Os desdobramentos da Reforma Protestante

Por Leonardo J.

Comentário do post “A excomunhão de Martinho Lutero

ESCLARECIMENTO SOBRE LUTERO E A REFORMA

Existe muito desconhecimento sobre Lutero e os reformadores em geral. A obra deles, e a reforma mesma, são pouco estudadas. Aliado a isso existe uma concepção anti-protestante bastante disseminada em países de origem católica, concepção esta arraigada graças a propraganda da igreja católica contra a reforma e seus líderes. O resultado são informações detrurpadas e desencontradas sobre a reforma e os reformadores, sobretudo sobre Lutero e Calvino, os mais importantes e famosos. Muitas vezes as pessoas falam inverdades e disparates, não por má fé, mas sim por desconhecimento e pela propraganda católica.

A reforma não foi somente uma reforma religiosa, mas também politica, econômica e social, e não surgiu simplesmente da mente de uma meia dúzia de religiosos, de uma hora para outra. Ela foi o resultado de décadas de insatisfação crescente com as doutrinas e as práticas da igreja católica, sobretudo nos povos que não habitavam a Itália, além do desfecho de um longo processo de crítica filosófico-teológico que se gestava entre  intelectuais no interior das universidades e da própria igreja.Antes do renascimento não era crime, punivel com a fogueira, fazer críticas à igreja. Somente quando estas críticas transbordaram os muros das universidades, alcançando as ruas das nascentes cidades, é que a situação se tornou impossível de ser tolerada pela igreja, pois aí a crítica intelectual se tornou crítica social e política. 

A reforma foi um dos acontecimentos mais importantes da modernidades, só sendo superada pelas revoluções burguesas dos séculos 17 e 18. Ela mesma foi uma das condições para a eclosão destas revoluções, sendo que na Inglaterra a participação dos protestantes de origem calvinista foi determinente para a revolução inglesa, na luta contra o absolutismo. Mais do que isso, na Inglaterra a revolução começou dentro das igrejas, com os “pastores pregando contra o rei do alto dos púlpitos”, como diz Hobbes, testemunha ocular dos acontecimentos. 

Lutero não inventou a reforma, e nem mesmo a iniciou somente por causa das indulgências. A prática das indulgências já era condenada por membros das altas herarquias da igreja, como Erasmo, e nem por isso foram perseguidos ou iniciaram uma guerra contra a igreja. Lutero foi o gênio, intelectual e político, que sintetizou todo o descontetamento religioso e social e o aglutinou na reforma. 

Desde meados do século 15, a insatisfação religiosa era imensa na Europa. Deve-se lembrar que, naquela época, religião não era simplesmente uma questão de foro íntimo, a religião e a sociabilidade eram um amálgama único, a religião dominava a sociedade e, portanto, uma insatisfação religiosa era o mesmo que uma insatisfação social. A população urbana, que começava a se escolarizar, consumia ávidamente textos de cunho religioso e, sobretudo, de crítica ao papado e à igreja em geral. As doutrinas católicas eram discutidas e constestadas. Antes de Lutero, vários outros indivíduos tentaram encentar uma espécie de reforma na igreja, acabando por fracassar. Na época de Lutero, a insatisfação religioso/social atingia altos níveis, que aumentavam ainda mais com a expoliação da igreja contra a população feita através das indulgências e dos altos impostos clericais. Havia, portanto, condições sociais para o desenrolar da reforma. Sem tais condições sociais, Lutero nunca teria conseguido vencer a igreja, e teria tido o mesmo destino de seu antecessores: a cadeia ou a fogueira. 

Inicialmente Lutero não queria se separar da igreja. Seu objetivo era uma reforma no interior da igreja. Para isso, tentava a todo custo convencer o papa de suas posições e atacava somente alguns clérigos, que ele considerava estarem “enganando o papa”. Seus textos iniciais mostram isso de forma clara: a todo momento ele poupa o papa e defende ele e a igreja. Contudo, cedo veria que a questão não se resumia somente a alguns clérigos, e o momento em que isso aconteceu foi justamente quando, não aceitando qualquer diálogo com Lutero, o papa emite sua bula de excomunhão, e exige que Lutero seja extraditado para ser “julgado” em Roma. Neste momento, Lutero, até então fiel à igreja, e buscando diálogo com o papado, rompe com ela e radicaliza a reforma. 

