do Vietnã, contando com o apoio de alguns membros das forças de segurança. Interessava a eles dividir o país. Isso quebraria a hegemonia do Brasil na América Latina. Chegaram a escolher Minas Gerais como estado independente do resto”.

    Obama e Kissinger

    Rosa Cardoso nos recebeu em um escritório simples, sem adornos ou móveis suntuosos, pertencente à Presidência da República. Ela desmente a ideia, propalada na imprensa tradicional, de que a ditadura é uma peça do passado e, como exemplo de sua atualidade, conta que o governo de Barack Obama não prestou apoio à Comissão da Verdade, seguramente pressionado por grupos de interesse e ex-líderes como Henry Kissinger, de larga e suspeita amizade com o chanceler Azeredo da Silveira (1974-1979) e, sobretudo, fiador do Plano Condor.

    “Nós pedimos formalmente documentos aos Estados Unidos, por meio do Itamaraty, no início de nossa atividade como Comissão da Verdade, e até hoje não recebemos nenhuma resposta. Pensamos que na visita da presidenta Dilma (prevista para outubro do ano passado) seria possível apresentar outra vez o pedido, creio a presidenta estaria de acordo em respaldar essa solicitação, mas a viagem foi suspensa em protesto contra a espionagem dos Estados Unidos. Seja como for, creio que em alguns meses será propício pedir novamente documentos aos EUA e seja possível se chegar a um entendimento para que o próximo governo possa retomar esse requerimento também”.

    “Você pergunta por que é tão demorada a liberação de papeis sobre a ditadura brasileira, que é a caixa preta do período do Condor. Essa talvez seja uma manobra protelatória para proteger personagens vivos. É uma suposição, mas é uma suposição racional imaginar que se proteja personagens como Kissinger. É claro que isso é possível. Nós temos documentos que não deixam dúvida sobre isso (a cumplicidade de Kissinger com o Plano Condor). Até agora conhecemos muito poucos documentos sobre a operação Condor, resta muito por conhecer sobre a participação de Kissinger nessa rede terrorista. O Plano Condor é o momento mais revelador do terrorismo de estado, em uma plano que revela claramente a índole da ditadura. Seguramente há documentos secretos muito importantes. Tive acesso a alguns papeis publicados por uma professora norte-americana que mostra o quanto Kissinger sabia e estava envolvido”.

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