Relatório da Polícia Civil no caso Márcio França mostra que a Lava Jato fez escola

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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A investigação do caso Márcio França está em macha e tem muito chão pela frente, mas de berço já lembra o pior do lavajatismo

Marcio França
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Frases em latim, espírito de cruzados anticorrupção, aparente seletividade, cautelares com fundamentação capenga, falta de conexão entre os fatos. A investigação do caso Márcio França está em marcha e tem muito chão pela frente, mas de berço já lembra remotamente o pior do lavajatismo

Por Cintia Alves

“Nemo est supra legis”. Ninguém está acima da lei. Foi com esta provocativa frase em latim que uma dupla de delegados civis caiçaras abriu o capítulo sobre Márcio França (PSB) em relatório destinado ao Poder Judiciário para embasar as medidas de busca e apreensão que foram deflagradas na quarta-feira, 5 de janeiro de 2022.

O documento foi divulgado pelo Estadão um dia depois da megaoperação. Das 212 páginas, o jornal exprimiu a seguinte manchete: “Pivô de investigação, médico condenado a mais de 100 anos de prisão pode ser ‘testa de ferro’ de Márcio França, diz Polícia”. Como fez ao longo de toda a Lava Jato, o jornal dos Mesquita potencializou a voz dos investigadores em detrimento dos investigados.

O inquérito que apura o suposto envolvimento de França em corrupção na Saúde de São Paulo é desdobramento da Operação Raio-X, que já condenou figuras ligadas ao núcleo empresarial do esquema – entre eles, o médico Cleudson Garcia Montali, o tal “testa de ferro”.

O esquema é manjado: as chamadas OSs (organizações sociais) são contratadas em licitações duvidosas para administrar unidades hospitalares e desviam dinheiro público para a gangue a partir do superfaturamento de contratos com terceirizados, diz a Polícia Civil.

ATRÁS DO NÚCLEO POLÍTICO

Na página 13 do relatório verifica-se, passada a fase Raio-X, que a investigação deslocou-se do interior paulista – Araçatuba, Birigui e região – para Santos com um propósito: chegar ao núcleo político. Pois, segundo os delegados, “tais infrações penais não podem ser praticadas sem a conivência de membros do próprio governo.”

Por “governo”, leia-se, a gestão Márcio França à frente do Palácio dos Bandeirantes a partir de março de 2018, quando Geraldo Alckmin (PSDB) renunciou para disputar a Presidência da República.

Os delegados alegam que, apesar de condenações já terem sido impostas, a corrupção revelada na Raio-X segue em curso até hoje. Mas à gestão de João Doria não é atribuída qualquer tipo de “conivência”. Ao contrário: quando aparece no relatório, Doria é o homem que desfez atos de França e jogou vinagre em negociatas de grupos que supostamente orbitam o pessebista.

Mas há outros pontos no relatório de 212 páginas que saltam aos olhos e lembram, pelo menos em parte, a Lava Jato:

APARENTE SELETIVIDADE

1- Antes de tudo, a seletividade e, em alguma medida, a desfaçatez acerca do possível envolvimento de outros grupos políticos que governam São Paulo há muitas e muitas décadas.

Porque se – ênfase no “se” – a narrativa da Polícia Civil estiver certa, e a família França – o ex-governador Márcio, o irmão Cláudio, que é médico, e o filho Caio, que é deputado estadual – tiver ascendência sobre esquemas na Saúde, seria impossível não investigar também os políticos do PSDB citados nas mesmas conversas que embasam o inquérito contra os França.

Várias mensagens insinuam uma espécie de disputa por territórios – ou melhor, pela gestão de hospitais no interior e no litoral – entre as OSs supostamente ligadas aos dois grupos políticos.

São conversas de terceiros (empresários e funcionários dos hospitais) cogitando envolvimento do andar de cima (políticos). Afinal, eles decidem qual cidade vai receber ou não um novo equipamento de Saúde, por exemplo.

DISPUTA ENTRE GRUPOS POLÍTICOS?

Mas para ilustrar a questão da seletividade e da possível disputa entre grupos: em algumas conversas, Caio e Cláudio França são acionados por um empresário desesperado (Franklin Cangussu Sampaio) por manter sua influência sobre a AME Santos, administrada pela OS Pacaembu, do Cleudson Montali. A gestão da unidade estava prestes a ser transferida para outra OS, de propriedade um médico supostamente ligado ao deputado Pedro Tobias (PSDB) e a Antonio Carlos Pinotti Affonso, que foi candidato do PSDB à Prefeitura de Promissão, e que também teria uma OS. Os delegados, contudo, não escrevem linha sequer explicando se os tucanos citados nas conversas seriam ou estão sendo investigados.

Pelas mensagens obtidas pelos policiais, Cláudio chegou a ouvir do empresário desesperado que “a roda gira assim” mesmo, “agora ele [o médico/empresário amigo dos tucanos] pega [a gestão de] Sorocaba, Carapicuíba e Hospital, e deixa [a gestão da unidade do AME em] Santos com a gente, pelo menos”.

