Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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Claudine Gay e nós, por Daniel Afonso da Silva

Quem acompanha a imprensa norte-americana e europeia dos últimos anos vai se lembrar de casos de professores universitários caçados e cassados

Harvard University

Claudine Gay e nós

por Daniel Afonso da Silva

Quem tiver a paciência de guardar às rápidas os presentes de Natal, superar os drinks do Réveillon e ler e reler com calma a carta-renúncia da professora Claudine Gay [vide https://www.harvard.edu/president/news/2024/personal-news/ ] à presidência da Universidade de Harvard, tornada pública no primeiro dia útil de 2024, vai perceber que as aves de péssimo agouro que rondam as universidades em todo o Ocidente começam a ver seus ovos peçonhentos virarem serpentes. E, claro, quem dispor de alguma sensibilidade vai também entrever que o Natal e o Réveillon da referida professora foram simplesmente horríveis.

Não é o caso de se retomar tampouco de se tomar partido das questões de fundo da problemática que foram suposta e essencialmente 1. a posição entendida como “ambígua”, “incompleta” e “inadequada” de sua manifestação no Congresso norte-americano sobre possíveis elogios ao antissemitismo no interior de Harvard após os incidentes do 7 de outubro de 2023 em terras médio-orientais e 2. denúncias gravíssimas de plágio em sua tese de doutorado.

Também não vem à discussão a dimensão pretensamente racial e racialista do caso. Menos ainda teria sentido se rebaixar o debate aos termos idiotamente sexistas de Lawrence Summers, que inferiorizava mulheres por serem mulheres com profunda convicção e sem se enrubescer.

O viés mais decisivo do dossiê Claudine Gay reside em outro lugar. Um lugar que ninguém quer ver. Aquele canto que envolve três palavras: universidade (leia-se: sociedade), moral (leia-se: falso moralismo) e ética (leia-se: covardia pura e simples somada a mau-caratismo desbragado).

Tem uns quarenta ou cinquenta anos que aquilo que desde o medievo se convencionou chamar de universidade começou a perder a bússola, o sentido e o destino. Desde que movimentos sociais invertebrados, tendências partidárias desconexas e o politicamente correto invadiram os campi, o prumo de tudo que tinha algum prumo ficou avariado. O mundo real, concreto, cotidiano deixou de existir entre os universitários – estudantes, professores e servidores. A ilusão do fluir e a incongruência do proibir proibir foram tomando conta dos imaginários. Notadamente no Ocidente. Especialmente, nos Estados Unidos. Mas também na Europa e no extremo-Ocidente chamado Brasil. Existem bibliotecas inteiras com livros, artigos, relatórios e dados demonstrando essa incontestável degeneração dos templos do saber.

O ponto de partida dessa incisiva desconstrução foi promovido pelos agentes dos serviços de inteligência e estratégia norte-americanos – CIA e FBI à frente – que convocaram aqueles rapazes obscurecidos e ostracizados no contexto dos estruturalismos e pós-estruturalismos franceses – a saber: Foucault, Deleuze, Guattari, Derrida –, enlataram as suas piores conversações e as venderam aos jovens imberbes norte-americanos como a fina flor da French Theory.

Qualquer iniciado em Humanidades sabe bem que cada um desses senhores produziu reflexões complexas, dinâmicas, contraditórias, de ruidosa deglutição, dificilmente compreendidas mesmo em sua língua original, o francês, sem maiores preparos e, assim, portanto, quase intraduzíveis a outros idiomas. Pois, não. Os agentes dos aparatos norte-americanos fizeram questão de apanhar o que havia de mais conturbado no pensamento desses franceses obtusos para verter, sabe-se lá como, para o para o inglês; e do inglês para todos os idiomas de países que participavam do eixo macartista anticomunista daqueles anos de 1960-1970.

Quem tiver o pudor de cotejar o que Foucault, Deleuze, Guattari, Derrida produziram em sua língua materna com aquilo que se compartimentou em inglês vai perceber o grau de falsificação. Algo simplesmente horrível. Que seria apenas feio se não fosse também desonesto. Apenas desonesto se não fosse criminoso. Uma desonestidade criminosa que galvanizou a desconstrução, a desrazão e a derrisão.

