Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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Compromisso suportável, por Daniel Afonso da Silva

Os membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas são quase inimputáveis. Estão, sim, “acima da lei”.

(Photo by Alexander NEMENOV / AFP)

Compromisso suportável

por Daniel Afonso da Silva

É de Jürgem Habermas a solução “compromisso suportável” para a superação do contencioso ucraniano. Mas o notável filósofo e todos que o seguem sabem que um tipo de compromisso como esse requer muito mais que mil palavras.

O presidente russo não pretende ceder em nada e nada parece demovê-lo de ir até o fim estratégico de sua ofensiva de ares, anacronicamente, soviéticos e imperiais contra o “resto”. Os combatentes pela Ucrânia, ucranianos e afins, estão dispostos a chegar até o último homem, ucraniano ou aliado, para inibir essa investida implacável do herdeiro de Stálin.

Todos os entendidos reconhecem que não há guerra no conflito pela Ucrânia. Aliás, “guerra”, no sentido imemorial e levado aos extremos no século XX, tem muito que não existe mais. O hibridismo intensificado pelo conflito em Ruanda e ampliado nos Balcãs nos anos de 1990 virou regra depois dos ataques do 11 de setembro de 2001. Desde então, os estados, através de seus parlamentos, promovem apenas “operações militares”. Jamais guerra.

No caso do embate Rússia versus Ucrânia, operações militares advém de várias partes. Mas independente do conceito e da denominação, pessoas estão morrendo e, colateralmente, seguirão morrendo de fome, tristeza e desamor por longos anos em todos as partes do planeta. Um “compromisso suportável” parece ser, aparentemente, a única saída para minorar, depois de doze meses, essa fase de brutalidade e agonias fim. Mas, como se pode antever, não é simples suportar o insuportável.

Reagindo nesse contexto, um coletivo de mais de 300 professores, pesquisadores e intelectuais franceses assinou um manifesto, publicado no Le monde, no 21 de março passado, reivindicando uma ação diplomática mais eficiente para mediar o conflito e privar gerações inteiras da memória de uma devastação permanente. O argumento pacificado no documento reconhece que a Ucrânia já teria desaparecido sem o apoio militar e logístico de seus aliados. Mas esse mesmo apoio chegou ao paralelismo.

Nem todos os aliados ucranianos continuam favoráveis à militarização do conflito. É cômodo para europeus, norte-americanos e afins, mas é horrível para os ucranianos, que acompanham seus pais, filhos, maridos sendo eliminados fisicamente diuturnamente.

O núcleo da reivindicação do coletivo francês sugere uma mediação a partir de “avanços diplomáticos concretos”, mobilizando as organizações internacionais concernentes. Notadamente a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança das Nações Unidas. A Organização pela Segurança e pela Cooperação na Europa poderia ser acionada para auxiliar na reabilitação dos Acordos de Minsk II de 2015. Quer-se um multilateralismo verdadeiro e sem fronteiras. Mas tudo isso esbarra nos escombros do chão de ruínas de 1945.

Quis o destino que a “Rússia eterna”, como dizia o general De Gaulle, fosse decisiva na contenção do nazismo e da fúria de Hitler. Isso possibilitou aos herdeiros de Tostói um lugar de destaque na construção da arquitetura institucional internacional no aftermath. Especialmente, como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Quem observa com frieza a natureza das instituições internacionais saídas da Segunda Guerra Mundial percebe que o Direito Internacional possui pesos e medidas diversos e dispersos. Os membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas são quase inimputáveis. Estão, sim, “acima da lei”.

Sem unanimidade no interior do Conselho formado pelos cinco “gendarmes do mundo” – Estados Unidos, França, Reino Unido, China e Rússia –, qualquer ação vira ilegítima e ilegal. Por lógica, nenhuma ação consegue, assim, ser imposta contra um membro do Conselho que, por evidente, não votará contra si próprio.

Os Estados Unidos do presidente George W. Bush macularam os procedimentos da instituição ao invadir o Iraque em 2003. Os esforços do presidente Barack Obama para superar o mal-estar foram imensos, mas insuficientes. O presidente Donald J. Trump também tentou resolver a situação, mas, ao seu modo elefântico, também agiu em vão.

Quando se observa o conjunto de sanções e embargos ante a Rússia do presidente Putin crescendo diariamente desde 2014 e se intensificando desde 24 de fevereiro de 2022, vai ficando cândida a falência das instituições saídas de 1945. O revisionismo demandado pelos países ausentes está sendo imposto pelos países de dentro dos pactos. Como poderão os russos acreditar ou aceitar em qualquer compromisso marinado nesses termos.

Para dificultar ainda mais o compromisso, surgiu o sensacionalismo do pedido de interpelação do presidente russo pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra.

Note-se que o Tribunal Penal Internacional, inclusive para o mais legalista, julga, certo, pessoas e não estados. Mas uma pessoa à frente de um país membro-fundador do Conselho de Segurança das Nações Unidas não é bem uma pessoa ordinária. E não precisa ser muito entendido para saber disso.

Não é, por claro, ilegal a intenção de se apenar o presidente russo por possível – e, talvez, evidentes – “crimes de guerra”. Mas pelo que informam todos os serviços de inteligência dos países centrais implicados, arbitrariedades ocorreram de parte a parte. O presidente ucraniano também será convocado?

Se isso não bastasse, o conjunto da intenção de interpelação possui um pecado original. Quem mais insufla o pedido de prisão do presidente russo são, em tese, lobistas norte-americanos em nome, velado, mas não tão velado assim, do deep state norte-americano. Mas os norte-americanos, especialmente, não reconhecem o Tribunal Penal Internacional e seu argumento, desde o início, foi simples: segundo eles, a soberania norte-americana para julgar os seus não pode nem deve ser submetida a terceiros. Dito de modo direto: esse pedido de interpelação do presidente russo tem ares de ação “ilegal” e imoral.

Um “compromisso suportável”, por certo, é necessário. Mas não está claro como superar todas essas aberrações. É pouco provável que o presidente russo aceite levar os seus compatriotas a suportar o insuportável. O mais provável é que ele, como todos os sucessores de Pedro, o Grande, siga disposto, como o seu homólogo ucraniano, a também ir até o último homem para honrar a dignidade de seu país. Mesmo que isso seja o fim de todos os demais homens e países.

Complexo.

Tempos difíceis.

O coletivo francês não é composto por ingênuos. Mas a sua motivação principal parece ser mais demandar um mea culpa dos ocidentais e afins que acreditar que os russos vão suportar o insuportável. Quem sabe o presidente Lula da Silva, após o encontro de Celso Amorim com o presidente Putin, encontre alternativas? Pode ser que seja a aposta deles. Muito do que dizem, o presidente brasileiro vem dizendo há tempos.

O mês de abril está só começando…

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

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