Muito se diz sobre a aliança de Lutero com os príncipes alemães. Lutero, ao contrário de Calvino, não aceitava a interferência secular na igreja, e nem a interferência da igreja na vida secular. Seu texto sobre a autoridade secular mostra isso de forma clara. Para ele, o poder civil e a religião eram domínios distintos, que se relacionavam, mas que eram autônomos entre si. Lutero tentou a todo custo não ser dominado pelos príncipes alemães, mas a realidade não permitia que ele os rejeitasse. Vale lembrar que a igreja católica, ao contrário de hoje, possuía exércitos e aliados militares, e estavam prontos para marchar até a Alemanha e aniquilar a reforma. Lutero só tinha uma opção: aliar-se aos príncipes e permitir que eles controlassem parte da reforma. Do contrário, seriam esmagados e a reforma estaria perdida. Com os príncipes alemães a favor de Lutero, a igreja não pode avançar sobre os reformadores, pois iniciaria uma guerra sangrenta e custosa em que muito dificilmente saíria vencedora. Aos poucos, para grande desgosto de Lutero, os príncipes alemães foram ganhando cada vez mais poder e dominando cada vez mais os rumos da reforma e a organização instituicional da nova igreja. 

Outra questão é o anti-semitismo de Lutero. Lutero era realmente contrário ao judaísmo, mas não por motivos raciais e sim religiosos. Sua condenção era contra o judaísmo enquanto religião e seu ataque ao judeu era contra o praticante do judaísmo e não exatamente contra o individuo por suas origens étnicas. A hostilidade contra os judeus era algo disseminado na cristandade, bastando lembrar a expulsão deles da penísula ibérica, a perseguição que sofriam na Rússia e a hostilidade na itália, como o mercador de Veneza bem exemplifica. Lutero não era hostil somente contra os judeus, mas também contra os mulçumanos, os arministas, os batistas, os papistas (seus alvos principais), os reformistas de tendência pelagiana, e outros. Todos por motivos de doutrina religiosa. Um dos poucos grupos com o qual ele simpatizava em partes eram os católicos ortodoxos. Mas seus ataques a estes grupos eram, fundamentalmente, de natureza teólogico-religiosa. O problema é que Lutero era extremamente virulento, exagerando na agressividade, com pouca moderação nas palavras, por isso acabava se expressando em termos totalmente impróprios, muito ao contrário, por exemplo, de Calvino, que fazia suas críticas de maneira muito mais serena.

Mas Lutero tinha inúmeros aspectos humanistas em seu pensamento. Defendia a escolarização universal e gratuita para as crianças de todas as classes, assim como a proibição do trabalho infantil. Era a favor da participação ativa das mulheres na vida da igreja, inclusive no ministério, como pastoras. Era a favor do desenvolvimento cientifico e técnico. Não apoiava a interveniência eclesial na vida política laica, sendo ele um dos primeiros formuladores da tese da separaçaõ entre o mundo secular e o religioso. 

O último ponto a se destacar é sobre a questão da livre análise da bíblia. Lutero nunca defendeu que as pessoas lessem o que quisessem na bíblia, ou que qualquer pessoa retirasse dela a doutrina que bem entendesse. Lutero era a favor da leitura criteriosa e rigorosa da bíblia, foi  o que ele mesmo fez.  A expressão “livre exame” foi dada por seus seguidores posteriores. A concepção de Lutero sobre o exame livre da bíblia era o de compreendê-la a partir dela mesma, em sua imanência, guiado pelo espírito santo (ora, Lutero acreditava em Deus), e que não fossem interpostas na leitura compreensões oriundas de preceitos estranhos a ela, como doutrinas filosóficas, políticas ou teológicas. Ou seja, que a única autoridade fosse a própria bíblia e Deus, e não nenhum homem, fosse ele uma autoridade religiosa ou não. A rigor, para ele, a bíblia era só um meio de Deus falar com os homens, sendo que a doutrina mesma só viria do próprio Deus, daí ele dize que “nenhum homem, nenhum concílio, nenhum anjo pode fazer passar algo diferente como sendo o evangelho”. Sua ideia do livre exame era de que os homens tivessem acesso direto à bíblia e, guiados por Deus, a compreendessem em sua verdade própria.

É claro que o desenrolar da história levou a reforma para outras condições, passando da perspectiva revolucionária para a reacionária. Mas antes que isso acontecesse, a reforma e seus desdobramentos revolucionaram a Europa durante cerca de um século levando a impactos profundos na sociedade. Neste sentido é bom lembrar as próprias revoluções burguesas que transformaram progressistamente a sociedade até se tornarem reacionárias. Os frutos progressistas da reforma são diversos que, de um modo ou outro, permaneceram. Neles se encontram os ideais da revolução inglesa, a ideia de federalismo (que começou entre as igrejas calvinistas da suiça e Inglaterra), a valorização do conhecimento, a separação entre igreja e estado, a ideia dos direitos universais do homem, e muitos outros que surgiram no interior do movimento protestante, movimento do qual Lutero foi um dos mais importantes líderes e iniciadores.

Luis Nassif

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