Moedas eletrônicas e a revolução monetária (2/3), por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Como em tudo na evolução humana, nada existe a partir de um estalo, ou é atribuível a uma só pessoa, como defendem os adeptos do anarco-capitalismo

Moedas eletrônicas e a revolução monetária (2/3)

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Toda as criptomoedas são eletrônicas, mas nem todas as moedas eletrônicas são cripto. Daria até para fazer um exercício de teoria dos conjuntos para debater o assunto, mas podemos deixar isso para os matemáticos. O que aqui importa é como as moedas eletrônicas podem alterar nossas vidas pela forma como pagamos, recebemos e transacionamos. Seguindo a mesma linha lógica, todas as moedas são ativos, mas nem todos os ativos são moedas.

Como no capítulo anterior, antes de começar o debate, é preciso manter em mente algumas das mais importantes características das moedas. As moedas podem ter valor intrínseco, quando o material de que são feitas têm valor econômico, como o ouro e a prata; extrínseco porque possuem valor de face, como o dólar de prata que vale, naturalmente, um dólar. Da mesma forma, um dólar de ouro também é possível, porém, representado por um objeto de tamanho provavelmente menor do que o equivalente em prata. Na medida em que o Estado confere credibilidade ao valor das moedas em curso, tenham elas ou não valor intrínseco avaliável, toda a moeda tem valor fiduciário. Este será tão maior quanto mais confiável seja o Estado que a emitiu.

O saudoso Dorival Teixeira, em seu livro “Evolução do Sistema Monetário Brasileiro”, cita o hábito de a administração de D. João VI “batizar nossas moedas com metais nada preciosos para aumentar o meio circulante”. Quando isso causou desconfiança acerca da relação entre o valor intrínseco e extrínseco da moeda, o Banco do Brasil, a partir de 1816, lançou papel moeda conversível em ouro puro. A credibilidade durou até o regresso da família real para Portugal, levando até a prataria das residências que a corte ocupou compulsoriamente. Mas o que tem isso a ver com moedas eletrônicas? Na verdade, a pergunta deveria ser feita ao contrário, o que têm as moedas eletrônicas a ver com isso?

Como em tudo na evolução humana, nada existe a partir de um estalo, ou é atribuível a uma só pessoa, como defendem os adeptos do anarco-capitalismo, que alegam que o Estado se apropria das criações particulares. Já há quem diga que o lançamento de moedas eletrônicas pelo estado seja o confisco da ideia de Satoshi Nakamoto, pretenso criador do bitcoin. O fato é que, vinte e três anos antes do artigo do suposto inventor japonês, em 1985, já se tinha aventado uma moeda eletrônica, deposited currency accounts (Tobin, 1985)[1], que seria um depósito direto no Federal Reserve. Não funcionou por falta de capacidade computacional. Sua emissão seria centralizada e oficial. O bitcoin, ao contrário teria de ser minerado virtualmente, na tentativa de atribuir um lastro finito e impedir que qualquer Estado fosse capaz de aumentar o volume circulante, que seria finito, conforme o algoritmo pretensamente criado por Satoshi. Esse, aliás, é o nome da menor divisão de um bitcoin.

Ainda para evitar a duplicidade de transações usando o mesmo montante em bitcoin, o algoritmo em que se apoiam os blockchains consideram somente a primeira transação, descartando as demais, por mais rápida que seja a sequência de lançamento. Isso pretende impedir que se façam operações em aberto com essa e outras moedas. Faltava porém, uma plataforma para manter o registro das transações, o que se pretendeu resolver com o Ethereum, que não é nada além de um ambiente colaborativo em que computadores pelo mundo todo armazenam transações e são remunerados em ETH, que é uma outra moeda eletrônica.

Para todos os efeitos, as criptomoedas dependem da credibilidade na anonimidade e na impossibilidade de haver fraudes, portanto, não deixam de ser moedas fiduciárias, porém, sem alguém conhecido, nem mesmo um Estado, que lhes deem a garantia de existência e de valor. Ocorre que um bitcoin continua a ser abstrato, por mais que o algoritmo de mineração atribua-lhe uma quantidade finita. Nada garante que, um dia, o mercado simplesmente se canse dessa brincadeira e não  considere uma mineração virtual como lastro. Todo o valor criado a partir dessa atividade pode ir por água abaixo.

Foi justamente por isso que se pensaram moedas eletrônicas com lastro em moedas reais, como é o “bitusd”, cujo lastro é dólar. Supondo-se que o Federal Reserve adquira capacidade computacional para manter um ambiente tão ou mais eficiente que o Ethereum, nasceria uma moeda eletrônica com o lastro em dólar, cujo lastro é a credibilidade do governo americano. A bem da verdade, não deveria ser preciso lastrear a moeda eletrônica numa outra já existente, bastaria que um estado, qualquer Estado, garantisse a veracidade das transações, o que se faz adotando os conceitos descritos na matéria anterior.

O Banco Central do Brasil nega que o PIX seja um passo na direção do lançamento de uma moeda eletrônica oficial do Brasil, mesmo que a tecnologia empregada pareça ser a mesma, porém, limitada ao aspecto financeiro da transação. Para que haja uma moeda verdadeiramente eletrônica, seria preciso que cada um dos cidadãos possa ter uma conta diretamente no Banco Central e, em vez de guardar dinheiro no colchão, que pode ser roubado ou pegar fogo, o dinheiro seria armazenado num colchão virtual, cujas consequências são o alvo da próxima matéria.


[1] TOBIN, J. Financial innovation and deregulation in perspective. Bank of Japan Monetary and Economic Studies, v. 3(2), p. 19–29, 1985.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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1 Comentário

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  1. O Nassif acha que é tudo Ponzi 🙂
    Fico impressionado com o tamanho do desconhecimento dele sobre este assunto, parece um anti-vaxer, um terraplanista, quando fala das criptos….

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