Fábricas de Chips: uma contenda geopolítica
por Adão Villaverde e Livio Amaral
A sociedade do conhecimento é identificada como a era das mudanças e transformações mais céleres da história, pois estão em curso alterações estruturais, tanto nos ativos tangíveis, como nos intangíveis, aqueles advindos do conhecimento, do domínio das ferramentas técnicas e da conversão da inovação em valor para as organizações e à coletividade.
A evolução das tecnologias digitais disruptivas do nosso tempo, são determinadas de tal maneira pelos avanços dos semicondutores, que estão presentes em todos os dispositivos eletroeletrônicos, oferecendo respostas desde aos temas cotidianos, até as questões mais complexas das relações em sociedade.
Dominar seu conhecimento, seus mecanismos e sua produção fabril são importantes valores econômicos e geopolíticos e, também, uma questão de segurança nacional, como mostram países e blocos regionais. Sobretudo neste momento de enorme contenda global acercas dos rumos das manufaturas de semicondutores, avultados que foram pela crise da falta de chips no mercado mundial.
Esta realidade foi amplificada, por dois episódios que ocorreram quase simultaneamente. O primeiro, o período da Covid-19, que com seu quadro pandêmico e dramático, catalisou estas reconfigurações e disputas, levando a fechar ou reduzir as produções das maiores plantas destes dispositivos no Pacífico da Ásia, ao mesmo tempo em que aumentava o home office. O segundo, Rússia e Ucrânia, grandes fornecedores de insumos para a produção de semicondutores, tiveram que girar seus esforços para o conflito bélico.
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É neste contexto, que os Estados Unidos da América, que nos anos 1970 detinham quase 70% do faturamento do mercado na área, têm hoje menos de 20%. Fato que fez com que aprovassem US$ 280 bilhões de subsídios públicos para avançar em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação, em setores mais intensivos em tecnologia, para poderem viabilizar a atração de novas fábricas. Sobretudo para reduzir a dependência do leste asiático, que abastece 80% do mercado global na atualidade, valendo lembrar que China e países da União Europeia, também anunciaram ambiciosos investimentos neste campo.
No Brasil, entrou em operação em 2012 a fábrica de semicondutores Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada – CEITEC –, no Estado do Rio Grande do Sul, fruto de uma ampla concertação daquilo que se nomina “Quádrupla Hélice” – governos, academia, empresários e sociedade – que se beneficiou e foi sustentada pela combinação de dois fatores estruturantes:
De um lado, a iniciativa de um conjunto de instrumentos de incentivos governamentais, demandados por empreendedores do ramo da eletroeletrônica, que desejavam que o país tivesse uma política de Estado para a indústria de Circuitos Integrados. Onde destacam-se: a Lei de Informática (1991); o estudo setorial feito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social (2002); o Programa Nacional de Microeletrônica (2002), que ganhou um lugar estratégico na Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (2004); associados aos Programas CI Brasil (2005); ao Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores (2007), o Plano de Ação Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (2007 – 2010); à Política de Desenvolvimento Produtivo (2008) e ao Plano Brasil Maior (2011). E, justamente, naquele momento de decisão de implantação da fábrica, havia uma iniciativa local da municipalidade da capital gaúcha, chamada “Porto Alegre Tecnópole”, com a poio das universidades e seus centros de pesquisas, que estudavam as regiões da cidade com maior potencial tecnológico para atração de investimentos baseados na nova economia, ou seja, intensivos em tecnologia e inovação, que também se somou aos instrumentos acima.
De outro lado, após implantação do empreendimento, da arquitetura de seu processo de governança, do seu planejamento, do começo da gestão, da operacionalidade fabril e da entrada em comercialização dos produtos da empresa, projeto seguiu aquilo que se nomina de “curva de aprendizado e maturação”. Uma evidência empírico-científica, reconhecida internacionalmente, que mostra que cases similares em outros lugares no mundo, levaram no mínimo dez anos para passarem à condição de receitas maiores que despesas.
