O verdadeiro lar de Mandela; por Marta Rodríguez

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Marta Rodríguez

JOHANNESBURGO – Nelson Mandela deixou escrito que em Alexandra teve “um lar mas não uma casa”, enquanto em Soweto construiu sua casa, mas não seu lar. Mandela foi um jovem de gueto, de township, como denominou o apartheid nos bairros que concentravam sul-africanos não brancos.

Cinco dias após sua morte, Soweto continua celebrando, a ritmo de baile e cantos, a vida e o legado do homem que desmantelou o regime racista. Em Soweto Mandela viveu com sua segunda mulher, Winnie, e as duas filhas pequenas do casal. Foi pouco tempo porque, poucos anos após casar-se, o apartheid condenou o então advogado e líder do Congresso Nacional Africano a 27 anos de prisão. Quando foi liberto, em fevereiro de 1990, já era um ícone global da paz, mas regressou a um lar que já não reconheceu como aquele que havia deixado há três décadas. Pouco depois, em 1994, Mandela se converteu no primeiro presidente eleito por voto universal. Deixou a casa da rua Vilakazi de Soweto e o resto é história.

Essa rua, na qual nos anos setenta também viveu o arcebispo e premio Nobel da Paz Desmond Tutu, é a mais midiática do mundo nestes dias de dor e luto. Milhares de pessoas desfilam todos os dias e mostram sua dor com refinados cantos improvisados, um autêntico presente para as lentes das televisões que estabeleceram suas equipes ali.

Há alguns anos a casa de Mandela foi convertida em um museu que deu certa pátina à rua e ao bairro Orlando West de Soweto, ao qual pertence. Restaurantes, lojas, venda ambulante e até dois museus em poucos metros são os pontos de interesse. Até os alvos sul-africanos e turistas de meio mundo se atrevem a sair de seus carros em Vilakazi.

A alguns quilômetros ao norte, esse lar do qual falava Mandela ao se referir à sua casa do township de Alexandra continua em pé. Um mar de barracas precárias e casas de um andar só, sem banheiros públicos decentes. O gueto mantém a feição que tinha nos anos quarenta, quando um jovem Madiba aterrissou em Johannesburgo fugindo de um casamento arranjado pelo chefe de sua tribo em Qunu, a localidade onde será enterrado no domingo.

Há guetos e mais guetos e Alexandra ainda se encaixa na descrição de bairro escuro ao cair da noite, com casas sem luz nem água e ruas cheias de lixo. O século XXI chegou em forma de celulares, de carros e vans, que são o melhor transporte público com o que conta o negro pobre sul-africano.

Alexandra olha de canto de olho os festas e a atenção midiática que acordam seus colegas de Soweto. “Jornalistas? Não veio ninguém ver-nos aqui”, se queixa um dos vizinhos do township sentado em uma dessas lojas de doces de rua.

Demasiada pobreza. Algum que outro fim de semana aparece um grupo de brancos que quer ver in situ em quê consiste isso de ser pobre. Param a van, descem, fotografam e vão embora por onde vieram. Turismo de township.

Na Sétima Avenida de Alexandra, uma grade negra esconde um pátio onde está a casa na qual o jovem Mandela ancorou recém chegado a Johannesburgo. Uma placa azul na fachada lembra que, como a de Soweto, foi declarada patrimônio nacional. Ao lado uma placa detalha toda a história relacionada com o ex-presidente. E nada mais.

A diferença da de Soweto, que agora é um museu, é que a de Alexandra mantém seu uso como residência. Alguns meninos pequenos jogam descalços no pátio, surpreendidos pelo interesse que essa casa desperta. “Era de Madiba, que já não está”, dá a bem-vinda Phamphala, de 11 anos, que aponta a uma mulher jovem, que a poucos metros de distância está lavando roupa em um balde vermelho, no meio da rua. A mulher chama-se Mujue e vive na mesma casa de Mandela. “É como viver em qualquer lugar”, diz um pouco incomodada, para confessar que, se pudesse, se mudaria a uma casa maior.

Essa casa de tijolos é minúscula, encaixada entre outras duas maiores e uma única janela. Diante, uma oliveira dá um pouco de sombra a uma dúzia de flores que os vizinhos deixaram em honra de Mandela. Nada mais.

Ao outro lado, o Centro de Interpretação do Patrimônio se impõe, por altura e arquitetura moderna, entre tantos barracos. As portas estão fechadas e o interior vazio.

Ao fundo se perfilam os modernos edifícios de Sandton, o centro financeiro do continente. Sandton e Alexandra, as duas Sudáfricas que deixa Mandela. Riqueza e pobreza extrema convivendo em paz, mas sem misturar-se.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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