É, hoje, assente que a difusão dessa French Theory nos campi norte-americanos e, em seguida, pelo mundo inteiro, ajudou a desertificar, com raríssimas exceções, diversas práticas do saber e especialmente o rigor da produção de saberes essenciais em todas as partes. Hannah Arendt notou o início dessa tragédia. Seus últimos textos versaram claramente sobre isso. Mas, seguramente para o seu bem, ela morreu antes de ver a desgraceira estabelecida.

Devido também a isso, deixou-se de ler Smith, Hegel e Marx para se folear Foucault. Deixou-se de estudar Nietzsche, Goethe e a Bíblia para se dedicar a Deleuze e Guattari. Parou-se de se tentar decifrar Freud, Jung e Weber para se descontruir com Derrida. Impressões de Direito, Literatura, História e Cultura Geral viraram démodé. Noções de Economia ninguém também quis mais aprender. Tanto que um publicista, em outro contexto, mas com a consciência aterrada nessa degradação, teve de lembra aos incautos dos imperativos da economia – “the economy, stupid”.

Como decorrência desse rebaixamento da honestidade técnica e intelectual na perquirição do desconhecido, o moralismo – em verdade, um falso moralismo – tomou [ainda mais] conta das decisões no interior das universidades. Por conseguinte, pouco a pouco, a etiqueta político-identitária passou a valer mais que a compleição intelectual. Como consequência, toda a resistência à desconstrução, degeneração e imbecilização dos espaços de saber passou a ser enquadrada como racismo, sexismo, machismo e coisas do gênero.

Que racismos, sexismos e machismos sempre existiram e de modo repugnante em todas as entranhas dos espaços universitários ninguém pode duvidar. Mas, de uma hora a outra, começar a encontrar racistas, sexistas e machistas em todos vãos e corredores aí virou paranoia. Tanto que os maiores incentivadores dessas fantasmagorias – leia: infantilização das relações sociais e universitárias – se revelaram, não raramente, senhores com telhados de vidro. Os famosos mestres em desconstrução. Uma desconstrução estridente. Motivada por grupos que sempre gritaram bem alto e nunca – repita-se: nunca – foram, de fato, a favor de liberdades diferentes das suas próprias. Autoritários até a medula. [Nota de rodapé: dentro de qualquer espaço universitário é um imperativo de sobrevivência colocar em suspeição aqueles seres iluminados que pronunciam em demasiado a palavra democracia. São canalhas autoritários se esgueirando para dar o bote.]

O reinado dessa gente marinada na French Theory durou de maio de 1968 a setembro de 2008. Nesses quarenta anos, os divergentes foram todos esmagados, silenciados, escalpelados pela fúria dos paladinos da bien-pensance. Exceções existiram. Mas, por serem exceções, sempre foram raríssimas.

Quando a hegemonia desses soixante-huitards decaídos começou a ruir, o mal-estar e o mau-cheiro começaram a afluir. O recurso desses quase sempre literalmente canalhas foi o esperneio. Um esperneio baseado nos únicos mecanismos que lhes sobraram: a covardia e o denuncismo.

Desse modo, de súbito, após 2008, esses desclassificados colocaram os comitês de ética e de correção universitários para trabalhar. Como esses comitês funcionam por provocação – ou seja, precisam ser acionados, provocados –, a partir da fúria dos covardes o trabalho desses comitês virou infinito.

À época, 2008 em diante, mesmo nos Estados Unidos, tudo isso parecia salutar. Entendia-se como um movimento de higienização. Ao menos foi como foi vendido. Os saudosistas do stalinismo chamavam de “imperativo da autocrítica”. Aqueles ainda iludidos com os ditames da Escola de Frankfurt consideravam simplesmente “exame de consciência”. Mas, ao fundo, não passava de uma estratégia de sobrevivência para verdadeiros doutores decaídos. Se o Dany, le Rouge – pensavam eles – derrubou o general De Gaulle por quê um professor universitário não derrubaria um colega de trabalho também professor universitário que não participa do mesmo modo de pensar, agir, andar e respirar?

