Mais uma noite de pesadelos.
“Estou numa praça de Osasco próxima de um dos riachos que a muito tempo foram transformados em esgotos a céu aberto. Uma mulher chama minha atenção.
– Você vai participar do desembarque?
– Desembarque?
Ela aponta para duas balsas militares de desembarque ancoradas no riacho e diz que vai pilotar uma delas. A outra eu deveria pilotar.
– As tropas estão chegando. – grita ela pulando numa balsa e tentando manobra-la.
– Você não vai conseguir sair com essa balsa se a outra não for movimentada.
Ela pula para a outra balsa, aciona o motor e começa a descer o riacho.
– Você não vem? Depois que as tropas forem desembarcados poderemos pegar o trem. Ao chegar na estação ficaremos em segurança.
Não sei qual é o objetivo da operação militar ou onde a mesma será realizada. Além disso, as balsas estão vazias. Nenhum soldado embarcou nelas. Olho para a moça e fico imaginando um desembarque sem tropas, o trem, a estação e a fuga em segurança.
Depois lembro que não posso embarcar nessa aventura. Sou advogado e tenho uma audiência no Fórum.
As balsas de desembarque desaparecem. Um amigo acena para mim do outro lado da praça que se estende até a rua que fica na outra margem do riacho canalizado.
– Você não vai a nossa audiência?
Lembro-me que ele será meu adversário no processo referente à audiência.
– É claro que vou. – respondo.
– Vestido dessa maneira?
Noto então que estou de calça de pijama, camisa social e paletó.
– Preciso ir em casa pegar uma gravata.
Ele diz que pode me levar lá e aponta para seu barco anfíbio. Olho no relógio e fico apavorado. Faltam apenas 15 minutos e chegarei atrasado no Fórum. Acordo desesperado e demoro alguns segundos para lembrar que não tenho nenhuma audiência agendada para hoje.”
Ontem a lâmpada do banheiro queimou. Ela já vinha falhando. Demorava para acender. Troquei a lâmpada e notei algo interessante.
Na lateral do soquete existe um calendário impresso. Ele permite ao usuário marcar o mês e o ano em que a lâmpada começou a ser utilizada. Se a marca foi feira é possível saber, com um grau muito confiável de certeza, se a vida útil da lâmpada atendeu ou não as expectativas criadas pelo fabricante.
Obviamente eu não tinha notado esse detalhe antes da lampada queimar e ser trocada. A informação útil se tornou irrelevante em virtude de ter sido ignorada. A garantia dada pelo fabricante deixou de existir porque é impossível saber quanto tempo levou para a lâmpada deixar de funcionar.
As Leis que não funcionam ou que caem em desuso também são lâmpadas queimadas. Quando foram promulgadas elas tinham um objetivo: iluminar o caminho do Sistema de Justiça diante dos conflitos previsíveis que surgiriam em decorrência da matéria disciplinada pelo legislador.
Sabemos quando uma Lei nasce. Não sabemos exatamente quando ela começou a morrer. Quando percebemos ela já está morta, pois passou a ser ignorada ou se tornou irrelevante.
A Constituição Cidadã de 1988 garante o direito à vida de todos os cidadãos sem qualquer distinção. Mas o governo Bolsonaro trabalha para exterminar uma parcela da população considerada inferior, desprezível, inútil ou descartável. E milhares de juízes estão preocupados… apenas com suas proprias vidas. Os demais são menos iguais. A Justiça não pode, não vai ou simplesmente não quer garantir as vidas dos pobres, dos pardos, das putas, dos pretos, dos índios, dos condenados à invisibilidade política, social e jurídica.
Dezenas de milhares de brasileiros estão se apagando. Muitos mais serão apagados. As vidas deles são tão descartáveis quanto as lâmpadas queimadas. A luz constitucional acesa em 1988 se apagou e a tirania colocada em seu lugar em 2016, “com o Supremo com tudo”, não poderá ser facilmente trocada. Mergulhamos nas trevas.
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