A condenação de Silveira foi exemplar, mas não é um exemplo de Justiça, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O mesmo PGR que pediu a condenação do deputado terrorista se recusa a denunciar Bolsonaro por crimes semelhantes.

Agência Câmara

A condenação foi exemplar, mas não é um exemplo de Justiça

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A condenação do deputado Daniel Silveira pelo STF https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=485660&ori=1 levanta sugere várias questões jurídicas importantes. A primeira, e talvez a mais interessante, refere-se à impossibilidade do réu ser julgado por seu inimigo ou pela vítima do crime.

Nossa constituição cidadã, aquela que o deputado bolsonarista pretendia revogar ao ameaçar Ministros do STF e atacar ferozmente a independência do Poder Judiciário, garante a todos os cidadãos o devido processo legal (art. 5º, LIV) e o direito de ser julgado por juiz imparcial (art. 5º, LXXVIII, §2º c.c. art. 8º, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos introduzida na legislação brasileira pelo Decreto 678/1992).

A ausência de imparcialidade dos juízes ofendidos e ameaçados por Daniel Silveira é um fato que não produziu consequências jurídicas. Prejudicado, ele poderá representar o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos obrigando aquela Corte a decidir o que tem mais valor: a prerrogativa das instituições do Estado de se autopreservar ou o direito dos cidadãos de serem julgados de maneira imparcial apesar de terem conspirado para destruir a democracia?

De certa maneira, o STF se antecipou e deu uma resposta àquela questão. Pressionado por um deputado que atuava como se fosse um terrorista teleguiado pela família Bolsonaro, a Suprema Corte brasileira sacrificou dois princípios constitucionais (o do devido processo legal e o direito a julgamento por juiz imparcial) para preservar a autonomia do Poder Judiciário.

Daniel Silveira não agia sozinho. Ele era apenas um megafone do presidente brasileiro. Desde que tomou posse, sempre que foi derrotado em juízo Jair Bolsonaro ofendeu Ministros da Suprema Corte e fez ameaças contra a autonomia do Poder Judiciário. O tratamento que ele recebe, porém, é diferente daquele que foi dado ao deputado bolsonarista. Isso expõe as fragilidades de nosso Sistema de Justiça.

O mesmo PGR que pediu a condenação do deputado terrorista se recusa a denunciar Bolsonaro por crimes semelhantes. O STF foi capaz de sacrificar um peão do bolsonarismo, mas não se sente suficientemente seguro para dar um xeque-mate no rei dos crimes contra nossas instituições democráticas. O ‘comandante’ de Daniel Silveira ficou impune. Logo, podemos dizer que a condenação do ‘comandado’ foi injusta.

A repressão severa dos crimes cometidos por Daniel Silveira obrigará os bolsonaristas a rever suas táticas? Acredito que não, pois dificilmente um Tribunal consegue interromper um processo histórico. O que nos leva à questões políticas mais importantes.

O que farão o presidente e seus acólitos autoritários e abertamente devotados à reconstrução da ditadura militar? Eles se submeterão ao STF ou redobrarão suas apostas provocando um rompimento definitivo que levará o país inevitavelmente à guerra civil?

Sempre que faz ameaças à democracia, Bolsonaro dá a entender que as Forças Armadas podem ser ou já foram convertidas numa milícia submetida apenas à sua vontade. Alguns militares certamente estão dispostos a servi-lo fielmente em troca de cargos, salários e propinas. Outros, porém, se recusarão a fazer isso.

Enfraquecido num ano eleitoral, o presidente brasileiro tem força para se impor provocando um violento expurgo nas Forças Armadas? Suponho que a resposta seja não. Outros provavelmente responderão essa pergunta de maneira diferente.

Merece destaque aqui o voto do Ministro André Mendonça. Todo mundo esperava que ele votasse pela absorvição de Daniel Silveira. Ao votar pela condenação ele exerceu o direito de decidir de com independência levando em conta apenas o que foi provado no processo. A decisão dele é, sem dúvida alguma, legítima. Ao contrário de seus colegas, André Mendonça não foi publicamente ameaçado pelo réu. O resultado do voto dele, porém, será devastador para as pretensões golpistas.

Jair Bolsonaro pode contar com o Ministro terrivelmente evangélico quando o que está em questão é, por exemplo, retardar um julgamento que poderá comprometer a invasão e exploração criminosa de territórios indígenas. Mas ao votar pela condenação do deputado terrorista, André Mendonça levantou uma muralha entre ele mesmo e as ambições de ruptura violenta defendidas pela familícia.

Todavia, seria um erro acreditar que esse Ministro atuará como um garantidor da constituição cidadã. André Mendonça é defensor de uma versão extremamente moralista do neoliberalismo. Ele não atuará para preservar o sistema constitucional e sim para esvaziá-lo mais e mais até que não reste nada além de um simulacro da constituição cidadã.

A imprensa tem um novo herói. Alexandre de Moraes está sendo proclamado como o salvador da democracia brasileira. A ironia nesse caso me parece inevitável. Moraes foi nomeado pelo arquiteto do golpe de estado contra Dilma Rousseff. Defensor de uma versão do neoliberalismo diferente daquela protagonizada por André Mendonça, o algoz de Daniel Silveira também atua no STF para fragilizar princípios constitucionais que garantem direitos trabalhistas e sociais.

Tudo bem pesado, creio que podemos considerar a decisão comentada não como a restauração da democracia e sim como uma reafirmação do Estado de exceção sob o comando da Suprema Corte. Dentro dessa pseudolegalidade, em que somente o STF pode escolher quem será ou não punido e quando é oportuno meter um bolsonarista a ferros, a familícia certamente não conseguirá mais se impor através de ameaças sem correr o risco de sofrer represálias terríveis.

Anomia sem ruptura. Força bruta com aparência de devido processo legal. O silêncio obsequioso dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica parecem dizer aquilo que Bolsonaro não ousaria admitir em público. A plataforma em que o mito se colocou já apodreceu e ele ficou pesado demais.

O que deveria ser feito para proporcionar a Daniel Silveira a garantia ao devido processo legal e o direito de ser julgado por juiz imparcial? A solução existe. Os juízes pessoalmente ofendidos e ameaçados pelo deputado terrorista deveriam se afastar do caso e a decisão proferida apenas por Ministros isentos. Caso necessário, a composição da Corte poderia ser completada.

Em caso de licença ou impedimento, o art. 40, do antigo Regimento do STF, previa a convocação de Ministros do TFR. O regimento atual permite a reconvocação do Ministro licenciado e disciplina como o quorum de uma Turma será completado mediante a convocação de juiz da outra Turma, mas não especifica como será completado o quorum do Plenário em caso de impedimentos. Portanto, na forma do art. 13, do Regimento do STF, em tese compete ao Presidente da Suprema Corte convocar Ministros do STJ para substituir aqueles que tivessem se declarados suspeitos para julgar o deputado terrorista.

A solução adotada pelo STF no caso Daniel Silveira foi diferente daquela que seria juridicamente possível e aconselhável. Aquele Tribunal preferiu deliberadamente aprofundar o Estado de exceção sob o comando dos seus próprios Ministros. Não sei se isso será bom para o país. Caso a oposição consiga eleger o presidente e obtenha maioria parlamentar essa Suprema Corte de Exceção poderá se sentir tentada a colocar em risco tanto a independência do Legislativo e do Executivo quanto a própria soberania popular.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Fábio de Oliveira Ribeiro

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