Conheci Fernando Sabino em 1991. Digo conheci porque ocorreu pessoalmente. Isso se deu a partir do meu trabalho como professora de jovens que aguardavam uma mediação para aprenderem a namorar literatura. Tornamo-nos amigos, ele em Ipanema; e eu, em São Paulo.
Depois de um tempo, quis levá-lo à escola em que lecionava, como convidado, para assistir o que havíamos preparado para ele.
Pediu-me que aguardasse uma data favorável em que estivesse na cidade, assim a escola não precisaria arcar com hospedagem passagens etc.
Assim, quando sua filha, a cantora Verônica Sabino, iniciaria uma temporada na cidade, já em 1992, ele foi à escola. Ficou perplexo com o que viu lá entre as crianças das sextas-séries (7º ano hoje). Era um happening, resultado de um trabalho que se iniciara com a leitura de O menino no espelho e se estendera, às crônicas, à biografia, às entrevistas, ao romance e a muito mais.
Fizemos um grande recepção que contou com presença de pais e funcionários. Adorou quando lhes falaram do Botafogo, seu time adorado, levantaram-lhe os cartazes sobre todos os aspectos das obras lidas, com seus personagens se manifestando ali, eles próprios a lhe fazerem perguntas, e o desejo de vê-lo tocando bateria – o que aconteceu, já que tínhamos uma à disposição.
Na hora da suposta entrevista – que Sabino acreditava para isso ter sido convidado – ele lhes disse que já sabiam bem mais da vida e da obra dele, que não teria nada o que falar mais. Ainda bem que não fora chamado para uma entrevista.
E eu, assim também quereria minha última crônica, meu último poema, que fosse puro como o sorriso de felicidade de todas os meus meninos e meninas naquele dia.
A última crônica
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “parabéns pra você, parabéns pra você…” Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
Fernando Sabino, A companheira de viagem, 1965
O último poema
Manuel Bandeira
Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Manuel Bandeira, 50 poemas escolhidos pelo autor, Ed. Cosac Naify , 2006
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Odonir,
que presente! Tanto que a faço amanhã como filha presenteando este pai. Não sei quantas vezes li “A última crônica”, do Fernando Sabino e, hoje, renovei a lembrança do que são as palavras. Espero mais vezes você nos presentear assim. Ah, o mesmo vale para o Bandeira.
Odonir, obrigado. Comecei bem
Odonir, obrigado. Comecei bem meu dia.
Rui, meu pai era um homem e tanto. Tenho saudades dele também.
Às vezes somos pai, mãe, filho e espírito santo, assim minúsculos mesmo.
Em vários anos publiquei aqui no blog um texto que escrevi em homenagem a meu pai: um mineiro que idolotrava Minas, o Brasil e “o estudo”.
O Clubinho de leitura que criei aqui no meu bairro, leva o nome dele, e as crianças sabem explicar direitinho quem foi ele e onde está enterrado (com minha mãe), no Cemitério da Boa Morte, ao lado da igreja centenária.
Rui, essa crônica sintetiza o que penso que sejam as coisas boas da vida.
Outro dia, por aqui, caminhando com minha cachorra Luna, uma senhorinha me parou e perguntou do jeito dela: “É a senhora que ensina as crianças ali na frente, né?” Respondi que sim. e ela completou: “A senhora deve saber usar computador, né, a senhora me ensina. Fico sozinha; minha filha vai trabalhar e computador diverte tanto a gente, né”.
Com a singeleza dessa abordagem, quis explicar com todos os meus ensinamentos políticos que era bem melhor que a televisão, as novelas etc. etc. Calei, contudo, e pedi. “Traga o computador que a gente aprende juntas, ok”. “Sim senhora, vou trazer.”- finalizou.
Há alguns poucos anos,
tivesse cruzado com você passeando com a Luna, te faria o mesmo pedido. Agora já estou melhorzinho.
