Introdução à Metafísica Política, por Alfredo Pereira Jr.

Espinosa e Hegel, no período moderno, teriam sido os primeiros filósofos a vislumbrar a relação entre a metafísica e a prática política

Banksy-Basquiat

Introdução à Metafísica Política

por Alfredo Pereira Jr.

O leitor deve estar se interrogando a respeito do título dado a este artigo – afinal, será que a polarização política chega até as áreas mais abstratas da filosofia, como é o caso da Metafísica? A resposta é afirmativa: isso já ocorreria desde que determinadas doutrinas metafísicas foram utilizadas, na Índia antiga, para justificar a sociedade de castas, na qual algumas pessoas detêm a riqueza e outras são condenadas a sofrer (em linguagem marxista) a exploração, opressão e alienação exercida pelo estamento dominante.

Nesta perspectiva, o cristianismo antigo, e sua versão brasileira, a Teologia da Libertação, podem ser considerados uma reação à desigualdade social, clamando pela igualdade de direitos de todas as pessoas. Enquanto as filosofias indianas dualistas e idealistas promoviam a ascese de indivíduos isolados, buscando a iluminação frente a uma divindade que (duvidosamente) se manifesta em sua consciência privada, no cristianismo autêntico temos uma metafísica que foca na consciência social, ou seja, no contexto da doutrina da Santíssima Trindade, na figura do Espírito Santo, que se forma quando as pessoas interagem e compartilham seus sentimentos.

Enquanto nas metafísicas idealistas e dualistas se considera que determinados indivíduos e grupos seria escolhidos, e, portanto, privilegiados por Deus, no cristianismo autêntico se busca promover a liberdade das pessoas para que possam, no plano social, realizar suas potencialidades e, assim, optar conscientemente por construir uma sociedade melhor no planeta em que vivemos – ou, em vertentes mais idealistas do cristianismo, na vida pós-morte. Eu sou cético quanto a esta última possibilidade, pois a considero uma contaminação do cristianismo pelo idealismo e/ou dualismo que perpassa a filosofia medieval, adotada pelos poderosos da Igreja Católica quando esta se integrou aos grupos politicamente dominantes na sociedade ocidental.

Por cerca de 15 anos tenho interagido com o neurocientista e filósofo indiano Ram Lakham Pandey Vimal (1), por meio de troca de e-mails e em diversas publicações, números especiais de revistas e livros (2). Recentemente ficamos ambos estarrecidos pela notícia, dada na revista Nature (3), sobre o banimento do ensino da Teoria da Evolução e da Tabela Periódica da Química na Índia, atualmente sob governo de direita. Este evento exemplifica como as metafísicas idealistas e dualistas, prevalentes naquele país, ainda estão servindo para justificar a desigualdade social, influenciando a política pública, no caso em pauta evitando que a informação científica sobre o processo da realidade física e biológica chegue aos jovens.

Na classificação de Ram Vimal, são quatro os tipos de Metafísica que encontramos na filosofia:

  1. Idealistas Absolutas, para as quais um Deus imaterial ou uma “Consciência Universal” estariam na origem, no funcionamento atual e no destino do mundo no qual vivemos, sendo que a matéria e a vida seriam apenas manifestações divinas:
  2. Dualistas, para as quais há duas realidades humanas separadas, as material e a mental ou ideal, que de alguma forma interagem, como, no filósofo ocidental Descartes, por meio de um dispositivo que seria a glândula pineal:
  3. Materialistas, para as quais a mente e as ideias se reduzem ao ou emergem do mundo material, configurado nos elementos químicos da tabela periódica e nos processos que engendram na natureza;
  4. Monistas Multiaspecto, para as quais a experiência consciente humana se compõe de dois ou mais aspectos irredutíveis uns aos outros. Esta é a posição na qual nos inserimos. Na minha abordagem, o Monismo de Triplo Aspecto (MTA; vide 4), os aspectos seriam três: Matéria, que compõe nosso corpo vivo; Informação, pela qual nos comunicamos com o mundo externo e as partes do nosso corpo se comunicam umas com as outras, e Sentimento, pelo qual damos um sentido àquilo que acontece no mundo natural e social.

Nas metafísicas materialistas e monistas multiaspecto, não existe um Deus ou Consciência Universal na origem e no destino do universo; existem apenas possibilidades, ou potencialidades (no sentido da Teoria Aristotélica da Potência e do Ato original – não na versão tomista) que se atualizam conforme o andamento do processo (ou seja, de modo dialético, no sentido de Hegel e Marx). O Primeiro Motor aristotélico atua como Causa Final, ou seja, como meta a ser atingida na vida humana prática.

No MTA, temos um Ser Primitivo indiferenciado, que se desdobra nos três aspetos, os quais, uma vez religados, propiciam a experiência consciente humana, na qual projetamos Deus como um ideal condutor do processo social, rumo a uma sociedade na qual as potencialidades humanas possam se realizar livremente. Portanto, nesta perspectiva, a atualização de Deus depende da consciência humana e de nossas práticas sociais, voltadas para a realização do amor, tratando todas as pessoas como tendo iguais direitos.

Espinosa e Hegel, no período moderno, teriam sido os primeiros filósofos a vislumbrar a relação entre a metafísica e a prática política. Não posso, aqui, detalhar esta análise, mas apenas apontar para a importante dimensão simbólica envolvida naquilo que Marx chamou de “Ideologia”, que está na base da alienação da consciência humana, na qual os oprimidos assumem ideias adequadas aos interesses dos opressores.

Para as filosofias metafísicas materialistas e monistas multiaspecto, a interação social por meio do trabalho, e da cooperação na elaboração das obras culturais, assim como a consciência que se forma nestas interações, é determinante dos rumos do processo político. Não é a ascese solitária e a suposta comunicação individual com Deus (ou com uma “Consciência Universal” que não é consciente pela grande maioria dos mortais) que melhoram a vida social; pelo contrário, estas práticas, que podem ser importantes para o indivíduo, tem sido usadas para justificar a desigualdade econômica e social. Enfim, não haveria necessidade da desigualdade social, uma vez que todas as pessoas teriam direitos iguais de acesso à riqueza gerada pelo trabalho e pela cooperação; os aproveitadores, que se beneficiam de modo injusto da cooperação, devem ser identificados e punidos, para que não enriqueçam às custas da miséria dos outros. Deste modo, após milênios de ingenuidade filosófica frente à questão da desigualdade social, finalmente começamos a entender o vínculo entre as teorias metafísicas e o processo político (5).

Alfredo Pereira Jr. – Filósofo e Administrador – Docente do Mestrado e Doutorado em Filosofia da UNESP

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