Paulo Kliass
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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Lula e o melhor para o Brasil, por Paulo Kliass

Não existe razão alguma para que o governo se esforce ao máximo para que o resultado entre receitas e despesas primárias seja igual a zero

Lula e o melhor para o Brasil

por Paulo Kliass

            A intervenção mais recente do Presidente Lula no debate a respeito da política fiscal parece ter o sentido de um reconhecimento, ainda que tardio, dos equívocos que vinham sendo levados à frente pelos dirigentes do Ministério da Fazenda no que se refere ao tema. Em uma entrevista coletiva realizada no dia 27 de outubro, que contou com a presença de profissionais dos principais órgãos de imprensa, o Chefe do Executivo dirimiu qualquer dúvida que ainda pudesse restar quanto à meta do resultado fiscal a ser defendida por seu governo para o exercício de 2024. Naquele café da manhã, ele afirmou que “dificilmente” sua equipe conseguirá cumprir a meta de déficit zero.

            Com toda a elegância e a sensibilidade que o tratamento do tema merece, Lula transmitiu de forma cristalina um puxão de orelha público em Fernando Haddad. Afinal, foi o responsável pela área econômica quem havia criado uma armadilha para o próprio governo ao anunciar, todo orgulhoso e faceiro junto a seus interlocutores no sistema financeiro, que a meta oficial para o ano que vem seria a de zerar o déficit fiscal primário. Uma loucura, aliás! Com seu bom mocismo conhecido e cada vez mais habitual, Haddad afirmava que a meta era ambiciosa, mas necessária. E que o governo iria se empenhar a fundo para assegurar o seu cumprimento. Ele chegou até mesmo a mencionar a hipótese de um pequeno superávit. Um delírio no qual nem mesmo os mais ensandecidos adeptos da Faria Lima chegariam a acreditar.

Puxão de orelha elegante em Haddad.

            Uma situação semelhante havia sido criada logo no início do governo, em janeiro do presente ano, quando o recém nomeado Ministro da Fazenda insistia em colecionar aplausos junto à nata do financismo e garantia não haver recursos no Orçamento para um reajuste real do salário mínimo, tal como havia sido prometido por seu chefe durante a campanha eleitoral. O ex-prefeito de São Paulo mencionava um valor de R$ 1.302, enquanto o reajuste com reposição da inflação deveria levar o piso da remuneração dos trabalhadores para R$ 1.320. Aquele que havia trocado a carreira de professor de filosofia da USP pela meca do financismo representada pelo INSPER relutava em conceder míseros R$ 18 mensais em nome de um doutrinarismo suicida. Pois, naquele momento Lula percebeu imediatamente o risco político e o equívoco da proposta. Assim, entrou na polêmica para anunciar o valor mais elevado a partir de 1º de maio.

            Ocorre que a autonomia concedida ao seu auxiliar para os assuntos da economia terminou por comprometer grande parte da capacidade de o governo apresentar soluções sólidas e robustas para o enfrentamento das imensas dificuldades na seara social e econômica. Assim foi a relutância de Haddad em promover pura e simplesmente a revogação do teto de gastos. Ao vincular o fim da medida à aprovação de uma lei complementar tratando de um Novo Arcabouço Fiscal (NAF), o Ministro criou uma armadilha para o próprio governo de Lula. Nas interlocuções para definir o novo regime das contas públicas, ele se recusou a ouvir as propostas e ponderações do campo de economistas e políticos do campo progressista e desenvolvimentista. Fechou-se em copas nas famosas reuniões exclusivas com o Presidente do Banco Central e com representantes da fina flor do financismo.  

Haddad e a incorporação do financismo liberal.

            O resultado de mais esta incursão da política econômica do terceiro mandato de Lula pelas trilhas do conservadorismo e das receitas de manual da ortodoxia foi o aprofundamento das medidas de austeridade. Como os fundamentos basilares do NAF mantinham a lógica de obtenção de superávit primário e de contenção das despesas orçamentárias não-financeiras a todo custo, as opções de políticas públicas e de construção de um programa nacional de desenvolvimento ficaram igualmente comprometidas, O discurso oficial e já conhecido do ”não temos recursos” se somou às falas dirigidas às elites do sistema financeiro assegurando que as contas fiscais do governo federal seriam zeradas a partir do ano que vem.

            Além disso, tendo em vista a natureza igualmente austera do NAF, dirigentes da área econômica começaram a plantar notícias na imprensa e a oferecer falas públicas onde assumiam claramente a necessidade de eliminar os pisos constitucionais previstos para saúde e educação. Com isso reposicionavam no topo da agenda política do governo Lula 3.0 as propostas que nem Guedes nem a turma neoliberaloide mais exacerbada haviam conseguido emplacar até então. Para um candidato que havia dito que só aceitaria um novo período à frente do Palácio do Planalto se pudesse fazer mais e melhor do que havia feito entre 2003 e 2010, esta autolimitação parecia ser mortal em suas pretensões. Tanto mais quando se leva em conta que ele mesmo havia trazido para o palanque sua intenção de realizar 40 anos em 4.