Rui, vou postar o texto “Meu pai”, de novo
Abraço.
Meu pai
Fico pensando no seguinte: Qual a função de um pai ?
Recordo-me do meu pai, equivocadamente chamado plácido, sempre cuidando mais do todo do que da parte, ativamente crítico, consertador das coisas e do mundo fosse uma árvore, um exercício de álgebra ou de geometria, um ferro de passar roupa, um cano, um chuveiro, uma torneira, um sistema desigual de trabalho e de remuneração, uma forma de conceder um benefício, um jeito de ser sindicalizadamente mais completo … cada vez mais nas ruas do que em casa, sempre indo a reuniões, lutando por direitos legais de fato.
Recordo-me da importância que dava aos estudos, a falar e escrever bem, à informação- não a do “jornal carioca americano ainda que escrito em português”- ao alerta sempre preciso à arrecadação monstruosa do Criança Esperança e à falta de prestação de contas daquela emissora e, ainda mais, da observação, já lá na década de setenta, da velocidade das notícias dadas pelo novíssimo Jornal Nacional, sem deixar que as pessoas ouvissem e refletissem sobre elas…
Recordo-me da alegria do seu comparecimento a reuniões de pais e mestres, quando só ele ia – como pai no meio a tantas e tantas mães – e do orgulho dele ao saber das notas e do comportamento dos filhos, sempre valorizando a escola e os professores.
Recordo-me da sua ensinança diária do pouco luxo, da necessidade de dividir com todos, da importância de não se querer ter e nem lutar para ter tudo em demasia, porque tudo em demasia não nos faria falta nunca.
Recordo-me de sua luta, luta mesmo, para que estudássemos em escolas públicas de qualidade e que, sem vagas, muitas vezes fosse no Pedro II, fosse na UFRJ, na década de sessenta, lutava por bolsas de estudo em Universidade privada de qualidade e escola particular de qualidade também. Para isso garantia que tiraríamos as melhores notas, sem segunda época, nem reprovações. E foi assim. Nunca pagamos por escola, nem universidade.
Recordo-me de que quando entrei na USP e lhe telefonei comunicando, ele me disse que se orgulhava cada vez mais de mim. Bem mais tarde o trouxe para conhecer a USP- no mesmo ano de sua morte- e sua admiração por todos aqueles prédios e todo aquele ensino ser público foi inesquecível . Pude ver naquele rosto maltratado por um enfisema pulmonar- sem jamais ter fumado- e, apesar de cansado, com uma perna inchada, a vontade de continuar caminhando no campus e se orgulhando cada vez mais, não apenas de mim, mas da possibilidade de tudo aquilo poder ser público e de filhos de operários poderem estudar ou terem estudado ali.
Recordo-me das enormes polêmicas que tivemos sobre o governo de Getúlio Vargas e sobre os presidentes e governadores mineiros. Nunca conheci ninguém tão carregado de amor por aquelas montanhas mineiras, por Tiradentes, personagem histórico, por Tiradentes cidade e por Barbacena. Levou anos pesquisando a origem do nome da cidade, não se conformando de ser por causa do vil Visconde de Barbacena, recusava-se a acreditar naquilo e queria recolorir a história, do jeito que pudesse.
Recordo-me das centenas de cartas que enviava aos políticos cobrando-lhes reformas, lidando sempre com números, com dados históricos, estatísticos etc. dissertando e ao mesmo tempo interpelando-os sobre suas atitudes. A despeito de gastar muito de sua aposentadoria com selos, envelopes e papel de carta e das reclamações de minha mãe, sempre puxando-o para a terra e querendo impedi-lo de viver de sonhos, pois para ela jamais seria atendido em suas reivindicações. Provou muitas vezes a todos nós que o foi sim, inclusive com a famosa passarela na frente da Rodoviária Novo Rio- assim chamada antes- há décadas pleiteada por ele aos governantes cariocas. Fazia isso, devido aos inúmeros acidentes registrados diariamente ali.
