Como o novo rei britânico lidará com as dívidas históricas do colonialismo e da escravidão?

Victor Farinelli
Victor Farinelli é jornalista residente no Chile, corinthiano e pai de um adolescente, já escreveu para meios como Opera Mundi, Carta Capital, Brasil de Fato e Revista Fórum, além do Jornal GGN
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Antes de ser coroado como Charles III, o então Príncipe de Gales fez declarações reconhecendo o “sofrimento inimaginável” causado em colônias

Charles em visita a Gana (foto: Twitter The Royal Family)

O reinado de Charles III como monarca do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte se iniciou oficialmente após seu reconhecimento por parte do Parlamento Britânico, nesta quinta-feira (8/9), pouco depois do falecimento de sua mãe, a rainha Elizabeth II.

No entanto, a coroação do novo rei pode tardar alguns meses, e deve acontecer somente em meados de 2023. Antes disso, Charles terá que enfrentar desafios e dívidas histórias de sua família com respeito, principalmente a temas como o colonialismo e a escravidão promovidos por seus antecessores nos últimos séculos.

Embora o reinado de sua mãe tenha sido marcado pela independência de muitas antigas colônias britânicas na África, Ásia, Oceania e Caribe, não é menos verdade que seu país resistiu como pode em boa parte desses processos.

O fato é que o Reino Unido se viu incapaz de se impor contra os diversos movimentos independentistas africanos e asiáticos devido às consequências da Segunda Guerra Mundial, que destruiu boa parte do poder militar do Reino Unido – situação similar ao que aconteceu nas colônias portuguesas e espanholas no início do Século XIX, após a invasão napoleônica à Península Ibérica.

Vítima do colonialismo

A linguista nigeriana Uju Anya, professora da Universidade de Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, manifestou no Twitter o sentimento daqueles que vivenciaram o colonialismo britânico na África.

“Se alguém espera que eu expresse alguma coisa além de desdém pela monarca que supervisionou um governo que patrocinou o genocídio, que massacrou e deslocou metade da minha família e cujas consequências aqueles que estão vivos ainda tentam superar, podem continuar a pedi-lo a uma estrela”, afirmou a acadêmica.

Anya afirma ser uma “filha legítima da escravidão e do colonialismo britânico”. Seu pai é nigeriano e sua mãe nasceu em Trinidad e Tobago. Se conheceram em Londres, nos Anos 59, e se casaram. Logo depois, se mudaram para a Nigéria, onde ela nasceu.

“Fico profundamente ofendida com a noção de que os oprimidos e sobreviventes da violência têm de mostrar respeito quando os seus opressores morrem (…) há pessoas em todo o mundo que estão a celebrar a morte desta mulher, não porque sejam vis ou frias, mas porque o seu reinado e a sua monarquia foram violentos, por extensão”, completou Uju Anya.

Índia-Paquistão, Suez e Malvinas

Outro exemplo de que o reinado de Elizabeth II não foi tão anticolonial como se apregoa foi o fato de que o Reino Unido, já durante seu período, continuou alimentando o conflito entre Índia e Paquistão, que levou à divisão da antiga colônia no subcontinente indiano.

Também foi o reinado marcado pela invasão do território do Egito por parte de uma tríplice aliança entre Reino Unido, França e Israel, em 1956, no que ficou conhecida como Guerra de Suez – o conflito terminou graças a uma reação egípcia em aliança com a Síria, dois países terminaram se unindo na República Árabe Unida, que durou entre 1958 e 1962.

O último conflito colonialista promovido pelo Reino Unido durante o período de Elizabeth II aconteceu pertinho do território brasileiro, nas Ilhas Malvinas, conhecida pelos britânicos como Falklands.

Em 1982, militares britânicos e argentinos se enfrentaram pela soberania do arquipélago que fica a cerca de 600 quilômetros da costa do país sul-americano, e mais de 12 mil quilômetros do país europeu. O Reino Unido venceu a guerra, e exerce o controle sobre as ilhas até hoje, apesar das tentativas da Casa Rosada de reaver o território pela via diplomática.

Escravidão

Já a relação do Reino Unido e da Família Real Britânica com a escravidão podem ser considerados ainda mais antigos, por registros que datam desde o início das grandes navegações, quando o comércio de negros escravizados eram uma das principais atividades da Companhia Britânica das Índias Orientais, que dominou o comércio nos mares do planeta entre 1600 e 1874.

Apesar de que o Reino Unido proibiu formalmente o comércio de escravos em 1807, sabe-se que muitos navios ingleses continuaram a atuar nesse ramo durante as décadas seguintes.

Após séculos de caça e genocídio de tribos inteiras no oeste da África, foi justamente o então príncipe Charles, em 2018, quem ofereceu o primeiro pedido de desculpas formal a respeito do tema.

Em uma visita a Acra, capital de Gana, o Príncipe de Gales reconheceu que o colonialismo e a escravidão foram “o capítulo mais doloroso das relações entre os países de Europa e da África (…) o tráfico de escravos foi uma terrível atrocidade, que causou um sofrimento inimaginável e deixou uma mancha que nunca se apagará na história do nosso mundo”.

Agora, caberá ao mesmíssimo Charles III, como monarca, mostrar que a Família Real é capaz de passar das palavras para as ações de reparação àqueles povos que sofreram com a violência por ele mesmo reconhecida.

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Victor Farinelli

Victor Farinelli é jornalista residente no Chile, corinthiano e pai de um adolescente, já escreveu para meios como Opera Mundi, Carta Capital, Brasil de Fato e Revista Fórum, além do Jornal GGN

1 Comentário

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  1. Bem assim o atual herdeiro do rei Leopoldo II reconheceu as atrocidades praticadas por seu antepassado contra o povo do Congo. Só que algum tipo de reparação ficou para as calendas!

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