Dito sem filtro: canalhas, covardes, cretinos.

Quem acompanha a imprensa norte-americana e europeia dos últimos vinte anos vai se lembrar de casos às fartas de professores universitários caçados e cassados de seus postos com base em denúncias fajutas aceitas por comitês ética e correção fajutos compostos por professores universitários e servidores integralmente fajutos.

Como os denunciantes ficaram em lugares de suposto poder por muito tempo como chefes de departamento ou de unidade eles mantiveram, depois de destronados, os seus mecanismos de controle e coerção. Eles sabiam exatamente quem denunciar, como denunciar, quando denunciar e para quem apresentar a denúncia.

Repita-se sem filtro: canalhas, covardes, cretinos.

Restam dúvidas?

Sem citar nomes.

Um importante intelectual francês, especializado em mundos árabes contemporâneos e professor numa das principais universidades de seu país – e, portanto, do mundo – foi obrigado a renunciar à carreira depois de mais de quarenta anos de atividade. Os meliantes universitários processaram-no nesses comitês de ética e correção fajutos que todos sabem como funcionam sob o argumento de que o “árabe” e a “cultura dos árabes” seriam ensinamentos “antissemitas” e, portanto, perigosos à “grandiosidade da cultura francesa, europeia e ocidental”. Parece brincadeira. Talvez recreação. Nem Albert Uderzo e René Goscinny imaginariam figurações tão fantásticas para suas personagens Asterix e Obelix. Hergé do Tintim muito menos. Pois foi assim. Como o referido arabista tinha e tem relevância mundial, os seus pares no comitê fajuto de ética e correção fajutas decidiram arquivar o processo. Seria muito vergonhoso demais aceitar denúncias tão vazias, indecentes, imorais e anti-intelectuais. Arquivaram, então, o processo. Mas não se renderam. Afinal, são canalhas, covardes e cretinos. Por ser assim, recomendaram aos discentes que deixassem de seguir as disciplinas ofertadas pelo referido professor sob pena de eles próprios discentes serem postos em suspeição. Resultado: o professor ficou sem alunos, sem turmas, sem financiamentos e sem razões para justificar a sua permanência no posto.

Dá para acreditar em algo assim, na França, núcleo de saberes, em pleno século XXI?

Pois, sim.

O nobre professor foi posto no index. Virou persona non grata. Malgrado a sua cultura e a despeito do seu saber; no pays des lumières, no século da informação e do conhecimento.

Impressionante.

Claramente esse caso não foi nem é isolado. Tampouco tratou-se nem se trata de uma peculiaridade francesa. Na Inglaterra existiram e existem situações similares. Na Itália, entre os ibéricos, na Bélgica, na Holanda. Por toda parte. Basta que se leia a imprensa europeia com calma alguma retidão para recuperar essas situações verdadeiramente inacreditáveis.

Nos Estados Unidos esses casos explodiram nos últimos anos. Não foi um nem dois. Foram dezenas. Talvez centenas. Perdeu-se a conta. Nem vale a pena rememorar.

Há casos muito famosos. Outros nem tantos. Mas todos – sem restrição – ou quase todos – com poucas exceções – envolveram egos de falsos moralistas feridos. Gente soixante-huitards decadente. Ou simplesmente herdeiros deles demasiado incompetentes. Gente que vendeu o amor pela dúvida pelo autoritarismo da certeza. Esses velhotes que agem como rapazes de centros acadêmicos apodrecidos saudosos do interstício cubano de 1953 a 1959. Senhores e senhoras indecentes e covardes – perdoem do pleonasmo. Paladinos da ética, da moral e dos costumes que nunca tiveram. Cretinos em natureza pura e simples.

