Os 90 anos de José Afonso da Silva

Jurista explica como a minoria progressista saiu vitoriosa na Constituição de 1988. “Foi o melhor que a nossa geração pôde deixar para o Brasil”.

Jornal GGN – Ele viveu sob duas ditaduras, a de Getúlio Vargas (1930- 1945; 1951- 1954) e dos militares (1964-1985), durante a criação da Constituição Federal de 1988 se destacou como um importante formulador de parte da doutrina sobre direito constitucional no país. Hoje é o jurista mais citado pelo Supremo Tribunal Federal e o mais respeitado entre os docentes do Direito Constitucional. Essa figura importante traz consigo uma história de raízes simples, mas com intensa dignidade. Estamos falando de José Afonso da Silva, entrevistado especial do programa Brasilianas.org (TV Brasil), exibido em janeiro (19). 
 
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Ao contar sobre o seu passado, José Afonso da Silva faz questão de citar pessoas simples e importantes, como um professor de matemática que lhe deu aulas de reforço, sem cobrar nada, do padre professor de latim, que o acolheu junto com um grupo de estudantes do qual fazia parte, e do primeiro professor “bravo” que o alfabetizou quando tinha sete anos. “Ele punha a gente de castigo, em pé e riscava com giz à volta para não sairmos do lugar”, lembra-se. 
 
Mesmo assim, agradece. “Foi muito importante porque me deu os primeiros rudimentos da linguagem”. O mineiro da cidade de Pompeu teve como pai um pequeno comerciante de secos e molhados, analfabeto, e uma mãe dona de casa. Antes mesmo de saber o que era a profissão do direito, trabalhou na roça, foi padeiro, garimpeiro e alfaiate. No final da década de 1940, com pouco mais de vinte anos, mudou-se para São Paulo, onde concluiu os estudos do ensino secundário em um supletivo público. 
 
Aos trinta e dois anos, Afonso da Silva formou-se em direito na Universidade de São Paulo, onde se tornou, anos mais tarde, professor titular e livre docente, cargo que também ocupou na Universidade Federal de Minas Gerais. Durante o processo de criação da Constituição Federal de 1988, trabalhou assessorando Mário Covas. Para o professor, o então líder do PMDB teve papel importante para que a Constituição tivesse o caráter progressista que tem hoje.
 
“A Constituinte [assembleia organizada pelo Congresso para discutir a criação da Constituição, em 1987] tinha uma maioria conservadora e uma minoria progressista. Então como se explica que uma maioria conservadora, pura e simples, pudesse ter a possibilidade de construir uma obra razoavelmente progressista? Isso se deve especialmente a Mário Covas”, afirmou. O senador era o mais influente da Casa, com 40% dos parlamentares do PMDB. Afonso da Silva lembrou que Covas era um grande jogador de xadrez e usou a técnica para “montar na Constituinte o seu xadrez”.
 
Ele fez isso quando na relatoria das subcomissões e das comissões pôs homens progressistas, enquanto a presidência das comissões se mantiveram os não progressistas, os conservadores. Assim, o peso das ideias progressistas, construídas primeiramente nas subcomissões e comissões prevaleceu no jogo final. “É claro que os conservadores venceram alguns pontos, especialmente os de ordem econômica, como reforma agrária”. O segundo fator, até mais fundamental para o caráter progressista da Constituição atual, foi o trabalho anterior à Constituinte, realizado pela Comissão Afonso Arinos, em 1986. 
 
Esse grupo de trabalho, formado por 50 especialistas, dentre os eles sociólogo Gilberto Freyre, o escritor Jorge Amado e o jurista Sepúlveda Pertence, havia sido convocado pelo então presidente da república José Sarney, para a elaboração de um anteprojeto de Constituição que acabou não sendo enviado oficialmente ao Congresso, isso porque os parlamentares entenderam que a decisão do executivo feria os poderes do Congresso. Mas o conteúdo desse anteprojeto foi publicado e diversos pontos abordados pelo documento foram aproveitados no debate da Constituinte de 1987.  
 
Para o professor Afonso da Silva os direitos sociais só existem porque não há outro modo de supri-los. Em outras palavras, se os serviços de saúde e educação, por exemplo, fossem suficientes, mesmo sendo privados, não seria necessário estabelecê-los como direitos sociais. “É claro que esse é o direito que serve à população mais carente, exatamente àquela população que não tem muito poder de pressão. Por isso mesmo é difícil [de ser estabelecido]. Ainda assim ele tem avançado. Temos que reconhecer que o Supremo [ao longo da história] tem dado decisões importantes aos direitos sociais”, avaliou. 
 
