Punitivismo: justiça ou gestão da desigualdade?, por Plínio Gentil

É como se todo o chamado sistema de justiça criminal se houvesse ajustado para reprimir com inusitada severidade alguns tipos de infrações, ou de infratores.

Carandiru/Banco Imagens

do Coletivo Transforma MP

Punitivismo: justiça ou gestão da desigualdade?

por Plínio Gentil

Recentemente tomei conhecimento de casos em que réus foram condenados, em processos criminais, um a 37, outro a 52 anos de reclusão, por fatos tidos por crimes de estupro de vulnerável. As penas são altíssimas, mesmo considerando a gravidade desses delitos e a natural repulsa que provocam.

Mas, antes que tudo, a fixação de penas descomunais, como vem sendo recorrente, é um sinal dos tempos, que marcam um acirramento do rigor no trato com a criminalidade comum. É como se todo o chamado sistema de justiça criminal se houvesse ajustado para reprimir com inusitada severidade alguns tipos de infrações, ou de infratores. E de nada adiantará ponderar que a perspectiva, na prática, de uma pena perpétua está longe de contribuir para a ressocialização do delinquente…

No caso do estupro de vulnerável, os argumentos a fundamentar tais sanções acumulam-se e misturam-se: desde considerar tudo como estupro, mesmo atos ligeiros e de baixa intensidade, até negar sistematicamente a possibilidade de sua desclassificação para o crime de importunação sexual, passando pela vaga e cansativa alegação de que, em tais ou quais delitos, a palavra da vítima assume valor especial – como se em outros casos o dizer do ofendido valesse menos, numa espécie de escalonamento ao qual ninguém até hoje deu formato. Na verdade, basta faltarem outros elementos que logo se saca esse argumento, o qual dá à vítima o poder de apontar o céu ou o inferno para o acusado. E olhem que essa vítima às vezes é apenas uma criança de sete, nove ou dez anos, sob intensa pressão. É um fundamento, largamente utilizado, que tem a mesma precisão da também cansativa – e equivocada – afirmação de que a palavra de policiais goza de fé pública, como se a lembrança das aulas de direito administrativo na faculdade, explicando o que é e quem tem fé pública, já tivesse desbotado com o passar dos anos. Este argumento é de frequência espantosa em processos de tráfico de entorpecentes, no mais das vezes contra pequenos traficantes, quase a sugerir que a decisão de condenar já estava pronta quando a motivação do julgamento precisou ser redigida. Fora a facilidade com que se admite, junto ao tráfico, o crime de associação, tornando letra morta os dispositivos do Código Penal acerca do concurso de agentes.

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Na realidade, há nisto uma questão de fundo que é preciso considerar. Vivemos um incremento da desigualdade social, que se aprofundou entre as poucas camadas que vivem bem e a massa da população, que, ou passa necessidades ou dá seus pulos diariamente para viver com um mínimo que seja. São dados incontestáveis: cerca de 33 milhões de brasileiros atualmente têm insegurança alimentar, um eufemismo para fome; mais de 40 mil pessoas moram na rua em S. Paulo, cidade mais rica do Brasil, e o capital dos bancos, conforme indica a própria Febraban, cresceu 146 por cento de 2015 a 2020, justamente quando o nível de desemprego bateu nos 14 por cento da população ativa. Enquanto isso, aumentou o número de brasileiros bilionários e dois dos setores que mais cresceram nos últimos tempos, a mineração e o agronegócio, seguem exportando commodities sem pagar um centavo de imposto aos cofres públicos. Ou seja, por mais que nos queiram dizer que a Terra é quadrada, ou plana, o aumento da riqueza de alguns não significa elevação do nível de emprego, de salários, nem de investimentos no desenvolvimento do país.

Os agentes do sistema de justiça penal percebem esse acirramento da miséria, a ele associando as altas taxas de criminalidade, no que estão genericamente corretos. Porém não sentem expressivamente os efeitos da estagnação econômica e talvez por isso deixam de desenvolver qualquer empatia com a massa empobrecida, tampouco se esforçando por compreender estruturalmente a lógica dessa equação que começa na depauperação, passa pela indignidade e termina no crime. Preferem explicações simplistas, desde sempre cultivadas pela narrativa oficial, que culpam os pobres por sua pobreza, o fracassado pelo fracasso – o que representa o outro lado da moeda em que se enaltece a meritocracia e se afirma a existência de um mundo de oportunidades para todos. São esses agentes, sem o perceber, gerentes da ordem dominante, a mesma que garante ganhos de uma minoria e condena a maioria a uma vida desgraçada. Num sentido materialista, não constituem a classe dominante, mas sim aquilo que o filósofo grego Nicos Poulantzas chamava de classe reinante, muito útil para a perpetuação, senão o agravamento, da situação presente.

Nesse terreno floresce, vigoroso, o pensamento punitivista. Se essa massa feia e suja, de onde saem os criminosos, é que está desgraçando o mundo bonito da gente de bem, então pau nela. A cadeia, de preferência por longos anos, o sofrimento dos condenados e suas famílias e outras dores acessórias, são a contribuição que o sistema de justiça penal crê poder oferecer a uma sociedade de homens bons e justos, bem vistos por Deus. A crença sincera de que estão de fato contribuindo para o bem explica-se a partir de sua compreensão incompleta do vínculo entre miséria e criminalidade, categorias que, ao contrário de manterem uma relação direta entre si, apenas representam os extremos de uma linha pela qual se movimenta a fria engrenagem que consolida e calcifica uma desigualdade estrutural.

Não devoto, obviamente, qualquer simpatia aos estupros, tráficos ou demais expressões da criminalidade recorrente. Apenas vejo na fúria penalizadora dessas infrações, por vezes mediante toscos argumentos, uma reação psíquica e ideológica àquilo que é tomado por desvio, que é próprio do socialmente fracassado, culpado em última instância dessa visão do inferno que se tornou a vida nas grandes cidades de um país periférico.

Plínio Gentil é Procurador de Justiça do MPSP, professor universitário e membro do Coletivo Transforma MP.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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