A questão da água em São Paulo

Por sergiorgreis

A questão da água em São Paulo: que ideia de cidadania defende o governo Alckmin no interior da práxis de sua gestão pública?

“O governador Geraldo Alckmin (PSDB) disse nesta quarta-feira, 9, que o racionamento de água generalizado na Grande São Paulo não está descartado. Na semana passada, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) admitiu, pela primeira vez, em relatório destinado a investidores, a possibilidade de implantar “rodízio de água” na região “se as chuvas não retornarem a índices adequados”.” (Jornal Estado de São Paulo, 09/04/2014, disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,alckmin-diz-que-racionamento-de-agua-em-sp-nao-esta-descartado,1151390,0.htm)

Um elemento fundamental para a definição de uma concepção de gestão pública – bem como para a devida interpretação a respeito de sua lógica de funcionamento – é a maneira pela qual o agente governamental compreende a razão de ser da sua intervenção, que é o cidadão.

A questão da água, como já venho dizendo há tempos, é bastante válida para avaliá-la – notadamente, em nosso contexto, no caso do governo Alckmin. Aqui temos mais um bom exemplo de como a falta de transparência (ou melhor, a existência de uma transparência condicionada) produz uma noção pobre de cidadania.

Apesar de todos os dados apontarem em sentido contrário, o racionamento (ou “rodízio de água”, em bom tucanês, capaz de tornar a situação crítica uma circunstância quase aprazível, quase gourmet) sempre foi publicamente rejeitado pela SABESP e pelo Chefe do Executivo paulista, sendo considerado quase como uma sandice. 

Já em vigor uma espécie de racionamento branco nas periferias da cidade – pari passu à troca do Sistema Cantareira pelo Guarapiranga e Alto Tietê para beneficiar um conjunto específico e curioso de bairros (altos): Jardins, Pinheiros, Bela Vista –, persiste o declínio diário dos reservatórios (o Jaguari/Jacareí está com 4,88% da sua capacidade, tendo a coluna d’água meros 1,80m de altura*). 

A transparência – que é um dos elementos mais simples e mais importantes na construção de uma noção republicana de gestão, na medida em que é substrato simultâneo da participação popular e, é claro, no caso em análise, do próprio respeito para com as pessoas, para que elas possam se planejar em caso de escassez programada de um item essencial à sobrevivência – não foi tratada como um quesito verdadeiramente sério por Alckmin em nenhum momento.

Na verdade, a exceção que confirma a regra apontada acima é a situação relatada acima. Ontem, pela primeira vez, o governo do Estado de São Paulo reconheceu a clara possibilidade de ocorrer racionamento em breve na região metropolitana. Mas quem foi o sujeito informado do risco? Quem foram os cidadãos reconhecidos como interlocutores necessários para a comunicação de questão tão relevante? Não, não foram os beneficiários da política pública. Não foram as pessoas que precisam da água para suas tarefas tão obviamente mais cotidianas, fulcrais e relevantes. Foram, na realidade, os investidores, preocupados unicamente, por suposto, com a rentabilidade de suas ações.

Curiosamente, o relatório no qual essas informações foram publicadas é chamado de “Relatório de Sustentabilidade”. A ideia central, aqui, no entanto, não é exatamente a preocupação ambiental, embora ela até apareça retórica e imageticamente no documento. A “sustentabilidade” é, na verdade, mais imediatamente financeira, que é a que importa, de fato, para os acionistas. O final da seção que trata da consideração do racionamento é elucidativo:

“O  aprimoramento  permanente  e  a  difusão  do  processo  de  gestão  de riscos  na  Sabesp continua sendo uma prioridade para a companhia, que busca constantemente a prevenção e a redução dos riscos, por meio da identificação e do tratamento de  eventos que possam afetar  o  cumprimento  dos  objetivos  estratégicos,  com  a  possibilidade  de  impactar  os resultados, o capital, a liquidez e a reputação.” (p. 27, Relatório de Sustentabilidade 2013, disponível em http://site.sabesp.com.br/uploads/file/sociedade_meioamb/RS_2013_portugues.pdf)

