Construindo inimigos a partir da linguagem, por Sebastião Nunes

Segue a décima sexta parte da distopia 2084. Chego enfim ao momento em que futuro e presente se encontram, para criar o pior dos mundos possíveis.

Construindo inimigos a partir da linguagem

por Sebastião Nunes

– O Sars-CoV-54, causador da pandemia que se popularizou como Covid-54, originou-se de uma mutação extraordinária do Sars-CoV-2 – continuou Simeão, baixando a voz, como se temesse deixar escapar algum segredo. – Até hoje se especula a respeito, mas de concreto sabemos que duas coisas aconteceram. A primeira foi o espessamento da camada protetora do vírus, fechando-o numa couraça quase impenetrável. A segunda foi que, praticamente ao mesmo tempo, seu foco principal deixou de estar nos pulmões, para se fixar no cérebro, o que significou um avanço extraordinário para uma criatura tão medíocre, e um desastre para o ser humano. Pela primeira vez, desde a Covid-19, a idade dos infectados deixou de ser importante. Lembra o que aconteceu? Foi em 2054, há exatamente 40 anos.

– Lembro, todo mundo está eternamente obrigado a lembrar – disse Wilson, com alguma hesitação. – Os hospitais ficaram cheios de crianças e adolescentes misturados com adultos e velhos. Foi o ano que inaugurou o futuro.

– Exatamente! – retomou Simeão, quase didático. – Aquilo que se chamava de isolamento vertical, que prendia os idosos e liberava os jovens, perdeu todo o sentido. A Covid-54 agrediu indiscriminadamente. Matou ao acaso, como uma metralhadora giratória manipulada por um maníaco cego. Pais e mães começaram a se preocupar com o sentido da expressão “fim do mundo”, pois era isso que parecia estar acontecendo.

– Mas, e os terroristas proles? – indagou Wilson, percebendo que Simeão perdia o rumo e tendia a avançar em divagações. – Quando é que aparecem nessa história?

– Ah, sim – Simeão sacudiu a cabeça como se acordasse de um sonho. – Claro que a ideia é do Grande Irmão, que está à frente de tudo. Ele simplesmente criou a nova palavra capaz de realizar nossos objetivos.

– Posso saber qual foi, ou ainda é segredo? – ironizou Wilson, pois sabia que, se Simeão chegara até ali, é claro que estava louco para espalhar a notícia.

 

FECHANDO O CERCO

– Segredo nenhum – disse Simeão. Foi uma ideia tão simples que surpreende não ter ocorrido antes a ninguém. – Apenas a criação de uma nova palavra, capaz de, ao mesmo tempo, designar os terroristas proles e o Covid-54, ou seja: Tercoviprole54.

– Tercoviprole54? – estranhou Wilson. – Não é uma palavra muito complicada parar ser popularizada? E, pior ainda, para ser decorada e partilhada entre camaradas e proles? As palavras mais populares e aceitas são as mais simples.

– De maneira alguma – discordou Simeão. – O processo de popularização é semelhante ao de qualquer outra palavra, por mais complicada que seja. Veja, por exemplo, a expressão Ministério da Verdade transformada em Miniver. Abreviação e aglutinação não significam complicação. E que tal duplomaisbom para significar excelente? Note que, neste caso, foram eliminadas as maiúsculas e mesmo o hífen. Linguagem escrita não é igual a linguagem falada.

“Ele tem razão”, pensou Wilson, “repetição gera massificação que gera aceitação que gera familiaridade que gera introjeção que gera… escravidão. Mas será que sempre foi assim e sempre será assim?”.

– Nunca se esqueça das regras de ouro da Teoria da Informação – acrescentou Simeão. – “Repetir é internalizar” e “A redundância vale ouro”. Foi isso que garantiu o sucesso extraordinário de tantas marcas famosas do século XX e das primeiras décadas do XXI: Coca-Cola, McDonalds, Google, Facebook… Bilhões e bilhões e bilhões de euros investidos em propaganda, em repetição incansável.

Wilson ficou calado. Simeão continuou.

– Além disso, não esqueça a carga semântica embutida em cada palavra. Vou tomar um exemplo radical: genocídio.

De repente Wilson se ligou. O que viria agora?

– O que te ocorre quando pronuncio a palavra “genocídio”? Milhões de mortos, não é mesmo? Milhões de assassinatos, povos e nações inteiros massacrados. Indo mais fundo e ligando a palavra ao contexto, que nomes te ocorrem ligados a genocídio?

– Covid-54 – disse Wilson repentinamente, sem refletir.

– Ok – concordou Simeão. – Mas estou pensando em seres humanos.

– Hitler e Stalin – disse Wilson.

– Está vendo como é simples? Depois dos Coronaviridae, nossos grandes inimigos recentes, você citou os dois maiores genocidas do século passado. Primeiro, Hitler, responsável pela morte de seis milhões de judeus. Depois, Stalin, cujos expurgos causaram a morte de pelo menos doze milhões de soviéticos. Mas, e outros genocidas, os genocidas menores, tipo Donald Trump e Jair Bolsonaro?  Ouviu falar deles?

– Não, nunca ouvi – respondeu Wilson. – Quem foram eles?

Sebastiao Nunes

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