Como a CIA influenciou produção cultural na Guerra Fria

Agência de inteligência norte-americana investiu em revistas culturais pelo mundo, angariando artistas europeus de destaque 
 
A estratégia da CIA para infundir ideologia americana através da cultura
 
Jornal GGN – Uma das estratégias norte-americanas na Guerra Fria foi financiar revistas culturais no mundo ocidental. O esquema foi organizado pela Agência Central de Inteligência dos EUA, a CIA, e foi batizado de Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF, em inglês) atraindo artistas e intelectuais europeus, na maioria esquerdistas, mas desiludidos com o comunismo de Stalin, na União Soviética, sem saberem que estavam sendo influenciados pela política ideológica dos Estados Unidos.
 
A entidade foi inaugurada em 1950 atraindo nomes como Bertrand Russell, Karl Jaspers, Benedetto Croce e John Dewey. As operações da CCF eram comandadas por Michael Josselson, de Paris. A estratégia foi transformada em escândalo pela revista Ramparts, em 1967, com base em uma denúncia do New York Times. Depois disso o CCF foi rebatizado de Association for Cultural Freedo, passando a ser sustentado pela Fundação Ford. Quem retoma essa instigante história é Sérgio Augusto, no Estado de S.Paulo.
 
Estadão
 
CIA financiou revistas culturais pelo mundo no século 20
 
Há 50 anos, era fundado o Congresso pela Liberdade da Cultura, que fomentou publicações alinhadas aos interesses americanos em 35 países
 
Por Sérgio Augusto, O Estado de S. Paulo
 
A CIA (acrônimo em inglês da agência central de inteligência dos EUA) sempre metida em encrencas. Agora, em mais um desdobramento da Guerra Fria, arrumou o maior inimigo doméstico de sua história: o presidente americano, supostamente eleito com a ajuda do presidente russo Vladimir Putin. 
 
Será que Trump comparecerá à festa dos 70 anos da agência daqui a três meses? 
 
Por falar em festa, essa não é única efeméride redonda da CIA no ano do centenário da Revolução Bolchevique. Mas o outro aniversário não é para ser celebrado, e sim esquecido – exceto, evidentemente, pelas editoras, que não se cansam de explorá-lo em livros. Está fazendo 50 anos que a legendária revista Ramparts transformou em escândalo uma denúncia do New York Times envolvendo a agência e a fina flor da intelectualidade do pós-guerra. Em 1967, tornou-se pública uma velha desconfiança: a CIA operava à sorrelfa o Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF, na sigla em inglês) e, por seu intermédio, diversas fundações de fachada, promovendo conferências, simpósios, concertos, subsidiando publicações, festas, até viagens de primeira classe, com direito a caviar e champanhe.
 
Contei, por alto, sete livros dedicados ao assunto publicados nos últimos 18 anos, um dos quais, Quem Pagou a Conta – A CIA na Guerra Fria da Cultura, da jornalista britânica Frances Stonor Saunders, traduzido no Brasil pela Record em 2008. O pioneiro nesse ranking foi o francês Serge Guilbaut, autor, em 1983, de um estudo sobre “como Nova York roubou a ideia de arte moderna”. Por trás desse presuntivo furto, o tal Congresso.
 
Arma de propaganda dos ideais liberais e interesses econômicos americanos, o CCF foi fundado durante a primeira floração da Guerra Fria como uma resposta ao comunismo soviético e suas respectivas congregações internacionais, reativadas na Polônia em 1948. Sua cimeira inaugural atraiu a Berlim Ocidental, em junho de 1950, uma constelação de escritores, filósofos, críticos e historiadores, entre os quais Bertrand Russell, Karl Jaspers, Benedetto Croce, John Dewey, Arthur Koestler, Ignazio Silone, Raymond Aron, Tennessee Williams, Irving Kristol, Sidney Hook. Nem todos conservadores, a maioria esquerdistas desiludidos com o comunismo stalinista. 
 