A sustentabilidade ambiental, que seria um outro alicerce básico a se considerar ao se pensar a concepção vigente de gestão pública – e sua decorrente e necessária conexão com a cidadania –, só aparece como cobrança ou demanda àqueles sujeitos que sequer tiveram, até agora, o direito de saber quando – em razão, principalmente, de uma histórica falta de planejamento da SABESP – terá suspenso seu usufruto do abastecimento de água. Para eles, o governo diz: “Economizem! Em troca, concedemos um pequeno desconto na sua conta.” O bônus, tipo de incentivo a que também corresponde uma determinada visão sobre as pessoas (proclamada como defesa individual do mérito, quando tantas vezes implica transferência atomizada de responsabilidade, desempenho e ônus coletivos e/ou institucionais, para além de identificar no cidadão o ser mais vulgarmente racional-maximizador da microeconomia de boteco), repercute, como outras reportagens já apontaram, na redução de algo como 700 milhões de reais de investimentos para 2014 por parte da sociedade de economia mista supracitada – uma medida para compensar os 800 milhões de reais potencialmente “perdidos” para o cidadão, dados os descontos previstos. As inversões, que poderiam finalmente significar uma razão de ser para o planejamento tão débil da empresa e do governo, são cortadas para beneficiar um conjunto irrisório de “stakeholders” – que, muito possivelmente, não sabem, nem se interessam, sobre qualquer implicação social de um racionamento de água (mas tendem a conhecer, e bem, o EBITDA, e reconhecem o impacto – simbólico – do COSO (parâmetro internacional de controle interno utilizado (ou não) pela SABESP) e da “responsabilidade corporativa)

Em São Paulo, a (sub)cidadania produzida pelo modelo de gestão desenvolvido pelo PSDB, enfim, resulta nessa esquizofrenia: alienação perante conjuntos de informações intrínsecos para sua vida; tratamento diferenciado (por classes, ou por rendas, quem sabe), conforme sua capacidade de influir negativamente na imagem (e no potencial financiamento?) do governo; co-gestão (ou “participação”) no ciclo da política pública apenas no sentido de se ser responsável pela mitigação de problemas criados pelo próprio governo (no interior de uma lógica de incentivos perniciosa em si mesma, já que transfere novamente a questão mal resolvida para a sociedade por resultar no cancelamento de investimentos que poderiam contribuir para atenuar a vigente crise no médio prazo); defesa da sustentabilidade não como proxy ambiental, como necessária técnica de promoção da harmoniosa relação da sociedade com a natureza, mas sim como vetor do capital – este, sim, no limiar, o cidadão mais privilegiado na interação com este governo. Espera-se, enfim, por meio dessa estratégia, elaborar um cidadão politicamente passivo e economicamente responsável – o cliente de sempre do datado esquema do “consumerism”. Às vésperas de uma catástrofe hídrica – que, potencialmente, poderá desvelar parte da blindagem governamental supracitada (colateralmente praticada também pela imprensa), ainda que, como se sabe, já existam movimentos no sentido de se transferir a responsabilidade pelo problema para o Governo Federal – já não bastará mais torcer pelas chuvas, tamanha a gravidade da situação, nem para que os improvisos adotados funcionem (como as bombas de sucção), já que é muito pouco provável que produzam os efeitos necessários. Considerando-se a inevitabilidade do racionamento, caberá à crítica desenvolver um diagnóstico agudo desse cenário e ser capaz de propor, tendo-se em vista o processo eleitoral iminente, alternativas de implementação que redundem, simultânea, imbricada e necessariamente, na constituição de um sentido forte, autônomo, ativo e intrinsecamente político da noção de cidadania na gestão pública e, por evidente, na resolução da crise hídrica a partir da recuperação da capacidade de planejamento do Estado.

*Atualização de 10/04: De acordo com os sistemas da SABESP e da ANA (respectivamente disponíveis em http://www2.sabesp.com.br/mananciais/divulgacaopcj.aspx http://arquivos.ana.gov.br/saladesituacao/BoletinsDiarios/DivulgacaoSiteSabesp_10-4-2014.pdf), o armazenamento do Sistema Equivalente do Cantareira chegou hoje a apenas 11,96% de sua capacidade, sendo que as represas Jaguari/Jacareí, que constituem o seu núcleo, agora estão apenas com 4,71% de sua capacidade útil disponível – a coluna d’água possui somente 1,74m de altura. Com um decréscimo diário entre 0,15 e 0,2% de seu armazenamento total, o esvaziamento total do Cantareira poderá ocorrer em 2 meses, ou menos. Vale lembrar, ainda, que a pluviometria referente ao mês de Março foi a mais alta desde Fevereiro/2013, tendo ficado acima da média do mês. Ainda assim, o Sistema perdeu mais de 3 pontos percentuais de armazenamento de água, o que constitui indício relevante de que, de fato, já entrou em colapso.

Redação

12 Comentários

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  1. A irresponsabilidade e o eufemismo do PSDB

    Estado foi alertado em 2009 sobre riscos no Cantareira

     

    www1.folha.uol.com.br/…/156214-estado-foi-alertado-em-2009-sobre-ri…‎

    13/03/2014 – O Cantareira é responsável pelo fornecimento de água a 8,8 milhões … “Em 2009, houve essa análise [de buscar água em outras bacias] e a …

    A arte utillizada pelo PSDB para manipular as mentes

    Rodízio como substituto de racionamento; ilude

    Linguagem, conceitos e eufemismos são armas importantes usadas pelos senhores do andar “de cima” concebidos por jornalistas para maximizar a eficiência do neoliberalismo e esconder as mazelas e erros dos seus representantes.