Recordo-me dos orelhões requisitados para inúmeros bairros do Rio de Janeiro, até porque “telefone é só rico que tem e pobre também precisa falar no telefone, né”.
Recordo-me de que, estudioso e sempre aprendiz das técnicas agrícolas (- aprendidas na famosíssima Escola Técnica Agrícola de Barbacena, nas décadas de vinte e trinta) saía pelas manhãs com martelo, prego, madeira, enxadinha e outros apetrechos para “consertar o mundo por aí” e refazia canteirinhos pelas ruas da cidade, colocando suportes para erguer arbustos decaídos ou quase mortos e os regava também, pedindo água a comerciantes de ao redor.
Recordo-me da dificuldade de receber qualquer presente de filhos, pois para ele o dinheiro dos filhos era dos filhos e não dos pais. Incentivava a independência de todos e a busca de seus caminhos e não se omitia de censurá-los quando de seus erros, dizendo que não era por ser pai que haveria de passar a mão em suas cabeças. Orientava e demonstrava seus pontos de vista – mesmo que não concordássemos com eles – sempre de forma transparente, a qual certas vezes nos parecia cruel, porém jamais restando qualquer duplo vínculo ou incerteza – por omissão- por parte de meu pai.
Recordo-me do carinho com os netos todos, confeccionando carrinhos de carreteis e outras gracinhas de suas próprias habilidades que eram diferenciadas e muitíssimas. Brincava com eles e os fazia dormir em seu colo, quando difícil, entoando sua famosa cantilena. Nenhum resistia. Quando começavam a crescer em meses, enfiava-lhes goela abaixo boas colheradas de arroz e feijão preto para que ficassem com a boca suja e ria disso, além de lhes dar um bom pedaço de bife para ficarem horas e horas chupando a carne, “é bom pra coçar gengivas e dentes em erupção”, contra as reclamações de filhas e de noras zelosas que não queriam essas coisas com seus filhotes, por educação novissimamente estudada. Gostava de afiar ferramentas – dessas que crianças ganham só de brinca não à vera – e ensinar a usar serrotinho, chavinha de fenda, torninho, como parafusar e desparafusar, como usar alicatinho, reguinha T, e mais coisinhas outras de doçuras e afetos e depois ficar só “apreciando as crianças brincarem” a demonstrarem o quão inteligentes eram, “ puxou o avô” arrematava ele.
Recordo-me ainda, porque os tenho aqui guardados em papel e na memória, seus pedidos de desculpas a muitos em especial e a todos em geral, em letra e voz tremidas quando dos seus últimos dias de hospital. Aquela vaidade por sua criticidade e transparência ácidas, aquela incontinência verbal e quase irrefutável de opiniões, aquela beligerância contra a rasteira que Collor dera em sua esperança, em sua crença em um país democrático e melhor desfaleciam agora e o deixavam daquele jeito assim de voz e letra trêmulas, caminhando para o fim, no dia dezessete de junho de noventa e três.
Se meu pai está onde está, sei que continua fazendo canteiros e reciclando as vidas.
Sua função: ESPELHO, assim maiúsculo.
Peço todos os dias que eu não o tenha envergonhado como filha e que SEU ESPELHO ESTEJA SEMPRE REFLETINDO EM MIM.
Odonir Oliveira
agosto de 2013
Me penitencio, Odonir,
depois de tantos anos por aqui ainda não ter lido, seu texto “Meu pai”. Estou simplesmente maravilhado. Indicarei a amigos e familiares (não no FB, claro). Amanhã o Botequim irá um pouco nessa levada, mas sem o brilhantismo do que acabo de ler. Ah, essa ‘ensinança’ tão mineira e de tanto luxo linguístico.
Mulher Amada
Eu gosto de você com uma força bruta que não entendo bem.
Gosto quase tanto como de mim.