Koestler redigiu-lhe o primeiro manifesto, com emendas do historiador Hugh Trevor-Roper e do filósofo A. J. Ayer. Nem de longe suspeitavam que a também recém-criada CIA sustentava a entidade, por intermédio do operativo Michael Josselson, que de Paris comandava todas as operações do CCF, rebatizada Association for Cultural Freedom depois do escândalo armado pela Ramparts – e a partir dali sustentada pela Fundação Ford.
 
Com representantes em 35 países, seu principal instrumento de persuasão eram as revistas culturais que nos cinco continentes deslanchou ou ajudou ao longo de duas décadas. A britânica Encounter, lançada em 1953, não foi a primeira (a alemã Der Monat já circulava por conta própria desde 1948), mas nenhuma congênere superou-a em qualidade e prestígio. Co-editada por Stephen Spender e inspirada na Partisan Review, reduto das esquerdas americanas independentes, era um modelo de urbanidade e vigor intelectual. Combativa, modernista e alinhada com a ala moderada do Partido Trabalhista inglês, abrigou em suas páginas Bertrand Russell, W.H. Auden, Mary McCarthy, C.P. Snow, Nancy Mitford, Hannah Arendt, Isaiah Berlin. Embora pró-EUA, fez críticas específicas à política externa americana e não deu mole para o macarthismo.
 
Na França, o CCF bancou a Preuves; na Itália, a Tempo Presente; na Áustria, a Forum; no Japão, a Jiyu; na Índia, a Quest; na Nigéria, a Black Orpheus (lançada dois anos antes de a ópera negra de Tom & Vinicius chegar ao cinema). A América Latina de língua espanhola ganhou duas: Cuadernos (editada pelo exilado espanhol Julián Gorkin e desmoralizada por seu caricatural anticomunismo) e Mundo Nuevo (a muito boa sucessora de Cuadernos, aprumada em Paris pelo uruguaio Emir Rodriguez Monegal e primeiro posto avançado do boom da literatura latino-americana). 
 
Quem no Brasil tocava o Congresso era o poeta e romancista romeno Stefan Baciu, que para estas paragens fugiu em 1949 e aqui fez amizade com artistas e intelectuais de ponta. Era, acima de tudo, um aventureiro. Naturalizou-se brasileiro, trabalhou com Carlos Lacerda na Tribuna da Imprensa e criou a revista Cadernos Brasileiros, a Encounter tupiniquim, que durou de 1959 a 1971 e alinhou Aron, Jacques Maritain, Elizabeth Bishop e Marcílio Marques Moreira em seu time de colaboradores. 
 
Por sua índole pacata e porque só escolhia editores de sua inteira confiança, Michael Josselson parecia reinar no CCF como a rainha da Inglaterra. Outro fator importante: o espírito independente da maioria de seus escribas, por ele respeitados. Seu único veto a um texto (um cáustico ensaio de Dwight Macdonald sobre a cultura americana) caiu fora da Encounter mas acabou reaproveitado na bem menos lida Tempo Presente.
 
Encounter chegou a vender 30.000 exemplares. A denúncia de 1967 tirou-lhe um terço dos leitores, mas ela circulou por mais 24 anos. Sobreviveu a Josselson, ao Congresso e às demais revistas financiadas pela CIA, mas não à administração incompetente de seus últimos gestores. Maus administradores costumam ser mais daninhos do que a falta de liberdade de expressão.
Redação

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  1. A propósito:

    Braudel, Foucault, Lévi Strauss e a CIA

    por Pablo Pozzi       26.Jun.17

    Foi desclassificado um documento de trabalho da CIA que fala do processo visando influenciar a intelectualidade francesa. Designa-o, justamente, como “guerra cultural” antimarxista, e já vem estando muito amplamente documentado. Essa guerra prossegue até aos nossos dias, e é muito interessante comparar o perfil dos intelectuais que a CIA considera mais eficazes para os seus objectivos com certas figuras “de esquerda” com lugar cativo na nossa comunicação social.