E quando resultados começavam a aparecer e estudos técnicos apontavam um superavit de R$ 13 milhões para o ano de 2024, sobretudo porque estaria em condições plenas para a entrega de seus já reconhecidos produtos, como: identificação animal, smart cards, pulseiras, tags em veículos, identificações de bagagens, controles logísticos, sensores de controles de medicamentos e o chamado “chip do passaporte”, surgiu a encomendada governamental compensadora da Casa da Moeda, em 2017, por este último dispositivo. Que após desenvolvimento e obtenção de certificação internacional, estava pronto para entrar em produção. Mas eis que incumbência foi inexplicavelmente interrompida, o que certamente, comprometeu esta possível condição superavitária.
E para o estarrecimento de setores da sociedade brasileira e mesmo de fora do país, enquanto mundo investe para implantar fábricas de chips como parte de suas estratégias geopolíticas e comerciais, o governo publicou no Diário Oficial da União, em dezembro de 2020, o decreto nº 10.578, de liquidação da empresa. Em base a um expedito fluxo de caixa autorreferido no Programa de Parecerias e Investimentos – PPI -, que não guardou nenhuma relação com os números do Relatório de Atendimento de Metas e Resultados 2019, nem o Relatório de Gestão 2019 e muito menos o Relatório Administrativo 2019 da empresa, emitidos periodicamente pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Além de contrariar análises de especialistas que previam resultados superavitários para 2024.
De onde conclui-se que, de duas, uma: ou o Tribunal de Contas da União, que já apontou irregularidades neste processo, orienta agora pela remoção da liquidação do PPI, levando executivo a anular o decreto emitido; ou um novo governo terá a inexorável responsabilidade de preservar a CEITEC, única fabricante de chips na América Latina, como um dever soberano de Nação.
Só assim, consolidaremos como prática aquilo que todas as grandes potências do mundo querem hoje, qual seja, ter o domínio, a expertise científico-técnico e o aprendizado fabril a partir da capacitação e manutenção de recursos humanos locais altamente qualificados, para termos independência no setor.
E de forma autônoma, podermos avançar ao menos, na diminuição do deficit da balança comercial tecnológica brasileira, tendo no horizonte estratégico sua quitação e a inserção soberana e definitiva do Brasil no seleto grupo mundial de produção de chips.
Adão Villaverde – Professor Escola Politécnica PUCRS e Doutorando PPgECi – UFRGS
Livio Amaral – Professor Titular do Instituto de Física – UFRGS
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].
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Tem chips e chips. Quão avançados são os chips da Ceitec ? Se eles interessam ao mercado porque a iniciativa privada não tem interesse ? Mas ter esta tecnologia é valor estratégico concordo.
“o governo publicou no Diário Oficial da União, em dezembro de 2020, o decreto nº 10.578, de liquidação da empresa.”
É que o Brasil é agro; é o agro é pop. Basta passar o correntão em todos os cerrados e florestas e encher de soja para gerar os dólares que ficarão nos paraísos e… depois vai pra Miami. Chip? Pra quê?
Eu moro em Manaus, e aqui temos várias fábricas de chips. Acho que o governo federal fez bem em dar fim nesse negócio falido.
