Pode um civil ainda ser julgado por tribunal militar?

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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Para o Tortura Nunca Mais, "a experiência e os valores da caserna" prevalecem sobre a lógica jurídica quando civis são julgados por militares

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Jornal GGN – Está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quinta-feira (21) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 289, que trata dos limites da atuação da Justiça Militar da União (JMU). A ação questiona especificamente a competência da corte militar para julgar civis em tempos de paz.

Embora esteja fora do radar da grande imprensa, o assunto é relevante, ainda mais em tempos de crise democrática. Afinal: pode um civil ainda ser julgado por um tribunal militar, composto majoritariamente por militares, e a maioria, inclusive, sem formação jurídica?

Para o Grupo Tortura Nunca Mais, que é amicus curiae na ação, o Supremo precisa reconhecer “a incompetência da Justiça Militar para julgar civis”.

Citando o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas em memorial enviado à Corte, o Tortura Nunca Mais defendeu que “civis acusados de perpetrar crimes de qualquer natureza sejam julgados por Cortes Civis.”

Um civil ser julgado em tribunal militar representaria “uma violação ao princípio constitucional da imparcialidade”, aponta o memorial.

O STM é composto por 15 ministros, sendo apenas 5 civis e o restante militares. “O referido desenho institucional deixa evidente que, em cortes castrenses, a experiência e os valores da caserna devem prevalecer sobre a lógica jurídica, denunciou o Tortura Nunca Mais.

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Além da desproporção entre civis e militares, atualmente, apenas 1 dos 10 ministros militares possui formação jurídica. “A Corte, regida pelo sistema de escabinato, possui maioria de Ministros com décadas de formação militar e atuação no contexto da caserna, aplicando suas normas e embebidos de seus valores, sem qualquer requisito de conhecimento jurídico”, argumentou o Tortura Nunca Mais. 

“É justamente a necessidade de familiaridade com as praxes da caserna e com os valores que regem as Forças Armadas, sobretudo a hierarquia e disciplina, que justifica e legitima a existência dessa justiça especializada“, frisou. “O problema desse arranjo é que o civil não está sujeito à hierarquia e à disciplina militares! Não podem estes princípios justificar que, em tempo de paz, possam ser julgados por um conselho majoritariamente militar.”

Dados de 2011 a 2018, levantados pela imprensa, apontam que, só no Rio de Janeiro, ao menos 144 civis responderam a processos em auditorias militares por desacato, desobediência ou resistência. Do total, 77 foram condenados. A maioria tem como principal peça acusatória a palavra de soldados.

Em regra, disse o Tortura Nunca Mais, o tribunal militar atua pautado “por princípios institucionais que conferem toda a importância à preservação do Estado e dos poderes constituídos, e pouca atenção aos direitos dos réus.”

O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão de ausência de imparcialidade por parte do Poder Público. “No caso Favela Nova Brasília v. Brasil, o tribunal consignou que há violação ao dever de imparcialidade quando a autoridade incumbida da investigação possui, de alguma forma, ligação institucional ou hierárquica com os indivíduos ou fatos a serem investigados”.

De acordo com o Código Penal Militar, civis podem ser julgados pela Justiça Militar da União em casos de crimes cometidos contra as Forças Armadas.

No último dia 6, o STF voltou a discutir também a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.032, que trata da competência do STM sobre processos envolvendo civis no caso de delitos ocorridos durante o combate ao crime no exercício de “atribuições subsidiárias” das Forças Armadas.

A ação foi apresentada em 2013 pela Procuradoria-Geral da República, que entre seus argumentos falou da necessidade de igualdade e garantias constitucionais para os civis nos julgamentos fora da esfera das corporações. 

Leia o pedido do Grupo Tortura Nunca Mais na íntegra:

jornalggn.com.br-stf-analisa-competencia-da-justica-militar-para-julgar-civis-nesta-quinta-20-memorial-adpf-289-18.10.21-convertido

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

2 Comentários

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  1. Mais do que isso!
    Não só civis não devem ser julgados por militares, como também os próprios militares não devem ser julgados por tribunais militares em crimes “comuns” (civis).
    Tribunais militares devem se ater a julgar crimes militares (guerras, indisciplinas, deserções, transgressões ao seus códigos e regulamentos e e assuntos estritamente militares, não cobertos pela lei civil geral que os subordina. O mesmo com relação a outras instituições como a PM, sob pena de uma justiça corporativa.
    Como exemplo, um certo Jair poderia ser julgado por um tribunal militar em relação a seu ativismo sindical de quartel, bombas em banheiros ou posteriores campanhas eleitorais proibidas dentro deles.
    Mas suas eventuais intenções terroristas ameaçando o vital abastecimento de água de uma das maiores cidades do planeta é, seguramente um grave crime civil de terrorismo e deveria ter sido julgado como tal (e não corporativamente por seus pares).
    Como se sabe, eram tempos onde o próprio poder civil era usurpado por militares
    Mas isso é outra (longa) história…

  2. Caro ed. Concordo inteiramente com seus comentários. É inconcebível militar julgando civis (usurpação do judiciário, um dos três poderes do país).

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