Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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Dez anos com “Le suicide français”, por Daniel Afonso da Silva

O livro não é simples. Demanda atenção e exige conhecimento – às vezes, bem profundo – de história francesa, europeia e mundial.

Dez anos com “Le suicide français

por Daniel Afonso da Silva

Tem dez anos que Le suicide français de Éric Zemmour pauta o debate público franco-europeu. Saído no outono de 2014, esse calhamaço de mais de quinhentas páginas foi pouco a pouco marcando espíritos e encontrando seus destinatários. Alguns para acolher. Outros para ostracizar. Muitos para exasperar.

Nas primeiras semanas daquela rentrée, o livro já tinha ultrapassado as 100 mil cópias vendidas. Seis meses depois, chegou ao milhão. Nos anos seguintes, ultrapassou, em muito, quatro milhões de exemplares. Foi, assim, portanto, um sucesso inquestionável de vendas e, também, de crítica.

O livro não é simples. Demanda atenção e exige conhecimento – às vezes, bem profundo – de história francesa, europeia e mundial. Notadamente dos tempos contemporâneos. Seus eixos ambulares são a Revolução Francesa e os eventos de maio de 1968. Seu estilo namora o ensaio oitocentista. Seu autor deseja replicar Chateaubriand – e em várias passagens confessa isso de maneira desavergonhada. Sua erudição vai digna dos melhores escritores franceses desde Voltaire e Diderot. Seu gosto pela frase justa e pela informação precisa inspiram, incomodam e até intimidam. Suas alusões, muita vez, vão difíceis de acompanhar.

Quem entra na aventura chamada Le suicide français de Éric Zemmour sem saber tem dois reflexos: o encanto ou o ódio.

Éric Zemmour é um conservador – ultraconservador, diria –, reacionário, soberanista, extremo-gaullista, talvez monarquista e evidentemente nostálgico. A sua reconstituição da história francesa vai assentada em obsessões quase partidárias – e sobre essas peculiaridades chauvinistas a gente especializada em História e afins vem se debatendo com ele desde a publicação da obra – e quase religiosas. Mas as linhas gerais do seu argumento, por incrível que possa parecer, integram um veio apartidário e mundializável. Representam problemas de sociedade. Diálogos e debates intelectuais, culturais e morais que precisam ser explicitados em toda parte. Não apenas na França.

Esses diálogos e debates de sociedade serviram de plataforma para a candidatura de Éric Zemmour às presidenciais francesas de 2022 nas quais ele ficou em quarta colocação – abaixo de Jean-Luc Mélenchon (terceira), Marine Le Pen (segunda) e Emmanuel Macron (primeira). Note-se que do zero à quarta colocação numa eleição majoritária complexa como a francesa merece muita atenção. Especialmente porque isso só se deu pela força das ideias. Essencialmente ideias contidas nesse livro.

Le suicide français, ao que tudo indica, não recebeu versão em outros idiomas. Segue, assim, disponível apenas em francês.

O seu projeto intelectual preciso consiste em “desconstruir os desconstrutores”. Em sua impressão, o que veio depois maio de 1968 subverteu a história, a memória e o inconsciente coletivo franco-europeu sobre a essência da civilização ocidental. Sua vítima objetiva reside na famigerada french theory.

No plano geral, Zemmour percebe que maio de 1968 completou o parricídio iniciado em janeiro de 1793 – momento da degola do rei. Goste-se ou não, em sua impressão, maio de 1968 desembocou na saída do general De Gaulle do poder e na aceleração da “americanização” e “desocidentalização” da realidade francesa e europeia. Nem Marx nem Jesus, como diria Jean-François Revel. Sendo direto, a mutação da sociedade após-1945 não veio nem de Roma com a cristandade nem de Moscou com o socialismo real.

