A inconstância do mundo

Seleção de Gilberto Cruvinel

A inconstância dos bens e das almas do mundo sempre foi musa para os poetas e um dos primeiros  a entender que  “o mundo é composto de mudança” foi Luis de Camões no seu belíssimo soneto que percebe que até o jeito da mudança ocorrer muda. O nosso Gregório de Matos aponta que falta firmeza até no sol e localiza a única permanência do mundo:  “A firmeza somente na inconstância”. O atormentado Fernando Pessoa não era capaz de ver constância nem na sua alma e nem sabia quantas tinha. Mas debaixo da lei constante da mudança, quando  “nem a pedra se conserva dura, nem os portões de aço se sustentam”, é Shakespeare quem vai apontar o único porto seguro: “ O amor não é o bufão do Tempo, mas se sustenta até o final do mundo.”

Luís Vaz de Camões

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, 
Muda-se o ser, muda-se a confiança: 
Todo o mundo é composto de mudança, 
Tomando sempre novas qualidades. 

Continuamente vemos novidades, 
Diferentes em tudo da esperança: 
Do mal ficam as mágoas na lembrança, 
E do bem (se algum houve) as saudades. 

O tempo cobre o chão de verde manto, 
Que já coberto foi de neve fria, 
E em mim converte em choro o doce canto. 

E afora este mudar-se cada dia, 
Outra mudança faz de mor espanto, 
Que não se muda já como soía. 

 

Gregório de Matos

Moraliza o poeta nos ocidentes do Sol a inconstância dos bens do mundo.

 

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

 

Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
.
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.
.
24-8-1930
.
 

 

Soneto 65

William Shakespeare

tradução de Geraldo Carneiro

O bronze, a pedra, a terra, o mar sem fim,
Se a morte impõe a todos seu rigor,
Como a beleza há de durar assim
Se não tem mais que a força de uma flor?
Será que o sopro do verão perdura
Contra o assédio dos dias de tormenta,
Se nem a pedra se conserva dura
Nem os portões de aço se sustentam?
Terrível reflexão! Como ocultar
Do Tempo a sua mais cara riqueza?
Seu pé veloz que mão há de parar?
Quem lhe proíbe o desgaste da beleza?
.   .Ninguém: só se um milagre faz-se impor,
.   .E em tinta negra esplende o meu amor.

 

 

Soneto 116

William Shakespeare

tradução de Geraldo Carneiro

.

Não tenha eu restrições ao casamento
De almas sinceras, pois não é amor
O amor que muda ao sabor do momento,
Ou se move e remove em desamor.
Oh, não, o amor é marca mais constante
Que enfrenta a tempestade e não balança,
É a estrela-guia dos batéis errantes,
Cujo valor lá no alto não se alcança.
O amor não é o bufão do Tempo, embora
Sua foice vá ceifando a face a fundo.
O amor não muda com o passar das horas,
Mas se sustenta até o final do mundo.
___Se é engano meu, e assim provado for,
___Nunca escrevi, ninguém jamais amou.

 

 

 

…………………………………………………………………………………………………………

  1. Luís Vaz de Camões,  “Sonetos”
  2. Gregório de MATOS, “A instabilidade das coisas do mundo”. In: AMORA, Antônio Soares (org.). Panorama da poesia brasileira. Vol.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959.
  3. “Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa”. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). – 48.
  4. Geraldo Carneiro, “O Discurso do Amor Rasgado poemas e fragmentos de William Shakespeare”, p. 122, 123, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2012.

 

Redação

5 Comentários

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  1. Belo recolho, Gilberto.

    Há que se ler esses clássicos – e “Por que ler os clássicos?”, já explicava Umberto Eco – talvez porque como clássicos iluminam, como grandes faróis, o homem. Principalmente quando estamos em declínio de humanidades.

    ONDE HÁ POUCO FALÁVAMOS

    Drummond

                                                                                                               

    É um antigo
    piano, foi
    de alguma avó, morta
    em outro século.

