Nepotismo: retrato atual de um tema abandonado, por Márcio Berclaz

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Márcio Berclaz, Promotor de Justiça

Do Justificando

O nepotismo é exemplo de tema mal tratado pelo direito brasileiro. Sobre a questão da nomeação de parentes para cargos públicos, omite-se a Constituição da República e boa parte das Constituições Estaduais. 

Precisou-se resgatar a força normativa dos princípios da moralidade, da impessoalidade e da isonomia para, a partir das Resoluções n. 07/2005 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e n. 01/2005 Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), estender-se a vedação tal como concebida por essas normativas, por simetria, aos Poderes Executivo e Legislativo.

O primeiro problema reside no fato de o Poder Legislativo, como faz em muitas questões, omitir um enfrentamento disciplinador da matéria e capaz de valer para todo o país e esferas federativas, ainda que com um grau mínimo de sentido. Isso, por si só, já renderia bastante reflexão do quanto precisamos avançar no trabalho do democraticamente eleito Congresso Nacional para que a questionável “judicialização” ou “império do Judiciário” possa ser repensado. Assim foi com o nepotismo, com a fidelidade partidária e com tantas outras polêmicas questões. Se o Legislativo não trata os temas, não adianta reclamar de que o Judiciário assim o faça no enfrentamento das demandas e das discussões concretas de constitucionalidade ou inconstitucionalidade. 

O segundo problema decorreu do fato de o Supremo Tribunal Federal, entre as suas já 53 (cinquenta e três) Súmulas Vinculantes – muitas das quais absolutamente prescindíveis, ter editado, em 2008, a Súmula vinculante n. 13, dispositivo que, ao definir o terceiro grau de parentesco por consanguinidade ou afinidade como o padrão, aliás de modo absolutamente arbitrário e sem maior discussão, possui um texto e uma interpretação dada para além desse mesmo texto, qual seja, a perniciosa compreensão de que Secretários Municipais, Estaduais e Ministros seriam exemplo não mais de cargos comissionados, mas de cargos ditos “políticos”, ou seja, que permitem a nomeação de parentes. Com isso, legitimou-se a possibilidade do nepotismo dos “peixes grandes”, tão pernicioso a uma gestão profissional e responsável de políticas políticas.


O terceiro e derradeiro problema reside na circunstância de o assunto estar aparentemente esquecido e abandonado pela doutrina. Quase ninguém mais fala sobre o nepotismo, como se o problema tivesse deixado de existir. O nepotismo e o seu combate, em verdade, parece que deixou de estar na moda. Enquanto a esperada revisão da Súmula não acontece, quebrando com princípios hermenêuticos necessários de tradição e coerência, decide o Supremo Tribunal Federal no “caso a caso”, “no caso concreto”, não permitindo que desses precedentes seja extraída uma racionalidade. Enfim, uma compreensão mais exata de que os impedimentos aqui precisam ser objetivos, o que é ruim para todo mundo, seja pelo elemento compreensão, seja pelo elemento estabilidade, paradoxalmente dois supostos predicados que as súmulas vinculantes deveriam assegurar. Para que não reste dúvida, consulte-se a página do próprio Tribunal. Compreender os critérios que hoje norteiam a matéria é um verdadeiro desafio à compreensão lógica. Resta saber até quando.

A questão do nepotismo, aliás, pode ser uma expressão simbólica similar a muitos outros problemas envolvendo a relação constitucional entre os poderes. O Legislativo deixa de legislar sobre uma questão polêmica. Nesse vácuo, o Judiciário vai e preenche os significados do significante nepotismo não exatamente da melhor maneira. O resultado disso? O nepotismo continua presente na realidade política brasileira, talvez até pior do que antes, posto que agora legitimado por uma interpretação sem base jurídico-legal e pautada em critérios políticos. Por uma súmula que tem um texto e um entendimento para além dele, o qual não tem o menor respaldo na dogmática do direito administrativo. De quebra, criou-se uma outra categoria de cargos para além da clássica divisão de efetivos e comissionados: os cargos ditos políticos. E de política pequena a Administração Pública infelizmente já está cheia. Com o beneplácito do Supremo, assim caminham as Secretarias Municipais, Estaduais e os Ministérios: loteados para partidos e em troca de favores, longe dos critérios de mérito, competência e profissionalismo exigidos dos servidores públicos por excelência, aqueles que prestam concurso público para preenchimento dos cargos, conforme prescreve o artigo 37, II, da Constituição.

