Crescimento acelerado e concentração de renda: o “milagre econômico”, por Ivan C. Salomão

Não se pode deixar de apontar, contudo, a faceta menos áurea do período: o aprofundamento da concentração de renda e riqueza

Crescimento acelerado e concentração de renda: o “milagre econômico” *

por Ivan Colangelo Salomão

As medidas levadas a cabo pelo Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) assentaram, de fato, as bases para o crescimento acelerado que se observaria a partir de 1968. Entretanto, não se pode delegar exclusivamente à contração de custos, ao ajuste fiscal e monetário e ao consequente e relativo controle inflacionário os motivos da aceleração da atividade econômica no período subsequente. Antes, o ajuste foi apenas um dos diversos elementos subjacentes ao período que seria alcunhado de “milagre econômico” (1968-1973).

O misticismo do epíteto com que posteriormente ficaram conhecidos os seis anos do “milagre” pode ser justificado pela observação de três fatos econômicos de difícil coadunação concomitante: crescimento acelerado do produto aliado à queda moderada da inflação e à estabilidade do balanço de pagamentos. Não seria o simples ajuste dos fundamentos macroeconômicos o único fator responsável por esse feito, de fato, tão louvável quanto improvável.

A primeira condição sobre a qual o milagre se viabilizou foi o processo de industrialização por substituição de importações (PSI) por que passava o país desde pelo menos a década de 1930. Se é verdade que no início dos anos 1960 a economia brasileira experimentou a sua primeira crise desde o pós-Guerra – que, em pouco tempo, se provou mais conjuntural do que exatamente inerente ao modelo de desenvolvimento –, a década de 1970 contrariou as interpretações estagnacionistas ao apresentar as mais altas taxas de crescimento do produto da história estatisticamente documentada do Brasil.

O governo havia lançado, em meados de 1968, o Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED), cujas diretrizes vieram, entre outros objetivos, a intensificar a substituição de importações, com destaque para os setores de bens de consumo duráveis e de capital, fortemente apoiada no fluxo de investimento estrangeiro direto (IED). Eis o segundo pilar sobre o qual o fenômeno se erigiu, a conjuntura externa favorável, que pode ser resumida nos seguintes aspectos: (1) elevada liquidez no mercado externo, (2) posição favorável dos termos de troca; (3) crescimento do comércio mundial e, consequentemente, das exportações brasileiras (330%, em valor); (4) forte captação de empréstimos; e (5) o consequente aumento e piora das condições do endividamento externo.

Mas para além de fatores “inerciais” – como poderiam ser classificados o PSI e a conjuntura externa favorável –, a mudança na condução da política econômica também explica os resultados do período. A começar pela estratégia anti-inflacionária, que, inobstante a controvérsia acerca da suposta manipulação dos dados oficiais, logrou controlar a elevação geral de preços a níveis moderados para aquele momento histórico. Para tanto, o governo contou com a conjugação de uma série de medidas, a saber: (1) a capacidade ociosa herdada do quinquênio anterior, o que permitiu o reaquecimento da economia sem pressão de demanda; (2) a política salarial do PAEG, que conteve o crescimento real de um dos principais custos subjacentes ao aumento de preços, a chamada espiral “preço-salário”; (3) a política agrícola, que, por meio de subsídios generalizados e da expansão da área agrícola, sobretudo na região Centro-Oeste, contribuiu para a expansão da produção primária e, consequentemente, da oferta interna de alimentos; (4) a política cambial de crawling peg, ou minidesvalorizações, que permitia estimular as exportações sem gerar pressão de custo; e (5) por fim, e talvez mais relevante, a fiscalização de preços de bens finais e intermediários, a cargo da Comissão Nacional de Estímulo à Estabilização de Preços (CONEP) e, posteriormente, do Conselho Interministerial de Preços (CIP).

A terceiro elemento se deu na própria condução da política econômica instrumental. A capacidade ociosa herdada do período anterior permitiu à equipe econômica liderada pelo ministro Delfim Netto imprimir um caráter expansionista na política monetária e, de alguma maneira, na política fiscal. Essa nova estratégia permitiu que se estimulasse a demanda agregada por meio de todos os seus componentes: consumo privado, investimentos (também realizados por empresas estatais), dispêndios públicos e exportações. Assim, o governo permitiu a expansão das atividades econômicas sem que se incorresse em pressão inflacionária, fosse de custo ou de demanda.

Não se pode deixar de apontar, contudo, a faceta menos áurea do período: o aprofundamento da concentração de renda e riqueza, a mais antiga e perversa chaga brasileira. Conquanto todas os estratos de renda tenham se beneficiado do crescimento acelerado do produto, as classes mais altas foram as que auferiram maiores ganhos relativos. O mais importante elemento por trás desse resultado indesejável foi política salarial vigente desde o PAEG, que sofreu alterações tópicas sob Delfim Netto, mas cuja essência foi mantida em todo o período: achatamento real dos salários dos trabalhadores. Essa política deliberada de contração de custos limitou a expansão do poder de compra das classes mais baixas para, entre outros motivos, facilitar a geração de poupança necessária ao financiamento dos investimentos. O bônus de que gozou o capitalista brasileiro por meio da famigerada “teoria do bolo” foi definido pelo economista chileno Fernando Fajnzylber (1988, p. 10) de modo menos eufemístico: “competitividade espúria”.

Economistas ligados ao governo procuraram explicar o fenômeno com base nas teorias de capital humano e nas características do período: conforme avançava o processo de industrialização, as novas plantas, capital-intensivas, demandavam cada vez mais trabalhadores de alta qualificação. Assim, as rendas dessa camada diminuta da população brasileira se distanciaram ainda mais do restante, contribuindo para concentrar a renda no topo da pirâmide social.

Independentemente dos motivos desse efeito colateral do crescimento acelerado, não se deve minimizar a virtude na condução da política econômica, a qual, como se sabe, baliza diretamente as expectativas dos agentes. Por outro lado, sabe-se que o crescimento vultoso da demanda agregada foi realmente beneficiado por raro um “alinhamento dos astros” econômicos, sem o qual dificilmente o governo poderia ostentar as façanhas, de fato, notáveis. É nesse sentido que a ironia de Oliveira (apud Mendonça 1996, p. 37) faz-se justa, ainda que simplista: “Milagre seria se não ocorresse o milagre”.

Referências

FAJNZYLBER, Fernando. Competitividad internacional: evolución y lecciones. Revista de la CEPAL, n. 36, p. 7-24, 1988.

MENDONÇA, Sonia R.  A industrialização brasileira. São Paulo: Moderna, 1996.

Ivan Colangelo Salomão, professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (FEA/USP)


* Artigo originalmente publicado em Boletim Informações Fipe, n. 513, 2023.

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