    E ele toca e ele chora e ele canta
    sozinho,
    mas recusa raivoso filtrar o mínimo
    acorde, se o fere
    mão de moça presente.

    Ai piano enguiçado, Jesus!
    Sua gente está morta,
    seu prazer sepultado,
    seu destino cumprido,
    e uma tecla
    põe-se a bater, cruel, em hora espessa de sono.
    É um rato?
    O vento?
    Descemos a escada, olhamos apavorados
    a forma escura, e cessa o seu lamento.

    Mas esquecemos. O dia perdoa.
    Nossa vontade é amar, o piano cabe
    em nosso amor. Pobre piano, o tempo
    aqui passou, dedos se acumularam
    no verniz roído. Floresta de dedos,
    montes de música e valsas e murmúrios
    e sandálias de outro mundo em chãos nublados.
    Respeitemos seus fantasmas, paz aos velhos.
    Amor aos velhos. Canta, piano, embora rouco:
    ele estronda. A poeira profusa salta,
    e aranhas, seres de asa e pus, ignóbeis,
    circulam por entre a matéria sarcástica, irredutível.
    Assim nosso carinho
    encontra nele o fel, e se resigna.

    Uma parede marca a rua
    e a casa. É toda proteção,
    docilidade, afago. Uma parede
    se encosta em nós, e ao vacilante ajuda,
    ao tonto, ao cego. Do outro lado é a noite,
    o medo imemorial, os inspetores
    da penitenciária, os caçadores, os vulpinos.
    Mas a casa é um amor. Que paz nos móveis.
    Uma cadeira se renova ao meu desejo.
    A lã, o tapete, o liso. As coisas plácidas
    e confiantes. A casa vive.
    Confio em cada tábua. Ora, sucede
    que um incubo perturba
    nossa modesta, profunda confidencia.

    É irmão do corvo, mas faltam-lhe palavras,
    busto e humour. Uma dolência rígida,
    o reumatismo de noites imperiais, irritação
    de não ser mais um piano, ante o poético sentido da palavra,
    e tudo que deixam mudanças,
    viagens, afinadores,
    experimento de jovens,
    brilho fácil de rapsódia,
    outra vez mudanças,
    golpes de ar, madeira bichada,
    tudo que é morte de piano e o faz sinistro, inadaptável,
    meio grotesco também, nada piedoso.

    Uma família, como explicar? Pessoas, animais,
    objetos, modo de dobrar o Unho, gosto
    de usar este raio de sol e não aquele, certo copo e não outro,
    a coleção de retratos, também alguns livros,
    cartas, costumes, jeito de olhar, feitio de cabeça,
    antipatias e inclinações infalíveis: uma família,
    bem sei, mas e esse piano?

    Está no fundo
    da casa, por baixo
    da zona sensível, muito
    por baixo do sangue.

    Está por cima do teto, mais alto
    que a palmeira, mais alto
    que o terraço, mais alto
    que a cólera, a astúcia, o alarme.

    Cortaremos o piano
    em mil fragmentos de unha?
    Sepultaremos o piano
    no jardim?
    Como Aníbal o jogaremos
    ao mar?
    Piano, piano, deixa de amofinar!
    No mundo, tamanho peso
    de angústia
    e você, girafa, tentando.

    Resta-nos a esperança
    (como na insônia temos a de amanhecer)
    que um dia se mude, sem noticia,
    clandestino, escarninho, vingativo,
    pesado,
    que nos abandone
    e deserto fique esse lugar de sombra
    onde hoje impera. Sempre imperará?

    (É um antigo piano, foi
    de alguma dona, hoje
    sem dedos, sem queixo, sem
    música na fria mansão.
    Um pedaço de velha, um resto
    de cova, meu Deus, nesta sala
    onde ainda há pouco falávamos.)

    (in, Reunião) 

  2. O mundo não muda, É sempre o

    O mundo não muda, É sempre o mesmo.

    Quem muda somos nós em relação ao mundo.

