Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Ucrânia: uma questão de tempo?, por Boris Zabolotsky

Nesse um ano ficou claro que tudo vale por uma determinada narrativa, desde imagens de videogames até o famoso mito do "fantasma de Kiev".

Reprodução Twitter

Ucrânia: uma questão de tempo?

por Boris Zabolotsky

Em março de 2022, pouco antes do início da “operação militar especial” russa na Ucrânia, a revista Time publicou em sua capa o título “O Retorno da História”, referindo-se ao conflito. Talvez o tom utilizado pelo editorial tenha sido menos otimista do que a referência à obra de Fukuyama “O Fim da História”. Embora o caráter eurocêntrico e pretensioso de ambas publicações revelasse de modo explícito a visão colonial e racializada de parte da cobertura midiática mainstream e do pensamento ocidental, existe outro fator cujos prenúncios do início de 2022 permearam o debate público desde então, mas sua relevância e apreciação tem caráter subjacente: a questão do tempo.

O conflito na Ucrânia adquiriu centralidade nos enunciados do mundo. O compartilhamento de fotos e vídeos reais ou falsos nas redes sociais tornou cada vez mais indiscerníveis as fronteiras entre o factual e o ficcional. Nesse um ano de conflito, ficou claro que tudo vale para avançar uma determinada narrativa, desde imagens de videogames até o famoso mito do “fantasma de Kiev”. De fato, a espetacularização desse conflito atingiu níveis sem precedentes na história recente. Isso não só mantém as audiências ocidentais entretidas diariamente, mas também alimenta a máquina de guerra da OTAN e seus desejos voyeuristas com a tragédia alheia.

Diante desse debate, as negociações de paz foram substituídas por um veredito externo às partes envolvidas: a Rússia precisa perder a qualquer custo. Ao longo deste um ano, o fator tempo foi manipulado tanto do modo cronológico quanto no fator ideacional para se atingir tal objetivo. No modo da cronologia dos acontecimentos, a narrativa mainstream afirma que a Rússia está perdendo porque não conseguiu conquistar em um mês o segundo maior país em extensão territorial da Europa. O veredito imaginado pelo Ocidente é que Putin teria e tem essa pretensão. Mesmo que assim fosse, pouco se fala das consequências se o Kremlin tivesse, de fato, perseguido uma estratégia de controle total do território ucraniano em poucas semanas. Tal presunção talvez seja formulada a partir de uma autoexpectativa da mimetização do próprio modus operandi ocidental em conflitos anteriores.

O juízo ocidental também definiu peremptoriamente as perspectivas e os cálculos de Moscou: Putin esperava uma “guerra rápida e falhou, logo a Rússia ficará sem munição e será esmagada pelas sanções ocidentais”. A expectativa da eficácia das sanções e seu “efeito de ação lenta”, nas palavras de Borell, ajuda a compor o conto da esperada queda de Putin. Somado a esta narrativa se constitui o fator ideacional do tempo.

Nesse contexto, é apresentado um discurso (neo)colonial que retrata a Rússia “retornando” ao seu “passado asiático” ou “bárbaro”, sendo incapaz de se adequar aos padrões hierarquicamente superiores do ocidente. O retrato temporal que se delineia a partir desta (des)caracterização é uma caricatura que imagina a Rússia como um país preso ao atraso e militarmente inferior. A partir dessa reificação se legitima o envio de armas cada vez mais sofisticadas a Kiev, cuja pretensão visa convencer que a Ucrânia é capaz de impor uma derrota incontestável a Moscou, mesmo que isso signifique lutar “até o último ucraniano”. É por isso, que durante anos alimentou-se ideias aceleracinistas e o radicalismo nacionalista na Ucrânia que desde Maidan se revela de modo incontestável.

No atual cenário, o tema do ingresso da Ucrânia na OTAN tornou-se secundário. O foco principal é o uso do país como plataforma ocidental para provocações ininterruptas à Rússia. A promessa de integração na OTAN é vista pelos nacionalistas ucranianos como um elemento ideacional que serve para manter o conflito com a Rússia em andamento, propulsando continuamente as hostilidades e o engajamento de Kiev em uma guerra por procuração da OTAN contra a Rússia. É por isso que foram abandonadas as discussões sobre status de neutralidade da Ucrânia tampouco se fala de uma moratória da expansão da aliança militar ocidental, condições indispensáveis para uma resolução do conflito.