Mas que pena você não ser também minha filha.
Que pena você não ser minha filha, minha irmã e minha mãe, tudo ao mesmo tempo.
[video:https://youtu.be/HGSMskgYplw width:600]
Zeca Baleiro cantou sua versão musicada para o poema Relatividade da Mulher Amada de Murilo Mendes.
Tudo imensamente lírico
Tardes líricas incandescem corpos e espíritos.
É mesmo um sarau lítero-musical, como os de Mariana, Ouro Preto no século XVIII.
Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
Manuel Bandeira
Manuel Bandeira no cotidiano
https://www.youtube.com/watch?t=27&v=K6Q0W8s7aHs
[video:https://www.youtube.com/watch?t=27&v=K6Q0W8s7aHs%5D
Murilo Mendes
O Homem e a Mulher
Desde Adão que as gerações se sucedem para te trazerem a mim.
Eu sou teu pai – teu filho – teu esposo – teu amante.
Sou teu oráculo e teu enigma.
Sou teu sacerdote e tua vítima.
Sou teu tirano e teu escravo.
Dedico-te templos, guerras, vinganças, a história e o ideal.
Eu te domino e tu me esmagas.
E por ti sou capaz de abjurar meu Deus.
Deception or Samson and Delilah , George Grie
Imagens recorrentes: o trem, as despedidas, as idas sem voltas
Desde menina, esse poema de M. Bandeira atravessa minha vida “como um túnel”.
Quando vim para esta cidade, concretizei as imagens desse poema.
Profundamente
Manuel Bandeira
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Em, “Antologia Poética – Manuel Bandeira”, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 2001, pág. 81.
jns
Que saudades senti agora. Quando morava no Rio, trabalhei com um senhor, um inveterado boêmio, que só se mantinha no posto pq algum amigo importante havia lhe arranjado o emprego (público), que ele frequentava umas 2 ou 3 vezes ao mês. Ele conhecia muita gente importante, pois era de família tradicional mineira. Mas que riqueza ele carregava dentro de si, tantas histórias, vivências e acontecimentos, de um tempo em que o Rio era a capital. Ele foi amigo do Murilo Mendes. e era apaixonado pelas poesias dele. E costumava escrevê-las para me dar e as tenho até hoje, com sua letra já um pouco trêmula.
Obrigado por me trazer estas memórias.
Abração.
é isso
“… histórias, vivências e acontecimentos…”
“Mas que riqueza ele carregava dentro de si, tantas histórias…”
Começo de Biografia
Murilo Mendes
Eu sou o pássaro diurno e noturno,
O pássaro misto de carne e lenda,
Encarregado de levar o alimento da poesia e da música
Aos habitantes da estrada, do arranha-céu e da nuvem.
Eu sou o pássaro feito homem, que vive no meio de vós.
Eu vos forneço o alimento da catástrofe e o ritmo puro.
Trago comigo a semente de Deus… e a visão do dilúvio.
Boris Vallejo , Abduction
Manuel Bandeira por ele mesmo
Auto-Retrato
Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.
[video:https://www.youtube.com/watch?v=qwRu0q_5AUU%5D
Sebastiana
“[…] Sebastiana diz que tem uma vontade doida de ir a Minas Gerais, Mamãe diz mas Sebastiana você mora em Minas Gerais, ué gente, eu pensava que eu morasse em Juiz de Fora […]”
Murilo Mendes, A idade do serrote. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968.
Por essas veredas mineiras …
Infância
Carlos Drummond de Andrade
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu… Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro… que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
[video: [video:https://www.youtube.com/watch?t=11&v=aQNjmX2HdIM%5D%5D
A beleza do nosso Drummond!
A beleza do nosso Drummond!
E fico mesmo agradecida pelos recados já deixados em minhas crônicas!.
Um abraço.
Maíra, que gosto tanto de lê-la
Escreva mais.
Eu gosto tanto !