Para incrementar o enredo, o empresário procurou o deputado Caio França para abortar, junto à Secretaria de Saúde, a licitação que beneficiou a OS concorrente, argumento que houve descumprimento de regras de publicidade no processo. Ou seja, o litígio seria o caminho já que não havia sinal de acordo político entre os dois grupos.

Para a polícia, Cláudio França “não mediu esforços” para atender o empresário. É certo que os delegados não poderiam investigar o filho de França nem o deputado Pedro Tobias, por causa do foro privilegiado. Mas se querem dar lição de moral no relatório – como deram em vários trechos, lembrando o estilo de redação da turma de Deltan Dallagnol – não dá para fingir que não estão cientes do inteiro teor das mensagens.

A CAUSA PARA BUSCAS E APREENSÕES

2 – Não deixa de ser curioso que alguns investigados sofreram busca e apreensão porque foram praticamente acusados de “obstruir a investigação” ao transportar documentos de hospitais de Santos, operados pela OS do suposto “testa de ferro” de Márcio França, para outros lugares ainda não conhecidos da polícia. Um dos alvos de buscas parece ser apenas o motorista que foi enviado ao local para fazer o transporte.

Todos que fizeram “remoção” de documentos seguiram um “protocolo” e deixaram seu nome e dados pessoais registrados ao fazê-lo. Mas a Civil tratou isso apenas como “descuido” de criminoso. E o melhor: a polícia pediu para buscar na casa dessas pessoas, em 2022, documentos que foram transportados em 2020. Os investigadores só descobriram o transporte no final de 2021.

É preciso que fique claro: depois da Raio-X, os policiais do interior compartilharam dados com os policiais de Santos, mas estes últimos afirmaram no relatório que sem as novas diligências contra Márcio França e outros, as investigações não avançariam.

Se não tivessem descoberto (tardiamente) a tal remoção de documentos para alegar a suposta obstrução da investigação, qual teria sido a fundamentação para as buscas?

AS SUSPEITAS SOBRE MÁRCIO FRANÇA

3 – E então vem a parte dedicada inteiramente a Márcio França. O relatório admite que as suspeitas levantadas contra o político não têm qualquer conexão direta com fatos passados em Santos, que são o objeto do inquérito de fato.

Ainda assim, os policiais listaram as situações suspeitas em torno de França.

Por exemplo: dizem que “entrou no nosso radar que a Orcrim bancaria, pelo menos em parte, a campanha eleitoral de Márcio França à prefeitura de São Paulo”, mas não apresentam nenhuma prova disso, a não ser conversas de terceiros sobre encontros de França com empresários investigados, em Belém e em São Paulo.

Essas conversas apenas indicam que França seria candidato em SP, o que era de conhecimento público. Nada concreto sobre financiamento de campanha aí. Mas a Lava Jato também tinha a convicção de que políticos se envolviam em esquemas corruptos para gerar caixa de campanha.

Contra França usaram ainda o fato de, enquanto governador, ele ter contrariado uma recomendação do Ministério Público ao alçar o “testa de ferro” Cleudson Montali, já advertido por improbidade administrativa, de volta ao comando do DRS, Departamento Regional de Saúde, de Araçatuba. A Civil considerou isso prova de amizade e favorecimento ao empresário. A decisão foi desfeita no governo seguinte.

Outro exemplo do que é usado contra França, mas sem conexão direta com a investigação em Santos: a informação de que a OS Pacaembu administra o AME de Carapicuíba, e que Lucas Pedro da Silva, filho de Wilson Pedro da Silva, um dirigente do PSB estadual, teria virado diretor ali, reforçando assim, na visão dos policiais, “uma forte ligação entre Wilson, Márcio França e outros membros da Orcrim, principalmente com o chefe Cleudson”.

Em outra passagem, os policiais escrevem que Cleudson é chamado por “interlocutores” de “laranja” de França, mas a reprodução textual das conversas colocam essa versão em xeque.

Mas o esforço para envolver Márcio França na investigação está melhor resumido neste trecho do relatório, quando os policiais consideram suspeito que “no período em que ele [França] foi governador, (…) a Organização Social Irmandade da Santa Casa de Pacaembu celebrou vários contratos com o estado de São Paulo, gizando que referida organização social gerenciou os três equipamentos públicos situados na cidade de Santos.” Os três equipamento são AME Santos, Lucy Montoro e PAI Baixada.

Sem provas cabais – e elas não parecem existir ainda, e por isso pediram as buscas e apreensões – essa narrativa equivale a Sergio Moro dizendo que Lula era culpado pois enquanto foi presidente, coisas erradas aconteceram na Petrobras.

Tudo está em fase de investigação. Enquanto isso, Márcio França recebe a solidariedade de Fernando Haddad e Lula – que defendem o devido processo legal, a presunção de inocência e o direito à ampla defesa, sem julgamentos midiáticos – e acusa a Polícia Civil de fazer uma “operação política” em pleno ano eleitoral, para destruir sua imagem e reputação.

Abaixo, o relatório com as 212 páginas. Em tempo: ele começa com outra frase provocativa por parte dos delegados: “Nós temos leis e eu sei ter vontade.”

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Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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