EUA e China encontram-se em meio a uma grande guerra tecnológica, batizada de “guerra dos chips“. Guerra esta declarada pelos EUA contra a China ao perceber que o status de potência mundial mais poderosa do mundo está em vias de ser trocado por um, ainda assim invejável, posto de segundo lugar. Em um verdadeiro cavalo de pau, os EUA renegaram todo o antigo e conhecido discurso sobre as virtudes da livre competição econômica, sem a intervenção do estado, e o substituem por um outro, igualmente antigo e conhecido, mas que, até então, para os EUA, sempre foi associado, de maneira pejorativa, a países atrasados e “populistas”. Em meio a essa briga de cachorro grande, entre as duas grandes potências, o mundo é comunicado que a capacidade de projetar e fabricar os cada vez mais minúsculos chips semicondutores passou a ser considerada estratégica. Para os EUA é necessário impedir, a qualquer custo, que a China prossiga em seu caminho de domínio tecnológico capaz de, até mesmo antes do final da década, ultrapassar os EUA no domínio desta posição estratégica. E nós aqui no Brasil, o que fazemos diante disso? Ah! Nós aqui destruiremos nossa biodiversidade amazônica para fortalecer o agronegócio e nos posicionarmos como o maior exportador de alimentos do mundo; ainda que nossa população retorne ao vergonhoso e calamitoso mapa da fome do qual havíamos conseguido escapar não faz muito tempo. &crarr Com um novo governo, que espera-se não venha a ser de continuidade a este que aí está, o Brasil deveria olhar com mais atenção para essa briga de cachorro grande e entrar no ringue, não contra os EUA ou contra a China, mas sim a favor dos nossos interesses estratégicos a médio e longo prazo. &crarr Entretanto, o projeto e a fabricação de chips é uma atividade que requer uma massa crítica de engenheiros e é extremamente intensiva em capital. A importância da formação dos quadros técnico científicos para o domínio dessas capacidades foi aqui subestimada desde a época da reserva de mercado. Coisa que a Coreia do Sul, Hong Kong, Taiwan e a China Continental, silenciosamente e com muito afinco, correram atrás. Fizeram o dever de casa. Hoje, para o Brasil entrar nesta guerra, mais do que necessária para a nossa sobrevivência como nação soberana, com os cofres exauridos após os descaminhos percorridos nos últimos anos, não será muito fácil. &crarr Como fazê-lo então? &crarr A resposta sugerida a esta pergunta segue no próximo comentário: “Em busca do tempo perdido“.
Em busca do tempo perdido: Nesta situação calamitosa na qual nos encontramos teremos que pensar grande ao mesmo tempo em que teremos que reconhecer a nossa humilhante posição de partida. Minha sugestão passa pelos seguintes pontos: 1) Declarar ao mundo que entrar neste ringue é um objetivo estratégico nosso e que pretendemos seriamente envidar todos os esforços para consegui-lo. 2) Declarar que este esforço não será feito contra A nem contra B, mas sim com a ajuda de A, de B e de todas as demais letras do alfabeto que quiserem cooperar com nosso esforço. 3) Estimularemos o projeto e a fabricação de chips no Brasil por todas as empresas internacionais que detêm a tecnologia para isso. 4) Criaremos polos tecnológicos em cidades como Campinas, São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife que possuem alguma tradição na formação de quadros técnicos de qualidade. 5) Em troca dos estímulos de infraestrutura, isenção de impostos, acesso amplo a mercados e outros, pediremos apenas uma contrapartida para a criação de centros de formação de quadros mais qualificados nessas cidades e mecanismos de transferência de tecnologia. 6) Procurar mostrar aos interessados que a instalação em território brasileiro lhes será benéfica do ponto de vista estratégico, já que o Brasil, tendo muito boas relações comerciais com todos os países do mundo, não irá cercear o escoamento da produção e exportação para nenhum mercado eventualmente na lista negra deste ou daquele país. Uma declaração altiva de princípios e fins como esta certamente poderá provocar reações e pressões muito fortes provenientes de alguns atores internacionais. Mas é aí que o Brasil precisará mostrar-se soberano, falar grosso e defender seus interesses com unhas e dentes. Que o tempo perdido ainda possa ser recuperado por um governo atento aos interesses do país. Em tempo: A manutenção da CEITEC é complementar e deve fazer parte das ações estratégicas elencadas acima.
Os comentários abaixo foram atualizados em relação ao que foram publicados antes no post sobre o Xi Jinping em https://jornalggn.com.br/noticia/xi-jinping-assume-terceiro-mandato-como-lider-na-china/