MURILO MONTEIRO MENDES
O menino que “queria descoroar imperadores”
“Às margens de um rio afluente, de águas pardas, o Paraibuna […]” (MENDES), numa casa situada à Rua Direita, número 4, em Juiz de Fora, Minas Gerais, a 13 de maio de 1901, nasce o poeta Murilo Monteiro Mendes.
O menino que “queria descoroar imperadores” (MENDES) cedo percebeu seu acercamento com poesia, quando da passagem do Cometa de Halley, em 1910. Anos depois, em 1917, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, presenciou Nijinsky dançar, o que constitui seu segundo marco da deflagração poética, segundo o próprio Murilo. Aos 19 anos, inicia sua atuação literária escrevendo crônicas no diário independente juiz-forano A Tarde sob os pseudônimos MMM e De Medinacelli.
Transfere-se, em dezembro de 1920, para o Rio de Janeiro, tornando-se arquivista na Diretoria do Patrimônio Nacional do Ministério da Fazenda, onde conhece Ismael Nery. Na década de 1920, colabora com diversas revistas modernistas. Publica, em 1930, por iniciativa de seu pai, Onofre Mendes, o livro Poemas: 1925-1929, considerado por Mario de Andrade como “historicamente o mais importante livro do ano”, confirmação que se dá pela obtenção do Prêmio de Poesia da Fundação Graça Aranha. Ainda que considerado, no futuro, como pouco representativo no conjunto de sua obra, o poeta lança o livro de poemas-piada História do Brasil (1932). Em 1934, o falecimento de Ismael Nery, pintor, poeta e filósofo, amigo por quem Murilo nutre grande admiração, devolve-o ao catolicismo das suas origens. Com colaboração de Jorge de Lima, seu mais dileto amigo depois de Ismael Nery, publica Tempo e eternidade (1935), no qual fixa esteticamente o catolicismo. Outras publicações se sucederão: O sinal de Deus (1936),A poesia em pânico (1938), O visionário (1941), As metamorfoses(1944), Mundo enigma (1945) e Poesia liberdade (1947).
Realiza sua primeira viagem à Europa, em 1952, e inicia amizade com André Breton, René Char, Camus, Magritte e outros. Entre 1953 e 1956, o poeta ministra conferências em universidades na Bélgica e Holanda. Instala-se na Itália (1957), aos 56 anos de idade, contratado pelo Departamento Cultural do Itamaraty para ministrar aulas de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma. Publica, em 1959, “Siciliana”, texto bilíngue traduzido por G. Ungaretti , e, em 1965, “Italianíssima: 7 murilogrammi”. O poeta retorna às suas origens no livro A idade do serrote, escrito entre 1965 e 1966, publicado em 1968. Recebe o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina, em 1972, e, neste mesmo ano, após 17 anos de ausência, retorna ao Brasil em visita. Por iniciativa do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo, sai a primeira série do livro Retratos-relâmpago (1973); a segunda série seria publicada no ano da morte do poeta.
Murilo Mendes veraneava em Portugal, na casa de seu sogro Jaime Cortesão, quando, em 13 de agosto de 1975, acometido por uma fulminante síncope cardíaca, falece em Lisboa, cidade descrita em seu livro Janelas verdes (1989) como “consabidamente bela”.
Sobre o poeta Murilo Mendes: http://www.museudeartemurilomendes.com.br/poeta.html
O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, retrata a amizade de 4
jovens em seus sonhos e trajetórias saindo de MG em direção à cidade grande, casamentos, separações etc. Eduado Marciano deixa de ser um futuro nadador de sucesso para se casar etc. etc.
Uma crônica muito atual, em tempos de bateção de panelas, distinções entre elites e o resto dos brasileiros é “Piscina”.
