Protagonismo do dólar em xeque? Tudo indica que sim

Tatiane Correia
Repórter do GGN desde 2019. Graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), MBA em Derivativos e Informações Econômico-Financeiras pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Com passagens pela revista Executivos Financeiros e Agência Dinheiro Vivo.
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Maiores credores diminuem participação no mercado de treasuries, e China já tem aparecido como alternativa para os mercados emergentes

Foto: Eric Prouzet via Unsplash

Os Estados Unidos detêm o protagonismo político e econômico no cenário global há muitas décadas, ao ponto de sua moeda local ser usada como referência para as negociações no mercado financeiro internacional.

“O mercado de US$ 25,8 trilhões dos títulos do Tesouro (os treasuries) é o sistema circulatório dos mercados financeiros mundiais – todo o resto depende dele”, destaca o jornal norte-americano The Washington Post, afirmando ainda que é papel das autoridades “manter o mercado saudável” diante da mudança de perspectivas nas taxas de juros de longo prazo e ao elevado endividamento norte-americano.

Porém, esse protagonismo está começando a ser questionado – o que pode inclusive causar mais problemas a um país que tem tido alguma dificuldade em se recuperar da crise gerada pela pandemia de covid-19 e está envolvido com as mais recentes guerras em andamento.

E essa fuga pode ser vista em números: entre agosto de 2022 e agosto de 2023, o Japão (maior credor dos Estados Unidos) diminuiu o montante de títulos em mãos de US$ 1,196 trilhão para US$ 1,116 trilhão, ao passo que a China cortou sua parcela de US$ 938,6 bilhões para US$ 805,4 bilhões no mesmo período comparativo.

Fechando a lista dos cinco maiores credores norte-americanos, estão Reino Unido (US$ 698,1 bilhões em agosto de 2023), Luxemburgo (US$ 365,8 bilhões) e a Bélgica (US$ 316,7 bilhões), segundo dados oficiais do Departamento do Tesouro norte-americano.

O avanço chinês junto aos emergentes

O acirramento do confronto entre Israel – aliado histórico norte-americano – e o grupo extremista Hamas e a guerra entre Ucrânia e Rússia, onde norte-americanos e europeus tem fornecido dinheiro e recursos para o governo de Volodymyr Zelensky conter o avanço do exército de Vladimir Putin, também tem sido visto como pontos de alerta diante do impacto na economia e na política global.

Tem sido a China o país a ocupar os espaços historicamente ocupados pelos Estados Unidos e seus aliados, o que pode inclusive levar a mudanças mais destacadas no desenho geopolítico e econômico.

Um dos exemplos nesse sentido é a política Road and Belt promovida pelo governo de Xi Jinping. Lançada há 10 anos, tal estratégia teve como ponto inicial o financiamento de obras de infraestrutura em diversos países, muitos deles localizados na Ásia.

Além dos projetos de infraestrutura, estão previstos a realização de mais negociações, financiamentos e acordos de investimento fechados em moeda chinesa, como forma de os países evitarem os riscos associados ao dólar norte-americano.

Documento divulgado a uma semana da última edição do Fórum de Cúpula de Cooperação Internacional da Iniciativa Road and Belt revela o avanço dos planos chineses para questões financeiras, como a assinatura de contratos bilaterais de swap cambial com 20 países parceiros e acordos de compensação em yuan com outras 17 nações.

Um exemplo disso foi o recente empréstimo obtido pela Argentina, que conseguiu um empréstimo equivalente a US$ 6,5 bilhões em renminbi anunciado pelo presidente do país, Alberto Fernández, durante visita recente ao país.

Yuan como contraponto ao dólar

Artigo publicado no jornal South China Morning Post lembra que a indústria de valores mobiliários chinesa criou diversos fundos e índices temáticos sobre a estratégia Road and Belt desde que as autoridades reguladoras revelaram a existência de um projeto piloto para instituições estrangeiras emitirem bonds denominados em yuan no mercado de títulos chinês.

Outra medida para aumentar a presença internacional do yuan é o incentivo à emissão de obrigações transfronteiriças denominadas em yuan, ou “panda” bonds, por contas dos baixos rendimentos no mercado doméstico.

Até o final do mês de junho, foram emitidos 99 panda bonds com um valor total de 152,54 bilhões de yuans (cerca de US$ 20,9 bilhões) no mercado de títulos negociados na bolsa da China, assim como outros 46 títulos temáticos na estratégia Road and Belt, em um total de 52,72 bilhões de yuans.

Segundo analistas ouvidos pela publicação chinesa, “as tensões geopolíticas, o desenvolvimento tecnológico e o stress da dívida causado pelo aumento dos custos de financiamento em dólares americanos deverão tornar alguma redução inevitável, tanto a nível mundial como na China, uma vez que os patrocinadores e os investidores demoram algum tempo para se adaptar às novas realidades”.

A publicação destaca ainda um estudo elaborado pela BNP Paribas Asset Management afirmando que a expansão dos BRICS e os crescentes fluxos comerciais e de investimento da China com o continente africano são pontos que favorecem a internacionalização do yuan.

Segundo o estudo, “com os Estados Unidos cada vez mais usando o dólar norte-americano como arma através do uso de sanções financeiras, existe um bom incentivo para que os países africanos (e outros) reduzam o risco do dólar americano e mudem para o renminbi (yuan)”.

