Jacques Vergès e a autodestruição da imparcialidade do juiz, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Jacques Vergès e a autodestruição da imparcialidade do juiz

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Hoje terminei de ler o livro “O caso Lula”, coordenadores Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valin, editora Astrea, São Paulo, 2017. O livro não me decepcionou muito. Todavia, minhas expectativas foram confirmadas. Os autores da obra não conseguiram captar toda a profundidade do fenômeno cultural de 2016 e insistiram numa abordagem tecnicista da tragédia que está sendo construída em torno do ex-presidente brasileiro:

“Comprei um exemplar de “O caso Lula” e já li quase todos os textos. Os que não li procurei folhear, me detendo aqui e ali antes de escrever este comentário. Em geral os autores que colaboraram na produção do livro parecem acreditar no restabelecimento da normalidade judiciária. Todos, sem exceção, advogam o reencontro do processo judicial da Lava Jato com os princípios constitucionais do Direito Penal. Os efeitos deletérios do processo midiático da Lata Jato são criticados. Mas o fenômeno cultural de 2016 que abrange não somente a Lava Jato (super explorada) como também a Zelotes (operação esquecida pela mídia para que os barões da mídia consigam impor suas demandas legislativas) não foi objeto de reflexão.”

https://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/reflexoes-sobre-o-espetaculo-da-lava-jato-por-fabio-de-oliveira-ribeiro

Ao terminar a leitura do livro concluir que minhas primeiras observações sobre o mesmo não precisam qualquer reparo. Não obstante, retomo o assunto porque um texto do livro que merece maior atenção e divulgação. Refiro-me ao capítulo “A imparcialidade do juiz”, de autoria de Sílvio Ferreira da Rocha.

Além de detalhar os principais aspectos da questão á luz da Constituição Federal, da Lei Orgânica da Magistratura e da legislação brasileira em vigor, Sílvio Ferreira da Rocha fez uma longa, didática e significativa exposição dos princípios de Bangalore acerca da conduta judicial. Reproduzirei aqui alguns fragmentos para discutir o assunto à luz da tática da ruptura.

“Acerca da imparcialidade, estabelecem os princípios de Bangalore:

A imparcialidade é essencial para o apropriado cumprimento dos deveres do cargo de juiz. Aplica-se não somente à decisão, mas também ao processo de tomada de decisão.

Os comentários são enriquecedores.

Acerca da percepção da imparcialidade afirma, por exemplo:

a imparcialidade é a qualidade fundamental requerida de um juiz e o principal atributo do Judiciário. A imparcialidade deve existir tanto como uma questão de fato como uma questão de razoável percepção (g.n.).

Se a parcialidade é razoavelmente percebida, essa percepção provavelmente deixará um senso de pesar e de injustiça realizados destruindo, consequentemente, a confiança no sistema judicial.

A percepção de imparcialidade é medida pelos padrões de um observador razoável. A percepção de que o juiz não é imparcial pode surgir de diversos modos, por exemplo, da percepção de um conflito de interesses, do comportamento do juiz na corte, ou das associações e atividades do juiz fora dela.” (O caso Lula”, editora Astrea, São Paulo, 2017, p. 173)

Os princípios de Bangalore datam de abril de 2003. Mas eles estavam implícitos na tática da ruptura utilizada por Jacques Vergès durante o julgamento de Djamila Bouhired. Ela foi acusada de terrorismo na Argélia. Ao invés de tentar provar a inocência de sua cliente (o que seria impossível diante das circunstâncias do caso), Vergès optou por confrontar o Tribunal encarregado de julgá-la com uma verdade dolorosa: os franceses também haviam praticado terrorismo durante a ocupação nazista da França e a ocupação militar da Argélia por tropas franceses justificava perfeitamente o comportamento dos nacionalistas argelinos. A França não havia condenado seus próprios terroristas e não deveria condenar Djamila Bouhired porque ela feito a mesma coisa em circunstâncias políticas semelhantes. 

A coragem de Vergés diante da parcialidade evidente dos juízes encarregados de julgar sua cliente transformou o caso de Djamila Bouhired num símbolo internacional de resistência ao colonialismo francês na Argélia. Apesar de todo o esforço de seu advogado, Djamila foi condenada a morte por decapitação na guilhotina. Mas uma condenação pública e internacional ainda maior acabou sufocando a Justiça Francesa e comprometendo a imagem do Estado francês. Em razão disto, a execução de Djamila Bouhired foi adiada indefinidamente e ela eventualmente acabou sendo perdoada ao fim da Guerra da Argélia.

Ao confrontar os juízes de sua cliente, Vergès alegou no fundo que eles eram tão parciais para julgar os atos de Djamila quanto os oficiais nazistas encarregados de julgar e condenar os atos de terrorismo e sabotagem semelhantes praticados por nacionalistas na França ocupada. Portanto, a tática do defensor da militante argelina foi agir dentro do tribunal para desfazer a percepção de imparcialidade dos juízes de sua cliente. Nesse sentido, ele pode ser considerado um dos precursores dos princípios de Bangalore. Isto explica porque tenho insistido no uso da tática da ruptura no caso Lula.