    Uma flor é sempre uma flor.Uma paisagem ..as estrelas,,,

    Somos nós que a vemos de maneira diferentes…

    Mudamos nós.

    O mundo é estático.

  3. impermanência é o que há

    Impermanência é a própria natureza da vida.

    Quando lhe pediram para resumir os ensinamentos de Buda numa frase, Suzuki Roshi simplesmente disse: “Tudo muda.” Esta seria a natureza do Samsara, o mundo material no qual vivemos.

    Isto não é algo ruim, mas algo que faz parte da vida. Desde que sua mente seja flexível e adaptável a mudanças, não há sofrimento. Outra frase do budismo é : “A dor pode ser inevitável no samsara, mas o sofrimento é opcional” Ou seja, estamos sujeitos a sentir dor, a ficar doentes, a ter uma falência nos negócios, a perder tudo o que tinhamos, mas só fica sofrendo e remoendo a dor do passado quem se apega ao passado. O Sábio toca a bola pra frente e vê o que pode ser feito com o que restou.

     

    Uma mente aberta e flexível é uma mente sã. Uma mente aberta permite que o pensamento seja o reflexo das mudanças de cada dia. Com consciência desperta o ser humano e o rio fluem, um no outro.

    Tudo muda. A economia, a política, os relacionamentos, nossas crenças, a nossa própria noção de identidade. A sanidade é isto: permitir que meu ponto de vista possa ser atualizado pelas novas realidades que vão surgindo. Estar aberto à flutuação da realidade. Quando estamos abertos a mudanças, a transição é suave, flutuamos no fluxo do rio da vida.

     

     

    ‘ Tentar organizar fenómenos impermanentes em categorias permanentes do pensamento é como tentar arrebanhar gatos. “

  4. Mudança na visão de um poeta do sertão pernambucano

    O autor do poema é Antônio José de Lira.

    Nasceu no Sítio Goiana, Município de Itapetim, Pernambuco, em 8 de julho de 1930. Não é cantador de profissão, mas agricultor. Faz uma poesia universal, belíssima, como neste “A Velha Olaria”, uma recordação da olaria do seu pai, no Sítio Goiana.

     

    A VELHA OLARIA

     

    Recordei o juazeiro

    Sombra da velha olaria

    Gigante, verde e faceiro

    Enquanto o dono existia

    Depois que o dono morreu

    Ele também resolveu

    Se entregar ao machado

    Hoje nenhum mais existe

    Vou recordar mas é triste

    Se recordar o passado

     

    O tempo ingrato passou

    A mão naquela olaria

    Por lembrança não ficou

    Nada do que nela havia

    Aterrou todo o barreiro

    Sem forno e sem juazeiro

    Ficou o chão diferente

    Até mesmo o passarinho

    Perdeu o lugar do ninho

    Canta mas não é contente

     

    Das telhas restam os cacos

    Porque não se derreteram

    Do juazeiro os cavacos

    Todos desapareceram

    Se existe alguma raiz

    Talvez se sinta infeliz

    Porque perdeu sua fronde

    A lenha o fogo queimou

    As folhas o vento levou

    Pra guardar quem sabe aonde

     

    Senti profunda emoção

    Naquele ermo esquisito

    Sem pai, sem mãe, sem jargão

    Sentindo a falta do mito

    Se dividiu a família

    Três hoje moram em Brasília

    E três em Itapetim

    Quatro na eternidade

    Resta somente a saudade

    Morando dentro de mim

     

    Voltei pra ver se do forno

    Alguma coisa restava

    Pelo menos o chão morno

    Da lenha que pai queimava

    Não vi cinzas nem carvão

    Senti profunda emoção

    Saí sem olhar pra trás

    Notei que tudo tem fim

    Jurei por Deus e por mim

    Não ir ali nunca mais

     

     

  5. Como deturpam a natureza do

    Como deturpam a natureza do mundo físico com almas emocionais

    Descrevem o mundo como fases de suas inspirações

    Porque não sabem nem quem são.

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