Piscina
Era uma esplêndida residência, na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins e, tendo ao lado, uma bela piscina. Pena que a favela, com seus barracos grotescos se alastrando pela encosta do morro, comprometesse tanto a paisagem. Diariamente desfilavam diante do portão aquelas mulheres silenciosas e magras, lata d’ água na cabeça. De vez em quando surgia sobre a grade a carinha de uma criança, olhos grandes e atentos, espiando o jardim. Outras vezes eram as próprias mulheres que se detinham e ficavam olhando.
Naquela manhã de sábado ele tomava se gim-tônico no terraço, e a mulher um banho de sol, estirada de maiô à beira da piscina, quando perceberam que alguém os observava pelo portão entreaberto. Era um ser encardido, cujos trapos em forma de saia não bastavam para defini-la como mulher. Segurava uma lata na mão, e estava parada, à espreita, silenciosa como um bicho. Por um instante as duas mulheres se olharam, separadas pela piscina.
De súbito pareceu à dona de casa que a estranha criatura se esgueirava, portão adentro, sem tirar dela os olhos. Ergue-se um pouco, apoiando-se no cotovelo, e viu com terror que ela se aproximava lentamente: já atingia a piscina, agachava-se junto à borda de azulejos, sempre a olhá-la, em desafio, e agora colhia água com a lata. Depois, sem uma palavra, iniciou uma cautelosa retirada, meio de lado, equilibrando a lata na cabeça – e em pouco sumia-se pelo portão.
Lá no terraço o marido, fascinado, assistiu a toda a cena. Não durou mais de um ou dois minutos, mas lhe pareceu sinistra como os instantes tensos de silêncio e de paz que antecedem um combate. Não teve dúvida: na semana seguinte vendeu a casa.
Fernando Sabino. A mulher do vizinho, Rio de Janeiro, 1976.
Da simplicidade em M. Bandeira
Porquinho-da-Índia
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
– O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.
Manuel Bandeira
E as namoradas mineiras de Drummond? A ingenuidade até então…
AS NAMORADAS MINEIRAS
Uma namorada em cada município,
os municípios mineiros são duzentos e quinze,
mas o verdadeiro amor onde se esconderá:
em Varginha, Espinosa ou Caratinga?
Enquanto na Capital um homem indiferente,
frio, desdobrando mapas sobre a mesa,
põe o amor escrevendo no mimeógrafo
a mesma carta para todas as namoradas.
No Oeste, na Mata, no Triângulo,
no Norte de Minas há saudades e ais.
Suspiros sobem do Vale do Rio Doce
e o Rio São Francisco trança mágoas.
Para Teófilo Otoni o beijo vai por via aérea,
os carinhos do sul pulam sobre a Mantiqueira,
mas as melhores, mais doces namoradas
são as de Santo Antônio do Monte e Santa Rita.
Estradas de ferro distribuem a correspondência,
a esperança é verde como os telegramas,
uma carta para cada uma das namoradas
e o amor vence a divisão administrativa.
Em, Reunião, 4ª edição.
Folheando os álbuns de família, retratos …
RETRATO DE FAMÍLIA
Carlos Drummond de Andrade
Este retrato de família
está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mãos dos tios não se percebem
as viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa e amarela,
sem memórias da monarquia.
Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranqüilo,,
usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.
O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
é um oceano de névoa.
No semicírculo das cadeiras
nota-se certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
mas sem barulho: é um retrato.
Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
outra, sorrindo, se propõe.
Esses estranhos assentados,
meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
numa sala que se abre pouco.
Ficaram traços da família
perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.
A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
saberiam -— se preciso —voar.
Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salão,
ir morar no fundo dos móveis
ou no bolso de velhos coletes.
A casa tem muitas gavetas
e papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde.
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha ideia de família
viajando através da carne.
caminhos
mais um trago
onde a odonir for
sem medo de ser feliz
eu vou
Sem poder falar
Ouço.
Confio.
Espero.
A vida é assim.
Pré-história
“Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.”
Murilo Mendes (em “Pré-história”)