    A Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana acaba de desclassificar um documento de trabalho que comprova, e fornece alguns dados novos, a sua política em relação à intelectualidade progressista e de esquerda (PDF). O documento intitula-se «França: a defecção dos intelectuais de esquerda» e descreve, detalhadamente, como captar e influenciar intelectuais, particularmente aqueles cujo núcleo eram a revista Annales, a Ecole des Hautes Etudes, e os que se tomavam como referência Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan, no que encara como «uma guerra cultural». Embora o documento se centre nos intelectuais franceses, os princípios e critérios que enuncia foram aplicados através do mundo. No mesmo descrevem-se as suas tácticas e estratégias para gerar um ambiente intelectual antimarxista a partir da influência sobre os intelectuais pós-marxistas e os críticos do Partido Comunista francês.

    O documento considera que «durante os protestos de Maio-Junho de 1968 […] muitos estudantes marxistas olhavam para o PCF esperando liderança e proclamação de um governo provisório, mas a direcção do PCF tratou de aplacar a revolta operária e denunciou os estudantes como anarquistas». A partir daí surgiram os «Novos Filósofos» que, desiludidos com a esquerda, «rejeitaram a sua aliança com o PCF, o socialismo francês, e as premissas básicas do marxismo». Estes intelectuais pós-marxistas são considerados como muito mais eficazes na guerra cultural do que os intelectuais conservadores da direita, como Raymond Aron. Isto deveu-se a que os intelectuais conservadores se tinham desprestigiado pelo seu apoio ao fascismo. Em contrapartida, os assim denominados intelectuais democráticos, com a sua crítica à URSS e ao comunismo, eram úteis e, sobretudo, eficazes.

    A partir destas considerações iniciais, o documento refere que:

    «Entre os historiadores franceses do pós-guerra, a influente escola ligada a Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel arrasou os historiadores marxistas tradicionais. A escola de Annales, como é conhecida pela sua principal publicação, virou do avesso a investigação histórica francesa, principalmente desafiando primeiro, e rejeitando depois, as teorias marxistas do desenvolvimento histórico. Embora muitos dos seus exponentes pretendam estar dentro “da tradição marxista”, a realidade é que apenas utilizam o marxismo como um ponto crítico de partida […] para concluir que as noções marxistas sobre a estrutura do passado – de relações sociais, do padrão dos factos, e da sua influencia a longo prazo – são simplistas e inválidas.»

    «No campo da antropologia, a influencia da escola estruturalista ligada a Claude Lévi Strauss, Foucault e outros, cumpriu essencialmente a mesma função. […] cremos ser provável que a sua demolição da influência marxista nas ciências sociais perdure como uma contributo profundo tanto em França como na Europa Ocidental.»

    Os autores do documento elogiam em particular Foucault e Lévi Strauss por «recordarem as sangrentas tradições da Revolução Francesa» e que o objectivo dos movimentos revolucionários não era tanto a profunda transformação social e cultural de uma sociedade mas antes o poder. Por acréscimo, segundo o documento, a teoria francesa pós-marxista realizou uma contribución inestimável ao programa cultural da CIA que tentava deslocar os intelectuais de esquerda para a direita, enquanto desacreditavam o anti-imperialismo e o anti capitalismo, permitindo a criação de um ambiente intelectual onde sus projectos podiam ser levados a cabo sem serem molestados por um serio escrutínio intelectual.

    O essencial era não só desacreditar o marxismo como teoria, como também quatro aspectos vinculados entre si:

    1. Fracturar a esquerda cultural em diversos movimentos através do que se denomina «políticas de identidade». Neste sentido, as reivindicações de classe, o conceito em si, e a luta de classes como motor da historia, diluem-se numa grande quantidade de movimentos diversos, sem que nenhum aceite a primazia do conceito básico do marxismo, as classes sociais: estes intelectuais de Nova Esquerda opor-se-ão «a qualquer objectivo de unidade da esquerda».

    2. Desvia-se a atenção do capitalismo (e dos EUA) como causador dos problemas do mundo, para problemas como o consumo, a falta de democracia ou de educação (e a URSS). «O anti sovietismo converteu-se na base de legitimidade do trabalho intelectual».

    3. Torna-se difícil mobilizar as elites intelectuais em oposição às políticas imperiais dos EUA, visando a fracturar sectores médios da classe operária. De facto, sublinha que «há um novo clima de antimarxismo e de anti sovietismo que dificultará a mobilização de uma oposição intelectual às políticas dos EUA».