O relatório destacou ainda que o Egito, mais novo país a integrar os BRICS, se tornou a primeira economia africana a emitir um panda bond: a emissão ocorreu em maio, com foco no financiamento de projetos sociais e ambientais. Além disso, países como Camarões, Quênia e Tanzânia possuem mais de 5% de sua dívida externa denominada em yuan.

A instituição financeira lembra ainda que, em janeiro, a China retomou as conversas com a Arábia Saudita sobre o comércio de petróleo em yuan. Brasil, China e Rússia – membros originais do Brics e os maiores exportadores e importadores mundiais de matérias-primas e energia – já trabalhavam em conjunto para a realização de pagamentos transfronteiriços em yuan.

Devido às sanções internacionais, a Rússia tem conduzido a maior parte do seu comércio com a China em yuan – como o recente acordo de 2,5 trilhões de rublos (cerca de US$ 25,8 bilhões) para a negociação de grãos, considerado o maior da história de transações de itens alimentícios entre os dois países.

Irã, Venezuela e Indonésia também têm liquidado algumas das suas transações petrolíferas com a China em yuan.

Retaliação ocidental à vista?

Em linhas gerais, o aumento das tensões chinesas com o Ocidente não parece afetar o avanço mandarim em outras economias, uma vez que as negociações com Rússia e outros países em desenvolvimento têm transcorrido sem grandes problemas.

Por conta disso, Estados Unidos e Europa começam a olhar com preocupação para esse crescimento: artigo publicado pelo Council on Foreign Relations, analistas consideram o projeto Road and Belt “uma expansão perturbadora do poder chinês, e os Estados Unidos têm lutado para oferecer uma visão competitiva”.

A “perturbação generalizada” causada pelas políticas industriais chinesas, consideradas “não transparentes e que distorcem o mercado”, também deve ser alvo de discussão na próxima reunião dos Ministros do Comércio do G7, que será realizada nos dias 28 e 29 de outubro na cidade japonesa de Osaka.

“Desde que aderiu à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, a China tem sido repetidamente acusada de fornecer subsídios industriais injustos, resultando em vários casos de litígio na OMC”, lembra a economista Lili Yan Ing, secretária geral da International Economic Association e Conselheira para a região do Sudeste Asiático do Instituto de Investigação Econômica para ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático) e o Leste Asiático.

Em artigo recentemente publicado no site Project Syndicate, Lili Yang Ing lembra de diversas queixas relacionadas ao comércio feito pela China desde 2006 até 20185, envolvendo mercados como a indústria automotiva, peças automotivas, fabricantes de equipamento de energia eólica, alumínio, produtos de frango e veículos elétricos.

“No início deste ano, os líderes do G7 comprometeram-se a combater todas as formas de coerção econômica – mas este esforço poderá ter consequências no longo prazo, uma vez que a China é responsável por 19,4%, 7,5%, 6,8% e 6,5% das exportações do Japão, dos EUA, da Alemanha e do Reino Unido, respectivamente”, diz a articulista.

Caso o G7 decida por implementar medidas anti-coercitivas contra a China, tudo indica que Xi Jinping poderá retaliar. Mas a articulista destaca que é preciso ter em vista o impacto que essa campanha terá para o comércio global e não apenas para os negócios com os chineses.

E caso essa política seja adotada de fato, o G7 poderá incentivar outros países a erguerem suas próprias barreiras comerciais – apenas em 2022, quase 3 mil medidas protecionistas foram adotadas mundo afora com efeitos negativos no investimento, comércio e serviços.

“Embora o valor do comércio global tenha atingido US$ 49,5 trilhões em 2022, a OMC reduziu recentemente a sua previsão de crescimento do comércio para 2023 de 1,7% para 0,8%, citando perturbações comerciais e um abrandamento da produção”, pontua a articulista.

Tatiane Correia

Repórter do GGN desde 2019. Graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), MBA em Derivativos e Informações Econômico-Financeiras pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Com passagens pela revista Executivos Financeiros e Agência Dinheiro Vivo.

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  1. Napoleão Bonaparte, Adolf Hitler e Joseph Stalin tem uma coisa em comum. Todos os três militarizaram as economias dos países que governaram. Os dois primeiros foram derrotados e os países que eles desgovernaram foram obrigados a mudar de rumo após um período de grande estagnação econômica. O terceiro foi vitorioso e a estrutura econômica que ele deixou ficou apodrecendo durante décadas até finalmente entrar em colapso. Altamente militarizada a economia norte-americana cria oportunidades de lucro fomentando e explorando conflitos militares ao redor do planeta, mas os EUA ainda não sofreu em seu território os efeitos devastadores da guerra como a França de Napoleão, a Alemanha de Hitler e a URSS de Stalin. Mas isso não significa que a sociedade norte-americana esteja totalmente isenta dos males provocados pelo militarismo. O mais evidente desses males é o desprezo que sucessivos governos dos EUA devotam às necessidades imediatas de contingentes populacionais norte-americanos empobrecidos e em processos de empobrecimento. A militarização do dólar não vai salvar os EUA. O mais provável é que ele apresse o declinio e queda daquele país. Em algum momento o crescente empobrecimento da população norte-americana se fará sentir e o White Ass Apes Empire vai implodir, não por causa do terrorismo e sim porque a cidadania norte-americana está deixando de ser algo relevante dentro dos EUA.

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