***

Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público e do Movimento do Ministério Público Democrático. Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013).
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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  1. Nepotismo A Grande Família

    m 2006, o deputado estadual Rogério Correia (PT), da oposição ao governo tucano, apresentou um requerimento de informações sobre nepotismo de parentes do então governador Aécio Neves. A lista tinha nove nomes, inclusive Fernando Quinto Rocha Tolentino:

    — Oswaldo Borges da Costa Filho (genro do padrasto do governador), presidente da Companhia de Desenvolvimento Econômico e Minas Gerais;

    — Fernando Quinto Rocha Tolentino (primo), assessor do diretor-geral do Departamento de Estradas e Rodagem (DER/MG);

    — Guilherme Horta (primo), assessor especial do governador;

    — Tânia Guimarães Campos (prima), secretária de agenda do governador;

    — Frederico Pacheco de Medeiros (primo), secretário-adjunto de estado de governo;

    — Andréia Neves da Cunha (irmã), diretora-presidente do Serviço de Assistência Social de Minas Gerais (Servas);

    — Ana Guimarães Campos (prima), servidora do Servas;

    — Júnia Guimarães Campos (prima), servidora do Servas;

    –Tancredo Augusto Tolentino Neves (tio), diretor da área de apoio do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG).

  2. Nepotismo juvenil e fantasma

    Candidato à Presidência Aécio Neves (PSDB) exerceu o cargo de secretário de gabinete parlamentar da Câmara dos Deputados dos 17 aos 21 anos, entre 1977 e 1981, conforme o site oficial da Casa. No entanto, segundo a biografia de Aécio em seu próprio site, durante este período ele morava no Rio de Janeiro. 

     

    http://noticias.terra.com.br/eleicoes/aecio-neves/camara-diz-que-aecio-teve-cargo-aos-17-anos-candidato-nega,9e71990bd4a09410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html

  3. Humor – não mais!

    Um título sob o registro humorístico:

    “Nepotismo: reflexões de um maior abandonado”

    Assinado por um filho de deputado impedido de assumir uma função inexistente sob o gáudio de um mandato irrelevante.

  4. O texto foi no ponto, ninguém

    O texto foi no ponto, ninguém nunca quis resolver o problema, na verdade, legitimou-se o nepotismo, agora é o cruzado.
    O judiciário tem filhos de políticos de todas as esferas, filhos de desembargadores que assumem os cargos em tribunais distintos de seus pais ou parentes próximos, assim, segundo o entendimento deles mesmos, não se configura o nepotismo.
    Agora pergunte-se por que a imprensa não vê e denuncia isso? Porque também tem interesses nesse meio, simples assim.

  5. Suspeição

    O promotor preocupado com  o “nepotismo”.

    Formei em Direito para tentar compreender  as contradições da justiça, tão injusta.

    Mas gostaria de comentar um instituto virtual da justiça, o Instituto da “ Suspeição”

    Alguém já testemunhou o instituto ? Na magistratura e na promotoria?

  6. O problema é a existência

    O problema é a existência desse montão de cargos de confiança para serem preenchidos. Uma autoridade conmstituída pelos eleitores pode nomear seus assessores diretos. E ela, ao final do mandato – e não esqueçamos nunca: mandato é um contrato, contrato que foi assinado, que foi assinado – presta contas e entrega o cargo.

    Mai uma vez, o problema e que os assessores nomeiam assessores que nomeiam assessores… E por aí vai. Há muito tempo que se fala isso, da necessidade de se estruturar e profissionalizar as burocracias. No nível municipal é que as coisas são piores; depois, no próprio judiciário.

    Essas leis que “proíibem” o nepotismo são absolutamente demagógicas e paliativas.

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