    4. Equiparava-se o marxismo com «anti-cientificidade», e o compromisso político de esquerda entre os intelectuais é considerado como «pouco serio» e «subjectivo»: os intelectuais da Nova Esquerda estão «menos dispostos a envolver-se e tomar partido».

    Muito do que se coloca no documento não é novo, embora constitua uma confirmação da importância que a CIA atribuiu às novas tendências intelectuais na sua luta antimarxista. Um elemento notável é que não faça quase referência aos volumosos fundos que a CIA destinou a captar intelectuais de esquerda. Por exemplo, Frances Stonor Saunders (A CIA e a Guerra Cultural) indicou que a Agencia não informava o governo norte-americano de que estava financiando diversos projectos «de esquerda» que contribuíram para afastar seres humanos de objectivos igualitários ou classistas. De facto, um dos aspectos que ela revela é que a CIA preferia «marxistas reformados» aos tradicionais conservadores e direitistas. Por «reformados» entendia-se aqueles esquerdistas que se tinham decepcionado com o comunismo, ou eram críticos da URSS.

    Esta promoção de intelectuais «reformados», em especial os pós-marxistas, foi acompanhada por importantes recursos económicos, acesso a editoras e meios de comunicação, e inclusive a nomeações académicas. Assim, refere o documento, diversas obras de personagens como André Glucksmann e Bernard Henri Levy converteram-se em best-sellers. Por exemplo, segundo Tom Braden, que foi director da Área de Organizações Internacionais da CIA, a Agencia comprou milhares de exemplares das obras de Hannah Arendt, Milovan Djilas, e Isaiah Berlin para os promover. Outro exemplo, não mencionado pelo documento, é que a VIª secção da Ecole Pratique des Hautes Etudes, que alojava Lucien Febvre e Fernand Braudel, foi estabelecida em 1947 com um financiamento recebido através da Fundação Rockefeller. E foi depois financiada através da Fundação Ford, incluindo os dinheiros e influencias necessárias para se converter em Ecole Pratique des Hautes Etudes en Sciences Sociales, com legitimidade para outorgar títulos universitários. Como referiu Kristin Ross, no seu livro Fast Cars, Clean Bodies: Decolonization and the Reordering of French Culture (1996):

    «Nas décadas de 1950 e 1960 Braudel, Le Roy Ladurie e outros da VIª Section, criaram o que Braudel denominou ‘uma historia onde as mudanças são quase imperceptíveis […] uma historia onde a mudança é lenta, de repetição constante, de ciclos recorrentes’. Os seus inimigos mais formidáveis habitavam em frente, na [Universidade da] Sorbonne: uma longa linhagem de historiadores marxistas da Revolução Francesa, como Georges Lefebvre e Albert Soboul. E o que estava em jogo era que substituíam o estudo da historia dos movimentos sociais e a mudança abrupta ou a mutação histórica pelo estudo das estruturas, ou seja apagava-se a própria ideia de Revolução. Estes historiadores marxistas [enfrentavam…] colegas modernizados, com larga provisão de fundos, e muito bem equipados com computadores e fotocopiadoras» (pág. 189)

    E isto foi complementado com viagens, bolsas, subsídios, e uma quantidade importante de seminários internacionais destinados a promover tanto a visão de Annales como o estruturalismo de Claude Lévi Strauss. Em síntese, se os intelectuais de esquerda não encontram os recursos necessários para prosseguir as suas investigações, ou para as publicar, então encontram-se subtilmente forçados a aceitar a ordem estabelecida, enquanto adoptam as modas intelectuais hegemónicas para poder encontrar emprego. O resultado é o debilitamento do pensamento de esquerda e da configuração de um efectivo agir revolucionário.

    http://www.deigualaigual.net
    Texto completo en: http://www.lahaine.org/braudel-foucault-levi-strauss-y

    Fonte: http://www.odiario.info/braudel-foucault-levi-strauss-e-a/

     

     

     

     

     

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