Constituição não condiz com o Teto e permite furá-lo, explicam Ayres Britto e Raquel Dodge

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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A Constituição regulamenta furar o Teto por programas de renda, explicam Ayres Britto e Raquel Dodge

O ex-ministro Ayres Britto e a ex-PGR Raquel Dodge – Montagem: GGN /Fotos: SCO/STF/Reuters

A Constituição Federal brasileira é fundamentalmente contraditória ao Teto de Gastos e uma emenda constitucional e uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) recentes garantem, especificamente, o pagamento de Bolsa Família, de auxílios, programas de transferência de renda e de políticas assistenciais para diminuir a pobreza e extrema pobreza no Brasil, sem a necessidade de se cumprir qualquer restrição ou atrelar ao Teto de Gastos.

As informações foram expostas e explicadas pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, e pela ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em entrevista à economista Monica de Bolle, em programa transmitido no Youtube.

“Essa questão do Teto de Gastos exige da nossa parte uma avaliação preliminar”, introduziu Ayres Britto.

“Quando a Constituição fala no título 1º de dignidade da pessoa humana, o faz como um dos conteúdos da democracia. (…) Princípios são normas jurídicas de superior envergadura, além das regras, veículam ideias de vida civilizada. No âmbito dos princípios fundamentais, está a dignidade da pessoa humana, no artigo 1º, inciso 3º. Por que fundamentais? Porque fundam, plasmam, constroem a identidade jurídica do país.”

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O jurista trouxe a introdução para ressaltar que não somente o Teto de Gastos não está constituído dentro da Constituição brasileira, como os fundamentos básicos da Carta Magna vão na contramão dessa tentativa de se restringir investimentos públicos, necessários para o resgate da dignidade da pessoa humana.

“Nós acabamos de vir de uma transição de retomada da democracia no Brasil, com essas últimas eleições, e estamos diante de um impasse”, disse a ex-PGR, Raquel Dodge, sobre o debate do Teto de Gastos.

“[A Constituição garante que] todos os cidadãos brasileiros, dotados desses direitos fundantes, direitos fundamentais a que Ayres se refere, possam ter uma assistência do Estado, diretamente relacionada à condição social em que eles estão.”

Mas para além da questão de base da Constituição brasileira, Dodge destacou que há ainda duas regulamentações da nossa Carta, feita pela Emenda Constitucional 114, de dezembro de 2021, que assegura os programas de transferência de renda e sociais, e posteriormente pelo Mandado de Injunção 7.300, do Supremo Tribunal Federal (STF).

“Eu queria aproveitar para tratar diretamente de duas novidades vindas da própria Constituição a respeito desse tema. E que tem a ver com Teto de Gastos, Lei Orçamentária, e eventualmente com essa discussão recente sobre a necessidade de uma emenda constitucional que viabilizaria o pagamento de rendas básicas”, relatou.

“A Constituição, justamente por causa da pobreza e da extrema pobreza, foi recentemente emendada, na Emenda Constitucional 114, de dezembro de 2021. Ela nem fez um ano ainda. E o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou um mandado de injunção 7.300, em meados do ano passado, dizendo: ‘é preciso cumprir a transferência de renda para atender os cidadãos em pobreza e em situação de pobreza extrema, que aumentou de 2021 para cá, porcausa da Covid, da ausência de vacina no tempo adequado e do desemprego e dificuldade de renda causada pela Covid.”

O que traz a Constituição e suas regulamentações?

A Emenda Constitucional 114 alterou a Constituição, no ano passado, acrescentando a obrigatoriedade de que “todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda”.

O ato, contudo, estabelecia que as normas e requisitos para o acesso a essa renda fosse regulamentado por lei, e “observada a legislação fiscal e orçamentária”. Já o Mandado de Injunção (MI) 7.300, julgado pelo STF em abril do ano passado, determinou que o governo federal era obrigado a, a partir de 2022, a pagar “o programa de renda básica de cidadania para os brasileiros em situação de extrema pobreza e pobreza”.

“Nós estamos diante de uma situação que o IBGE acabou de descrever do seguinte modo: de 2020 para 2021, houve um aumento de 42% dos brasileiros e brasileiras em situação de extrema pobreza. E abaixo da linha da pobreza estão hoje 62,5 milhões de habitantes do Brasil”, expôs Dodge.

No julgamento do MI 7.300, o STF concluiu que o governo de Jair Bolsonaro estava descumprindo a a Lei 10.835/2004. A lei é a que estabeleceu a Renda Básica e um trecho específico dela compromete o Executivo a destinar recursos suficientes no Orçamento para atender ao benefício, sem atrelar estes recursos ao Teto de Gastos, uma medida que foi tornada lei somente em 2016, ou seja, 12 anos depois da Lei da Renda Básica.

“Esta novidade constitucional da Emenda Constitucional 114 é um direito fundamental. Por que? Porque trata de pobreza e extrema pobreza. Trata de um direito fundante, um benefício humanitário. Ao dizer que aqueles que não tem condição humana idêntica ao dos demais, que lhes permita sobreviver, não tem existência digna e não pode gozar de nenhum dos outros direitos como o ministro Carlos se referia”, explicou a ex-PGR.

“Essa é uma categoria de 62,5 milhões de brasileiros que estão ocupados em existir, e não sobra energia para mais nada. Para esses, a Emenda Constitucional 114 estabeleceu um benefício chamado de Renda Básica Familiar. Até então, o Bolsa Família, o Auxílio Emergencial e outras medidas eram previstas em lei ordinária. A Constituição, vendo a situação desses brasileiros, transformou isso em um benefício humanitário constitucional. E para esse tipo de direito (direitos fundamentais), a Constituição não pode impor Teto de Gastos. Seria tirar com uma mão o que deu com a outra”, concluiu.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

3 Comentários

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  1. Mais do que isso, essa emenda do Teto de Gastos é inconstitucional. Em outubro do presente ano publiquei artigo aqui no GGN falando da existência de ADIs paradas no Supremo que contestam justamente a constitucionalidade da referida emenda:
    https://jornalggn.com.br/entenda/a-emenda-do-teto-de-gastos-e-as-eleicoes-presidenciais-de-2022-por-fernando-mundim-veloso/
    Em livro, fruto de dissertação de mestrado em Direitos Fundamentais, demonstro a inconstitucionalidade dessa famigerada emenda. O livro pode ser encontrado no link abaixo:
    https://loja.editoradialetica.com/humanidades/a-inconstitucionalidade-material-da-emenda-constitucional-95-de-2016

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