Ricardo Araújo Pereira: Só não sou mais rancoroso porque a preguiça não me deixa

 Ricardo Araújo Pereira no Festival Literário da Madeira – Hélder Santos / Global Imagens 

Enviado por Gilberto Cruvinel

do Diário de Notícias

Ricardo Araújo Pereira: “Só não sou mais rancoroso porque a preguiça não me deixa”

João Céu e Silva, no Funchal

O humorista está irritado com o politicamente correto que a direita portuguesa importou e para onde uma certa esquerda desliza. Sente-se posto a um canto ideológico que não é o seu devido às posições de sempre.

Mais um festival literário. Está a tomar-lhe o gosto?

A minha editora mete-me nestes sarilhos e eu, como sou uma pessoa submissa e estou habituado a fazer o que as mulheres me dizem, obedeço.

Isso parece ser mentira, pois há muita mulher e feminista aborrecida consigo!

Não concordo. Nem são as mulheres nem as feministas, no máximo certas feministas. Feminista sou eu também, tenho é uma diferença de pontos de vista em relação a um determinado feminismo, o que considera que aquilo a que se costuma chamar linguagem inclusiva está diretamente ligado com a desigualdade entre homens e mulheres. Devemos dizer “todos”, “todas” e agora “todes” para que os problemas se resolvam, só que a gramática nada tem a ver com o género biológico.

Numa das suas crónicas dá o exemplo de Mário Soares a propósito da tolerância. Hoje é a intolerância que está na moda?

O legado dele é esse, em que tolerância e liberdade andam de mãos dadas, no entanto hoje ouço num número inquietante de vozes que defendem o ser intolerante com a intolerância. Essa frase põe-se em causa a si própria.

Há uns anos, a pianista Maria João Pires e depois Miguel Sousa Tavares disseram que iam viver para o Brasil. Já ponderou isso, até porque tem lá muito sucesso?

Não. Agradeço a forma como os brasileiros me acolhem e faço a crónica na Folha de S. Paulo todas as semanas entusiasmado, mas a minha casa é aqui. Gosto é disto. Sou aquele tipo de português que em Portugal diz “isto só neste país!”, mas depois passo um fim de semana fora e já tenho saudades do bacalhau e das sardinhas. Não sei, é uma característica nacional, mas eu sou assim.

É um defeito de fabrico?

É possível, mas não é só meu quase de certeza.

Tem uma crónica que se intitula Querido Portugal, onde fala do amor ao país e de esse sentimento resistir a tudo. Porque é ingénuo?

E não é o que acontece com todas as formas de amor? Há três coisas a que nos agarramos por muito mal que esteja o país: a língua, a comida e o bom tempo. Mesmo que a língua tenha sofrido algumas alterações, que a União Europeia tenha proibido os jaquinzinhos e o tempo ande chuvoso.

Está num festival literário que acontece na Madeira, onde é normal não se aterrar ou poder partir. Já pensou que pode ficar preso na ilha?

Sim, mas tendo em conta que vim de um almoço com poncha, lapas e peixe fresco, não é a pior coisa que possa acontecer. E os madeirenses acolhem-me sempre com uma gentileza que não mereço.

Tirou a foto habitual ao pé do busto de Cristiano Ronaldo no aeroporto com o seu nome?

Não, mas contemplei aquela fila de pessoas à saída do aeroporto que querem fotografar-se com o busto do Ronaldo.

Voltemos ao festival. Em que estatuto está: cronista, humorista, guionista ou escritor?

Acho que venho no estatuto de muleta do [autor britânico] Mick Hume, que publicou o livro Direito a Ofender, e que tem a ver com o mote do festival. Eu sugeri que este livro fosse editado – até o Salman Rushdie disse coisas agradáveis sobre o livro – porque é importante valorizar uma perspetiva sobre uma liberdade de expressão que, a prevalecer, dificulta a vida de algumas pessoas.

Mesmo que acusem o autor de ser muito inclinado à direita?

O Mick Hume sempre foi um marxista libertário, até editou uma revista com essa orientação, mas neste momento quem tenha determinada posição em relação à liberdade de expressão é logo arrumado na direita. Há uma esquerda, do Mick Hume e minha, que está de um lado, e existe outra esquerda mais autoritária que não. Antes, a esquerda em geral constatou que a cor da pele, o género e a orientação sexual eram fatores de desigualdade, mas agora uma parte da esquerda, que não é a minha, parece ter perdido de vista que o principal fator de desigualdade sempre foi a classe social. Além de que essa esquerda está satisfeita em criar uma espécie de confederação de minorias que em democracia prejudica a tomada do poder. Não se persuade uma maioria de pessoas se as estamos a dividir com interesses cada vez mais antagónicos. É desnecessário enfiarmo-nos em guetos em vez de reunir. É o preço do que costuma chamar-se “politicamente correto”.