O desenrolar de seu argumento vai jogando água no moinho da tese do “choque de civilizações”. A fragilização da cultura e da identidade francesa e europeia, entende ele, foi fragilizando a própria cultura e identidade do Ocidente. Somado à queda de fecundidade na Europa e na França e, em contraponto, a constância das taxas de natalidade nos mundos africano e árabe e à ascensão econômica da Ásia o destino dos ocidentais seria a irrelevância.

Duas frases.

Éric Zemmour, repita-se, é um reacionário, ultraconservador e nostálgico de um tempo que não existe mais: o tempo, justamente, quando a França, a Europa e o Ocidente dominavam o mundo.

Le suicide français é um livro inteligente, erudito e complexo que merece ser lido.

Dito isso, note-se.

Mais e mais desaparecem os fragilíssimos consensos – geralmente fabricados por esquerdistas, acadêmicos, malformados e pessimamente informados – sobre a dimensão mais positiva que negativa da Revolução Francesa e das jornadas de maio de 1968. A literatura e as evidências sobre os dissensos viraram imensas e, agora, nos últimos anos, começam a chegar ao grande público em todas as partes. O maniqueísmo da leitura malfeita de Marx, de marxismos e da tradição marxista turvou longamente os olhares. Doravante só não retiram os ciscos dos olhos aqueles que realmente não querem. Mas esse seria outro assunto.

Sobre o ocaso do Ocidente – outra obsessão de Zemmour – também já existe uma fortuna crítica gigantesca. E, nesse caso, em todos os matizes. O debate não circunscreve simplesmente Samuel P. Huntington. Talvez não se trate necessariamente de um “choque de civilizações”. Mas o “fim do parêntese ocidental de dominação do mundo” claramente segue recrudescendo. O medo dos bárbaros – que tem por subtítulo para além do choque de civilizações – do falecido Tzevtan Todorov mereceria ser relido para um reposicionamento. O Ocidente sequestrado de Milan Kundera também.

Corretos, desvairados ou extravagantes, os argumentos de Le suicide français possuem rastros bem profundos na historiografia, na sociologia e na recomposição política. Fernand Braudel terminou a vida sem terminar seu projeto de refletir sobre a identidade francesa. O seu L’identité de la France foi publicado postumamente em 1986. Mas é interessante de se notar que o seu primeiro livro de grande repercussão foi Grammaire de civilisations de 1963. De um ao outro o assunto não se alterna. A preocupação com o ethos francês, europeu e ocidental reside neles dois. Seu trabalho mais extraordinário foi claramente a sua tese de doutoramento publicada como La Méditerranée em dois volumes gigantes, vibrantes e penetrantes. Mas o seu esforço mais abrangente foi contido na trilogia Civilisation matérielle, économie et capitalisme.

Quem tiver o cuidado de retornar a esse texto vai perceber algo interessante. O primeiro capítulo do primeiro volume tem por título Le poids du nombre [o peso do número]. Sim: a demografia conta. E, nesse sentido, os fluxos de imigração também. Portanto, a fixação, quase tara, de Zemmour pode ter algum sentido.

Le suicide français precisa, assim, ser lido não com o propósito de se refutar ou endossar as suas teses. Ele precisa ser absorvido porque as sociedades ocidentais ambientadas em democracias débeis e decadentes começaram a se espelhar em tudo que vai descrito nele. A ascensão de extremos e extremismos políticos em todas as partes decorre da desmoralização de segmentos tradicionais, como partidos e sistemas partidários, assentados em forças concretas e reais da sociedade.

Um elemento como Donald J. Trump jamais existiria se o partido republicano fosse uma agremiação verdadeiramente sólida e ancorada em membros sem telhados de vidro tão facilmente quebráveis. Emmanuel Macron, França, seria ninguém se o partido socialista e o partido gaullista (União por um movimento popular – UMP à época; Les Républicains hoje) continuassem polarizando a realidade política francesa. No caso brasileiro nem se precisa falar muito.

Em suma: leia-se Le suicide français.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

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