            Mas a pergunta que não quer calar é: por que esta insistência quase messiânica com uma meta tão irrealista quanto equivocada? Afinal, não existe razão alguma para que o governo se esforce ao máximo para que o resultado entre receitas e despesas primárias seja igual a zero. Esse número pode até ser bonitinho e redondinho, mas assumir com tanta antecedência que ele será o resultado das contas orçamentárias para o final de 2024 é um tremendo tiro no próprio pé. A grande maioria dos países do mundo capitalista mais desenvolvido passam longe de tal façanha. E o próprio Brasil tem apresentado ao longo da última década números que confirmam a tendência oposta. O gráfico abaixo nos demonstra que penas em 2022 as contas primárias foram superavitárias. Nos 9 demais exercícios o resultado apresentou um total de despesas superior às receitas. E nem por isso o País quebrou ou a antessala do apocalipse foi atingida.

Déficit zero é criar armadilha para si mesmo.

            O esforço necessário para promover a reconstrução de tudo aquilo que foi destruído desde o golpe perpetrado contra Dilma Roussef em 2016 não pode ser negligenciado. Recuperar capacidades estatais para implementar políticas públicas e restabelecer o protagonismo do Estado exigem investimentos públicos e programas de despesas governamentais que são a antítese da austeridade sugerida por Haddad. O blábláblá de que tais necessidades seriam solucionadas por meio das “parcerias púbico privadas” (PPPs) não passa uma ilusão liberal ou de pura má fé para defender o avanço do capital privado em searas até então destinadas prioritariamente ao setor público.

            Lula sabe muito bem dos riscos políticos e dos prejuízos econômicos de se manter tal rigidez irracional como sendo o objetivo central de política econômica de seu governo. Tanto essa avaliação é verdadeira que, na referida conversa com jornalistas, seu discurso parecia ter sido influenciado pelos economistas críticos à guinada neoliberal de seu Ministro da Fazenda:

(…) “O que eu posso dizer é que ela não precisa ser zero, o país não precisa disso. Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a começar o ano fazendo corte de bilhões nas obras que são prioritárias para esse País” (…)

(…) “Eu acho que muitas vezes o mercado é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que ele sabe que não vai ser cumprida. E se o Brasil tiver déficit de 0,5%, de 0,25%, o que é? Nada” (…)

            A decisão do Presidente de se envolver mais diretamente com aspectos estratégicos da política econômica pode significar uma mudança na postura registrada até o momento, ou seja, de conceder excessiva autonomia a Haddad neste quesito. Os grandes meios de comunicação, mais uma vez, não perdoaram tal correção de rumo. Criticaram a fala de Lula com grande veemência, ao passo que as forças progressistas e desenvolvimentistas aplaudiram a iniciativa. Esse foi o caso, por exemplo, do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD), que divulgou uma nota elogiando a decisão do chefe de Haddad.

            Não custa relembrar que as decisões a respeito deste e de outros temas da área econômica são de natureza eminentemente política. Não existe nenhum manual de regras e procedimentos rígidos a serem adotados a cada instante. Ao contrário do que dizem os representantes do financismo e de seus porta vozes nos grandes meios de comunicação, a solução para tais questões não é “técnica”, como se a economia política fosse parte do campo do conhecimento das ciências exatas. Basta que os interlocutores de Lula comuniquem a novidade ao relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) no Congresso Nacional, deputado Danilo Fortes (União Brasil – CE). Afinal o próprio parlamentar já tem dado declarações no mesmo sentido de tornar meta mais realista.

Basta mudar a proposta da LDO.

            Desta forma, o texto que havia sido preparado por Haddad deverá ser alterado na votação definitiva da matéria. Manter a proposição inicial seria oferecer ao fisiologismo e às forças conservadoras mais um arsenal para colocar a faca no pescoço do governo mais à frente, ao longo do ano que vem. Vejam só o garrote auto imposto que corria o risco de ser votado, caso Lula não entrasse em cena. Um misto de sincericídio liberal avançado com irresponsabilidade política primária.

(…) “Art. 2º A elaboração e a aprovação do Projeto de Lei Orçamentária de 2024 e a execução da respectiva Lei deverão ser compatíveis com a meta de resultado primário de R$ 0,00 (zero real) para os Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, conforme demonstrado no Anexo de Metas Fiscais constante do Anexo IV a esta Lei.” (…)  [GN]

            Afinal, qual o sentido de Haddad fechar os olhos para os volumes astronômicos de despesas financeiras próximos a R$ 700 bi anuais com o pagamento de juros da dívida pública e voltar a sua motosserra austericida apenas para eliminar direitos sociais e investimentos públicos? Felizmente Lula percebeu a armadilha de “zerar o primário” a tempo Essa meta irrealista e equivocada poderá ser substituída por um valor equivalente a 1 % ou1,5 % do PIB e o governo contará com a folga fiscal necessária para realizar o que é, de fato, melhor para o Brasil.

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

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