Usar a palavra direita em relação ao Mick Hume não é estranho?

É o que dizem sobre ele e agora sobre mim também. Tenho sido colocado fora da esquerda em várias colunas de opinião. Imagino que as pessoas que o fazem suponham que me estão a causar um engulho, mas não me incomoda. Podem achar o que quiserem de mim.

Estão a pô-lo a um canto?

A intenção é essa, mas não me importa.

A direita também não gosta de si…

… Pois não. Essa proeza de conseguir ser execrado por ambos os quadrantes ideológicos está apenas ao alcance de pessoas extraordinariamente irritantes como eu. A minha posição continua igual, seja sobre a legalização do aborto, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção, mas recuso-me a aceitar a proibição de certos discursos ou retirar livros dos currículos e das prateleiras de livrarias ou quadros das paredes. Justifica-se essas opções porque criam um ambiente desconfortável, mas é isso que os bons livros fazem. Um livro que trata do racismo é natural que cause desconforto, tal como documentários sobre o Holocausto. Essa ideia de causar desconforto é boa e não é preciso mudar o vocabulário para se ensinar certas lições.

Isso sente-se muito em Portugal?

Não o diria se compararmos aos Estados Unidos, por exemplo, aqui é maior a intenção do que o resultado. Uma intenção que vem de um grupo pequeno mas com grande capacidade vocal.

O dos colunistas?

Alguns, mas não todos. São mais modas que vão migrando dos EUA e da Inglaterra para cá.

Uma importação que pouco tem a ver connosco mas mesmo assim é-nos imposta?

Parece evidente que é uma importação, a própria expressão “politicamente correto” tem uma origem exterior. Os historiadores concordam que o conceito é muito complexo, escorregadio e não pode ser definido numa simples frase. A origem é bastante obscura, mas que é possível localizar nos escritos do Mao Tsé Tung ou que era usada na esquerda como uma piada para apontar os mais dogmáticos, só que hoje há quem a utilize sem a ironia desses tempos. Transpor esse conceito para a política, que é matéria de opinião, parece-me aflitivo porque é uma terminologia que não se aplica à política. Não concordo que a linguagem deva ser meticulosamente vigiada e a expressão sobre a qual essa gente se alberga é sinistra. Até porque a vontade de policiar os efeitos da linguagem contrasta com as palavras “politicamente correto”.

Noutra das suas crónicas faz referência à educação pelo cacete. Vai mudar o registo do que escreve?

Não, nem sou adepto do cacete. Nem quando ele é brandido pelos que não concordam comigo, nem pelos que concordam. Primeiro, se começamos a punir opiniões, elas não são rebatidas, apenas silenciadas. Segundo, é fatal que se comecem a punir opiniões de que não se gosta e que amanhã sejam as nossas..

Falou de linguagem. Esteve no Palácio de Belém e fez um trocadilho sobre arquitectas e arquitetas perante uma plateia de jovens estudantes. Não é ir longe de mais?

Não, era o que faltava. Eram alunos do ensino secundário, que já têm arcabouço para aguentar com isso. Aliás aposto que a maior parte daqueles rapazes não pensam noutra coisa que não seja em arquitetas.

Logo de seguida, Lobo Antunes fez questão de ir mais longe!

E disse coisas piores ainda sobre uma experiência desagradável de assédio. É ótimo que haja movimentos para acabar com essa bandalheira de colocar condicionantes na carreira das mulheres, que é uma prática assustadoramente generalizada e tem de acabar.

No seu livro tem uma autoentrevista. Vou repetir algumas dessas questões. “Qual foi a pergunta que nunca lhe fizeram?”

Ainda me lembro da resposta… O universo de perguntas que nunca me fizeram é muito mais vasto do que as feitas.

“Qual é o seu maior defeito?”

Também me lembro da resposta, mas tenho muito gosto em responder que tenho vários para escolher. Sou rancoroso e só não sou mais rancoroso porque a preguiça não me deixa.

“O que levaria para uma ilha habitada?”

Eu disse que era um tigre porque a ilha ficaria deserta mais depressa e prefiro assim. Para uma ilha como a Madeira quase não é preciso trazer nada. Tem tudo o que existe no continente e ainda tem lapas.

Já agora, o Benfica…

Está muito complicado. Um vice-presidente do clube veio dizer que tentar descobrir o que se passa em processos judiciais não é corrupção desportiva, porque não se ganhou nenhum jogo por causa disso, mas mancha o nome do Benfica. Haver a hipótese de alguém estar a cometer uma ilegalidade está abaixo dos princípios que os fundadores do clube estabeleceram. Não conheço um benfiquista que não esteja incomodado.

Os Gato Fedorento vão regressar a tempo parcial?

Não necessariamente, o que vai acontecer é que criámos um canal no YouTube que vai concentrar toda a tralha que fizemos.

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador