Movimentos estratégicos de Rússia e China provocam desdolarização da economia global

Especialista explica papel de Moscou e Pequim na perda do poder do dólar e como o Brasil se encaixa no novo cenário do século XXI

Por Lucas Baldez

Na Sputnik Brasil

Enquanto sofre cada vez mais restrições econômicas dos Estados Unidos e de seus aliados, a Rússia vem ampliando relações bilaterais com a China, a Índia e outros países fora do eixo ocidental. Nesse processo, outras moedas passaram a ser usadas como meio de pagamento em transações comerciais e financeiras.
O sucesso da descentralização financeira levou a discussões sobre medidas semelhantes em diversas nações. O Brasil, por exemplo, iniciou o debate quanto a uma moeda única para negociações com a Argentina, com países do Mercosul e até no âmbito do BRICS.

A ideia avaliada pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi celebrada pelo chanceler russo, Sergei Lavrov, em entrevista à Sputnik, no dia 2 de fevereiro. Segundo ele, a “proposta de Lula de moeda do BRICS é uma medida além de regional, mas global”.

Segundo o especialista em relações internacionais Mauricio Metri, há um sólido processo de desdolarização do sistema internacional em curso.

Em entrevista à Sputnik Brasil, o professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) do Instituto de Economia da UFRJ explicou que a tendência de substituição do dólar por outras moedas se acentuou nos últimos quinze anos justamente em função da aplicação de sanções financeiras pelos Estados Unidos.



Ele aponta que, com o cerco econômico promovido pelo Ocidente, “tem havido um esforço tanto dos países alvos quanto daqueles cujos interesses estratégicos são atingidos”.

Segundo Metri, a Rússia, a China e outras nações “buscam contornar o território monetário do dólar e a violência das sanções”. O especialista avalia que a desdolarização “tornou-se um objetivo da política externa” desses países.

“Interessante notar que os esforços para a desdolarização são algo sobre o qual as próprias autoridades dos Estados Unidos têm consciência clara. E, por óbvio, não assistirão passivos a esse processo, em razão dos privilégios decorrentes da posição do dólar”, alerta o professor.

Por isso, em sua avaliação, não será surpreendente se, em resposta, Washington empreender iniciativas estratégicas em defesa do dólar, como em 1971, com o abandono unilateral do sistema de Bretton Woods, provocando o fim do lastro em ouro, e em 1979, com o choque dos juros, lançando o país e parte do mundo em severa crise econômica.

“Por um lado, se você olhar os dados, eles vão lhes mostrar que, na verdade, ainda há um amplo e estável domínio do dólar em diversos índices de uso de moedas internacionais. No entanto, por outro lado, olhando com atenção, você vai perceber que existem movimentos estratégicos, empreendidos sobretudo por Rússia e China, que incidem diretamente sobre os pilares de sustentação do dólar como moeda de referência internacional desde sua ascensão no final da Segunda Guerra Mundial”, afirma o professor.

Dentre algumas iniciativas, ele destaca a precificação do petróleo em moeda diferente do dólar, como quando a China lançou seus primeiros contratos futuros de petróleo bruto em yuan, a criação do Arranjo Contingente de Reservas e do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) do BRICS e os efeitos que a Nova Rota da Seda vem tendo para a projeção da moeda chinesa no espaço eurasiático.

“Se os dados revelam uma expressiva resiliência do dólar, eu diria, contudo, que suas bases de sustentação estão sob forte ataque e em pleno processo de erosão”, aponta Metri.

Projeção russa permite ‘iniciativas de desdolarização’

Segundo o especialista, Rússia e China passaram por profundas transformações ao longo dos últimos 20 anos, em termos de projeção de seu poder e sua riqueza.

Ele afirma que os países, cientes de suas posições no tabuleiro global, passaram a promover parcerias estratégicas em “diversos temas sensíveis das relações internacionais”, como a Organização para Cooperação de Xangai e o BRICS.

“A China tornou-se a maior economia do mundo, o maior exportador mundial e o segundo maior investidor direto estrangeiro líquido. A Rússia, por sua vez, depois da paz punitiva a que foi submetida nos anos 1990, conseguiu reconstruir sua economia e realizar uma revolução na ‘arte da guerra’ com o desenvolvimento dos artefatos supersônicos em 2018, reassegurando o princípio de ‘mútua destruição'”, destacou.

Segundo Metri, este novo contexto internacional tem permitido que a Rússia, assim como muitos países alvos das sanções dos EUA, consiga resistir ao cerco econômico, “cuja efetividade é muito baixa, para não dizer nula, em termos dos objetivos da política externa de Washington”.

“A projeção russa recente tem permitido a ela [Rússia] empreender iniciativas de desdolarização, mesmo sob a violência das sanções”, diz.

Como o Brasil se encaixa neste novo cenário?

Mesmo sem a mesma projeção de China e Rússia, o Brasil também é importante peça no novo xadrez internacional por sua liderança entre países emergentes. Metri aponta que, entre 2003 e 2016, nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), o Brasil começava a atuar diretamente na construção de uma ordem mundial multilateral.

Ele lembra que foi na VI Cúpula do BRICS, em Fortaleza, em 2014, que os países-membros assinaram os acordos de criação do Arranjo Contingente de Reservas e do Novo Banco de Desenvolvimento.

“No caso dos países latino-americanos, à exceção de Cuba e Venezuela, a questão da desdolarização passa mais pela tendência estrutural de suas economias a ciclos de endividamento externo do que propriamente por conta da política de sancionamento de Washington”, diz Metri.

Nesse sentido, a criação de uma moeda comum para transações econômicas regionais “funciona bem como uma estratégia para contornar o problema da restrição externa”, segundo o especialista. Além disso, uma vantagem deste modelo seria os países manterem suas próprias moedas nacionais, resguardando sua autonomia sobre política fiscal, monetária e cambial.

Segundo o especialista, a proposta é um dos indicativos de que o mundo caminha para a formação de territórios monetários com fronteiras “bem delimitadas”, apesar das tentativas dos EUA de manter seu domínio global.

“O fundamental, no caso, é que o resultado relativo à futura ‘desordem’ monetária internacional refletirá as características principais que assumirem as disputas geopolíticas maiores. Nada muito diferente do que ocorreu ao longo de toda a história do sistema internacional desde as suas origens”, afirmou.

Redação

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