Um pouco mais adiante, ainda discorrendo sobre os princípios de Bangalore, Sílvio Ferreira da Rocha afirma que:

“Se houver crítica da mídia ou crítica de membros interessados do público sobre uma decisão, segundo os comentários, o juiz deve evitar responder tais críticas por escrito ou fazer comentários casuais quando no exercício das funções. É inapropriado um juiz defender razões judiciais publicamente. Na hipótese de informação errada da mídia acerca de procedimentos da corte ou acerca de um julgamento, se o juiz considerar que o erro deve ser corrigido deve fazê-lo por servidor qualificado ou assessoria de imprensa, que poderá emitir uma nota de imprensa para indicar a posição factual ou tomar as providências para que uma correção seja feita.” (O caso Lula”, editora Astrea, São Paulo, 2017, p. 179)

As recomendações contidas nos princípios de Bangalore visam, sobretudo, impedir a autodestruição da percepção de imparcialidade pelo juiz ou pelo Tribunal em casos que se tornam objeto de atenção exagerada da mídia. Elas funcionam como um antídoto para a tática da ruptura utilizada por Jacques Vergés no caso de Djamila Bouhired. Os advogados de Lula parecem ter consciência disto, pois tem provocado reações públicas e processuais de Sérgio Moro.

Embriagado com a fama imensa e a visibilidade ostensiva que foram concedidas a ele pela imprensa, o juiz da Lava Jato já conseguiu se mostrar (e ser visto) como parcial para julgar Lula. Todavia, a Justiça brasileira não foi suficientemente cuidadosa com sua própria imagem. Sérgio Moro não foi afastado dos processos promovidos contra o ex-presidente. É evidente, portanto, que a Justiça brasileira prefere naufragar junto com Sergio Moro. O resultado deste naufrágio não será bom nem para os juízes, nem para o Brasil (cuja imagem internacional já está sendo destruída pelo golpe de 2016).

Fábio de Oliveira Ribeiro

9 Comentários

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  1. justiça tucana.

     

    A justiça brasileira está infestada de tucanos. Do juiz de primeira instância aos tribunais superiores e o STF. Nesse quadro, concordo com o articulista, o tecnicismo jurídico não funciona. A solução seria confrontar essa justiça tucana.

  2. Imagem internacional?
    E qual dos golpistas liga? Desde que vendam o pais a preço de banana no fim da feira e saiam com suas gordas comissões intactas?

  3. Em 1995, em Paris, cursando a

    Em 1995, em Paris, cursando a ENM, tive o privilégio de assistir – in locus – algumas defesa de Jacques Vergès. Inteligente, culto, rápido, hilariante, orátória impecável, domínio completo das matérias e público assistente. Grandes momentos.

    Há um filme documentário sobre sua controvertida e fascinante figura: “L’avocat de la terreur”, seleção oficial de “Un certain regard” no festival de Cannes de 2007.

  4. Isto é tão perceptível ao povo brasileiro que:

    O próprio povo elegerá o Lula presidente do Brasil em 2018.

    Se esta turma cochilar e deixá-lo elegível. 

  5. Em 1995 , na Escola Nacional

    Em 1995 , na Escola Nacional de Magistraura francesa, paradigma das Escolas de Magistratura no mundo, eu (Juiz Criminal estadual) e um colega (este da Justiça Federal de Brasília ele voltado mais para o direito administrativo, campo próprio e originário da Justiça Federal antes dos militares expandiram sua competência para controle revolucionário), distribuimos mais de 200 Constituições Federais de 1988 editadas pelo Congresso Nacional em francês num árduo trabalho de esclarecimentos relativos ao direito constitucional no Brasil e em especial da figura institucional do Poder Judiciário brasileiro, de sua independência e imparcialidade, sempre posta – por eles franceses – como suspeita e não confiável. Convencemos muitos e abrimos janelas de esperanças em outros. Hoje, infelizmente, a partir de fatos concretos como o julgamento do mensalão, da operação Lavajato, do impechment e da implacável perseguição ao Lula constato tosquiada essa impressão que buscamos fazer nascer no meio jurídico frances e internacional (tinhamos colegas no curso de todos os quadrantes do mundo: japoneses, coreanos, europeus, africanos, da america central e latina)… 

    Jaques Vergès era o maior dos tribunos franceses e com o perdão de Djamila, casou-se com ela e tiveram dois filhos…

    1. A julgar pelo seu comentário,

      A julgar pelo seu comentário, sou tentado a supor que você fez parte do Itamaraty.

      Deve ser doloroso para você ver aquele órgão nas mãos de um sujeitinho desqualificado como o José Serra.

      Você faria um grande serviço aos leitores expandindo e compartilhando seu comentário com os demais leitores. 

  6. MAS SE É DESSA FORMA PORQUE NÃO HA PUNIÇÃO?

    Leigo, porem curioso, porque não se escancara tudo, se a justiça está por traz de uma grande conspiração porque não punem a justiça, que mau haveria em puni-los, ou doravante aspéctos da elite social a justiça se torna injusta, parcial e também criminosa? Qua a razão da pacividade das instituições que deveriam punir estes juízes e se notaram a conspiração de algum lugar fora forjada porque a PF não intervém antes que a nação brasileira seja totalmente destruída? Não adianta escrever livro sobre isso ou aquilo se isso ou aquilo acontece e não como freiar. O Brasil juridicamente se transformou em país de 5ª categoria? O senhores do direito a OAB, qual o motivo do silêncio? Fariam parte dessa irresponsabilidade também? Não crível que tudo que está acontecendo não tenha uma explicação e muito menos a velocidade da dilapidação do pratrimônio público e a forma como é feito é muito sinistra e visível que é um processo de assalto a essa nação.

    1. “Não crível que tudo que está

      “Não crível que tudo que está acontecendo não tenha uma explicação e muito menos a velocidade da dilapidação do pratrimônio público e a forma como é feito é muito sinistra e visível que é um processo de assalto a essa nação.”

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