     

    1. Pois é, Assis, na verdade

      Pois é, Assis, na verdade havia até mesmo uma pesquisa de 2001 que alertava para o problema, tendo adiantado os problemas que ocorreram em 2004. Neste link é possível recuperar esse histórico e observar as implicações positivas (ou menos negativas) de um racionamento planejado, tempestivo e bem feito: http://site-antigo.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=1563

      Já a pesquisa apontada na reportagem do UOL que vc linkou foi originalmente citada pela Folha aqui: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2009/03/538656-estudo-ve-risco-de-colapso-de-agua-em-sao-paulo.shtml

      Percebe-se que era possível, já naquele momento, extrapolar os dados e observar uma tendência crítica para 2014 em diante, dado o déficit entre produção e consumo de água. E todos os tomadores de decisão importantes sabiam disso, pelo menos desde 2009. De fato, pude entrar em contato com quem, em 2010, tinha consciência de que esses debates ocorriam publicamente em organizações públicas estaduais ligadas à questão. O que ocorre agora não é, em nenhuma hipótese, uma surpresa ou fruto do imponderável. O desafio existia, era complexo, mas nunca foi enfrentado de frente. O grande planejamento implementado foi o de aguardar o sucesso dos ciclos hidrológicos. E, agora, torcer para que as bombas de sucção funcionem até o outro ciclo coincidente, o eleitoral. E depois somos nós, os críticos, que não estudamos, como disse ontem a srª presidenta da SABESP. Lamentável.

  2. Torceram tanto

    Torceram tanto pela seca para dar origem a um “terrível” racionamento de energia, que só não veio porqueo governo federal tinha feito um ótimo trabalho, e agora estão sofrendo, se é que eles se preocupam com isso, que se dane o povo!, o problema e revelando uma total despreocupação com a coisa pública, com sempre fizeram.

    Será que o pig vai tirá-los dessa? Está fazendo tudo que pode … mas acho que vão se lascar. Sinto muito é pelo pessoal de SP.

    Sinceramente torço para que a chuva venha e resolva, dê tempo para um outro governo resolver a questão, e o povo não passe por esta. E o país vai pagar, será uma vergonha internacional.

    Culpa: clara, o psdb no colo do pig. Foi um erro grotesco o psdb se basear só no escudo imoral do pig. Deu nisso.

  3. É o fim da linha para

    o psdb paulista. Vão querer carregar o Alkmin e o resto se safar, mas a incompetência e vulgaridade de propósitos desta turma acabou com tudo o que tocaram, não só a sabesp. É só ver a calamidade que é a TV Cultura hoje e o que foi nos anos Quércia, tão vilipendiado pelos tucanos.

  4. Desde 2011 o Alckmin já sabia

    Desde 2011 o Alckmin já sabia que haveria essa crise de abastecimento. Foi por isso que foi empossada em 27/01/2011 a Sra. Dilma Pena como presidente da SABESP. Só para que o Alckmin pudesse dizer que a culpa é da presidente [da SABESP] Dilma [Pena].

     

  5. Ontem, a cobertura feita pelo

    Ontem, a cobertura feita pelo Jornal Nacional do problema do abastecimento de água em São Paulo, parecia aquelas matérias de revistas de amenidades, praticamente todo o tempo falou-se de como é legal economizar água e sobre o desconto na conta oferecido pelo governo de São Paulo, com depoimentos de moradores da cidade alegremente dizendo como estão fazendo para economizar.

    Nada, rigorasamente nada sobre o descalabro administrativo que permitiu que a situação chegasse ao ponto que chegou, menos ainda sobre os responsáveis.

     

  6. Mas o tal “rodízio de água”

    Mas o tal “rodízio de água” já está acontecendo, ao menos nos bairros mais afastados da Zona Norte da Cidade. Moro no bairro do tucuruvi e já há algumas semanas a água tem sido cortada, ora durante o dia, ora durane à noite.

    No entanto, a “versão oficial” é que não há racionamento, dizem que há “interrupção pontual” para serviços de manutenção.

    É muita cara de pau.

    Daqui à pouco vão dizer que a culpa pela falta d’água, além de São Pedro, que não faz chover, é do Lula, que teria sido visto próximo à represa, bebendo a água com um canudinho porque confundiu a água com cachaça…

    Aguardem, o que vem pela frente é chumbo grosso. A mídia vai transformar um problema de falta de planejamento estadual numa crise do governo federal.

     

     

     

  7. Depois dos rodízios de

    Depois dos rodízios de churrasco, de pizza, de camarão, de carros, etc, “rodízio de água”! Ah, se fosse governo do PT…

  8. Rodízio???

    Em SP é rodízio de água, no governo federal é racionamento de energia, apagão. 

    Em SP à falta de água é culpa da natureza, no governo federal é má gestão, falta de investimento.

     

     

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