Afonso da Silva considera que a Constituição de 1988 foi o melhor que sua geração pôde fazer pelo Brasil. “Nós ficamos devendo à essa geração um país melhor, mas deixamos alguma coisa que pode ajudar”, completa. Lembrou que, até 1985, o Brasil viveu “praticamente” sob ditaduras. Após a independência (1822), foi império, depois passou a ser república (1889), mas sempre sob o poder de oligarquias, chega aos governos de Getúlio Vargas (1930- 1945; 1951- 1954), e depois à Ditadura Militar (1964-1985). “Então estamos deixando [com a Constituição Federal alguma coisa para as próximas gerações que é um sistema constitucional razoável, estabelecido, que pode ajudar a reconstruírem esse país. 
 
Essa entrevista do professor Afonso da Silva foi concedida ao apresentador do Brasilianas.org Luis Nassif, ao professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo e Procurador Regional Aposentado, Luiz Alberto David Araújo e ao ex-diretor da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo e especialista em Direito Público, Marcelo Figueiredo.
 
Redação

6 Comentários

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  1. Obrigado

    Caro Nassif,

    obrigado por nos brindar,  neste início de ano , com estas  entrevistas dos eminentes  juristas brasileiros . Primeiro o mestre CABM, agora o outro mestre  JAS.

    Continue, por gentileza, nessa linha de pesos pesados do pensamento brasileiro.  Sugestão para a próxima:  o mestre Dalmo Dallari e o  mestre mineiro José luiz Quadros, este,  vem proclamando, com muita propriedade,  o fim do Estado moderno à moda européia.

    Fico muito obrigado

    Saudações  

  2. Os que acompanharam mais de

    Os que acompanharam mais de perto o processo constituinte de elaboração da Constituição em 1987 e 1988, como quem assina este comentário (compunha então a assessoria do PCB) sabem bem o importante papel desempenhado pelo Prof. José Afonso da Silva na definição do texto constitucional, como principal assessor do Senador Mário Covas, Líder do partido de maior bancada (o PMDB) da instalação da Constituinte até meados de 1988, quando o PSDB foi criado (Covas foi um dos seus funadores).

    Para quem começou a trabalhar com direito constitucional naquela época e que continua a atuar profissionalmente com processo legislativo desde então, as lições do Prof. José Afonso na defesa politicamente consequente e juridicamente embasada de um constitucionalismo democrático e progressista (na contracorrente do liberal-conservadorismo do direito brasileiro), foram fundamentais na formação.

    A esse respeito, aproveito para registrar a minha dívida de gratidão com o Prof. “Zé” Afonso.

    O Prof. destaca com justiça o papel de Mário Covas para que uma Constituição democrática e progressista fosse aprovada, mas quero aqui também registrar que sem o aval e o apoio de Ulysses Guimarães (o principal condutor de todo o processo constituinte) também não teríamos a Constituição de 5 de outubro de 1988 nos moldes positivos em que foi aprovada.

  3. Está em curso em nosso país

    Está em curso em nosso país um movimento de apropriação, por parte do poder econômico, das cabeças dos políticos e do meio jurídico (ministros, desembargadores, juízes, promotores, procuradores de estados etc).

     

    Assim, por um lado força-se a modificação da constituição e da legislação para que elas se tornem menos sociais e mais liberais (no sentido econômico). No outro, no que não se puder alterar do texto constitucional ou legal, controla-se o teor de sua interpretação ao se controlar a nomeação dos ministros do STF e do STJ, bem como dos desembargadores nos Estados.

     

    O STJ, por exemplo, já ostentou no passado (até meados da primeira década desse século) uma jurisprudência bem mais social do que hoje, que vem se tornando bem mais liberal (no sentido econômico). A nomeação dos ministros do STJ, cujo escopo é a uniformização de toda a legislação federal infraconstitucional, acaba por influenciar sobremaneira a judicância dos tribunais federais e dos Estados.

     

    No STF, por incrível que pareça, esse processo não tem conseguido avançar tanto, o que vem impedindo que esse fenômeno se intensifique, mas nomeações como as de Menezes Direito e Fux por governos em tese de esquerda causam estranheza.

     

    Há toda uma “guerra ideológica”, sendo bem sucedida sobretudo no STJ e nos tribunais federais e dos Estados, que aos poucos vem conseguindo ganhar terreno a favor do ideário econômico liberal sendo travada no topo da “pirâmide jurídica” do país.

    Fica o alerta.

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