Do lado ocidental, se construiu uma narrativa que Putin não pretende “parar” enquanto não conquistar toda a Europa, razão pela qual também legitima-se o envio de armas a Kiev. Tal construção revela uma contradição inerente à própria lógica utilizada para fomentar os nacionalistas ucranianos. Afinal, se a Rússia é um “país militarmente atrasado” incapaz de impor uma derrota a um exército tido como inferior, como Putin teria capacidade de conquistar toda a Europa? A partir desta insídia retórica se define o engajamento da OTAN no conflito como uma prática de “temporização política” auto propagante que converte a Rússia em uma “ameaça permanente” nos discursos ocidentais e se aposta na missão de uma guerra contínua.

Desse modo, a guerra na Ucrânia da OTAN contra a Rússia prolonga-se e intensifica-se, aumentando as hostilidades. Se entendermos a violência como a aceleração do tempo, quanto mais o conflito se estende, maiores serão as consequências dele. O tempo e as temporalidades, nesse caso, estão longe de ser dimensões neutras ou naturais – elas criam narrativas e hierarquias e definem os termos de acesso à realidade.

Boris Zabolotsky – Doutorando em Ciência Política na UFRGS e mestre em Estudos Estratégicos Internacionais pela mesma instituição.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

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8 Comentários

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  1. Essa guerra começou quando a OTAN se transformou em OTAR (ORGANIZAÇÃO DO TRATADO ANTI RUSSIA). Quando será que OCIDECADENTE, vai perceber que está na rampa de descida? Quantos paises da aliança são banhados pelo oceano atlântico para ser chamada de atlântica?

  2. Este seu artigo pro- Rússia e anti- ocidente, não existiria caso a Rússia não tivesse invadido um país que não lhe oferecia perigo e ao contrário, vivia lutando em ” seu” proprio território contra milícias plantadas pela Russia.

  3. Fico imaginando o quanto este escritor não teria sucesso como criador de sistema antifurto. Esse enrola até ladrão. Tem a mente fértil esse sujeito, viu?

  4. Excelente texto, proporciona aos leitores pontos de vista mais amplos sobre o conflito, descortinando o viés ocidentalizado e simplista da mídia tradicional que insiste na veracidade da sua narrativa como isenta e superior.

    Para os incautos que possam tachar o texto de anti-ocidente e/ou pró-rússia, como de costume, a falta de capacidade crítica que lhes é característica, principalmente pela absorção por osmose dos tais “valores ocidentais”, lhes impede de compreender o texto.

  5. Boris, no ano passado a tua dissertação de mestrado foi a base para eu desenvolver um exemplo de aplicação do programa R na análise de textos. A análise de sentimentos dos discursos da OTAN no período de 1994 a 2014, no que se refere especificamente a Rússia, Europa e Ucrânia, vai ao encontro da tua interpretação em relação a diferenciação dada ao “outro” ameaçador e externo, e ao “eu”, dotado de valor e, portanto, ocupando uma posição hierárquica superior. Não é a minha área, mas a cobertura da mídia exigia uma leitura dos fatos menos espetacularizada e mais realista. E continua exigindo…

  6. Sebastião e Mauro, procurem se informar sobre o que levou a Rússia a invadir a Ucrânia. Procurem por acontecimentos e discursos e acordos firmados a partir da queda da antiga União Soviética.
    Talvez aprendam um pouco sobre soberania e defesa de seu país e suas etnias. Aliás, isto é coisa que os brasileiros não entendem porra nenhuma.

  7. A Ucrânia é o berço do neonazismo na Europa. Soma-se a isso o fato da Otan ser apenas uma ferramenta americana na luta apavorada contra acesso russo ao Mar Negro e o fato de que foram forjadas eleições desde 2015(coincidência) para um reposicionamento americano, e temos uma repetição da estratégia usada no Brasil, Bolívia, Síria, Líbano, Equador… Esse mesmo Ocidente deixou que houvesse limpeza étnica na Guerra da Bósnia nos anos 90 e agora, enquanto deficientes cognitivos arrotam discurso do Deus, Pátria e Família, os americanos pedem arrego e negociam petróleo com a Venezuela. Está tudo interligado. E a narrativa serve apenas para os tolos que a repetem por aí. Na prática…..

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