Sudeste, o Eterno Fornecedor
Terceira fase, do café à exportação subsidiada.
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Rememorando, até a Independência, as terras todas de El Rei e seus ocupantes eram concessionários. Essa posse podia ser onerosa ou alodial. Alódio é mais ou menos como um comodato, pois o ocupante não devia nada além de fidelidade ao rei de Portugal. Elas tinham três níveis consoante à área: capitanias concedidas pelo rei; sesmarias, concedidas pelos donatários; e os sítios, concedidos pelos sesmeiros. Quando eram onerosas, as concessões tinham, geralmente, valores simbólicos, por exemplo, um frango ao ano. Um ano após a independência, por influência de José Bonifácio, as Ordenações Filipinas deixaram de valer no Brasil. Só que não se pôs legislação fundiária alguma até a Lei Imperial 601 de 1851, que jamais foi revogada totalmente, valendo até os dias de hoje em alguns de seus artigos. Foram vinte e oito anos de um verdadeiro balaio de gatos brigando pela posse de terras. Por essa lei, todas as terras em uso no Brasil seriam devolvidas à coroa, daí o termo “terras devolutas”. O imperador, por sua vez, ficava encarregado de leiloá-las e os valores arrecadados seriam integrados ao tesouro nacional. Ocorre que a oferta era muito maior que a procura e, exceto as áreas mais bem localizadas, as outras foram deixadas ao Deus dará, o que resulta na nossa tradição de conflitos fundiários.
A passagem do uso das terras de concessão para propriedade coincidiu com a entrada do café como campeão na pauta de exportações. Aos poucos, a hipoteca das terras foi substituindo os empréstimos com escravos por garantia. O último empréstimo lastreado em escravos ocorreu em 1882, sete anos depois da aprovação do código que regulamentava a garantia para empréstimos. Na verdade, a legislação adveio de que terras passaram a valer mais que gente, mesmo porque já havia fluxo imigratório significativo, substituindo a mão de obra das lavouras de café. Foi quando a venda de escravos do Nordeste ao Sudeste minguou em valor e em quantidade. A abolição teve, portanto, motivos econômicos tão ou mais fortes que os humanitários. Prova disso foi que, para os escravistas, o grande incômodo foi a falta de indenização.
Um país recém independente costuma carecer de meio circulante e o Brasil não era diferente. Os cafeicultores empenhavam safras de até três anos à frente e recebiam mormente em bens de consumo importados. As exportações cresceram mas os produtores continuaram com as bolsas vazias. A saída foi a contratação de mão de obra estrangeira à meia. Os imigrantes recebiam um número de pés de café para cuidar, enquanto o cafeicultor entrava com a terra e insumos. Da produção, as partes ficavam com a metade cada. Entre os pés de café, o meeiro poderia plantar o que bem entendesse, especialmente, bens de subsistência. Com esse arranjo produtivo, a produção subiu de sete para onze sacas por hectare e o cafeicultor podia ficar com 5,5 sc/ha. Antes, ele gastava 3 sc/ha para sustentar seus escravos. Assim, seu rendimento passou de 4 sc/ha para 5,5 sc/ha sem investimento algum, ou, quando o faziam, os fazendeiros pagavam as passagens dos imigrantes, o que criava uma relação de semiescravidão, relação esse que se eternizava com a exploração dos armazéns pelo cafeicultor, deixando o trabalhador em eterno endividamento.
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A entrada do mercado americano no consumo de café, antes restrito à Europa, financiava a expansão dos cafezais em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ao mesmo tempo, os fazendeiros investiam na melhoria da logística até os portos, o que resultou na extensão da malha ferroviária, até então restrita ao Nordeste. Ocuparam-se novas áreas e a produção começou a migrar do Vale do Paraíba para o chamado Oeste Paulista, que de oeste não tinha nada, pois o café andou mesmo para o norte, passando por Campinas e seguindo a fronteira com Minas Gerais até Franca, em São Paulo, e Araxá, em Minas. Alemães e italianos também plantaram café no Espírito Santo, num movimento que ocupou a junção da Serra do Mar com a Serra da Mantiqueira, tornando o sudeste brasileiro no maior produtor e exportador de café do mundo.
Só que tudo tem limite e os cafeicultores não entenderam isso. A crise americana dos anos 1890 jogaram o preço do café para baixo e o Estado Brasileiro começou a comprar café para manter os preços internacionais elevados. Ora, como quanto maior o preço, maior é a oferta, novos plantios iam-se sucedendo numa política suicida, que resultou numa crise cambial só solucionada com a securitização da nossa dívida perante os bancos ingleses. Mesmo assim, os fazendeiros paulistas e mineiros continuavam a pressionar o Estado para manter a política altista, que só cessou com a crise de 1929, que decretou o declínio da cafeicultura brasileira, bem como o retorno à economia do açúcar como carro-chefe da agricultura regional.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.
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