Evidentemente que alguns denunciados mereciam sê-lo. Harold Bloom e Boaventura de Sousa Santos, para ficar apenas em dois famosos, cometeram, ao que tudo indica, atos repugnantes e, novamente ao que tudo indica, não conseguiram inverter o ônus da prova por não possuíram prova em contrário para apresentar. Mas, note-se: não se trata disso. O denuncismo ambiente após 2008 veio de naturezas moralistas e diz respeito a divergência entre “opiniões”, “impressões”, “posturas”, “posições”, “vocabulário” e até mesmo “vestimenta”.

Não é preciso reabilitar em profundidade a trajetória da professora Claudine Gay para saber que o grupo que apoiou a sua ascensão ao posto mais importante de uma das universidades mais relevantes do planeta foi um grupo de falsos moralistas, identitários e de mistura woke. Até aí nada demais. Como se diz, faz parte do jogo e a professora Harvard aceitou jogar.

Não há santos no serralho. Todos sabem disso. Entretanto, ninguém poderia imaginar que os acólitos desse lupanar fossem engasgar no primeiro gole, covardemente virar as costas e partir e deixar todas as faturas para a professora Claudine Gay acertar. Pois foi assim. O pole dance nem tinha começado e cada qual encontrou uma desculpa abandonar a reitora de Harvard à sua própria sorte no interior do lusco-fusco daquela incontestável selva selvagem.

Sem ironias, quando a brutalidade da realidade bateu às portas, todos – leia-se e anoite-se: todos – abandonaram Claudine Gay à sua própria sorte. Mesmo os seus mais fervorosos compagnons de route. Todos.

Quem acompanhou a sua situação desde novembro de 2023 notou que a mulher foi definhando no posto. Depois de algum tempo, seguramente nem café nem água lhe serviam. Talvez nem o pó de seu gabinete retiravam. Ela ficou sem nenhuma retaguarda. A violência alheia era previsível. Mas como aceitar – aceitar, pois a explicação já está dada – a covardia daqueles que a abandonaram?

Perguntas adicionais singelas.

Como essa gente identitária e de mistura woke pode ser tão covarde?

Quem vai restituir a dignidade pública dessa senhora? [Note-se: ninguém pode duvidar que Claudine Gay seja uma mulher correta, honrada e competente. Do contrário, jamais teria sigo ratificada como presidente de Harvard].

Qual outra mulher, negra ou não, vai querer se aplicar para ser reitora de Harvard?

Note-se e anote-se: ninguém chega a um cargo desses sem conflagrações, oposições e disputas campais. Ninguém. Mas, ao mesmo tempo, ninguém permanece nesse cargo sem que o apoio do início continue consistente até o fim.

Sendo bem claro, a reitora de Harvard vem de renunciar não pela pressão de congressistas ligados ao lobby judaico nem pela agressão da opinião pública e publicada norte-americana revoltada com as manifestações de apoio à Palestina ocorridas nos corredores da universidade. Ela abdicou da função porque foi abandonada pelos seus apoiadores, inclusive os mais próximos, todos gigantes com pés de barro.

Impressiona e repugna.

Ao mesmo tempo que sua renúncia era divulgada no Personal News de Harvard, lia-se nos portais de notícias brasileiros o clamor de um distinto professor contido no título “a insustentável falta de leveza do mundo acadêmico”. Traduzindo-se para um bom português, sim: a covardia dos canalhas, inquestionavelmente cretinos, geralmente identitários, quase sempre de mistura woke e francamente indigentes universitários não é um monopólio de norte-americanos nem de europeus. Pelo Brasil existem às fartas essa espécie de criminosos travestidos de professores universitários.

Que não se exalem ilusões.

Depois das noites de junho de 2013 os ambientes universitários brasileiros foram progressivamente degradados. Já não eram excelentes, começaram a ficar horríveis. Entre 2019 e 2022, essa degradação chegou ao seu pior estágio. Lembre-se – mesmo sem se querer lembrar – que o MEC teve como ministros Abraham Weintraub e Ricardo Vélez. Nada contra esses senhores. Menos ainda contra o mentor deles que vivia na Virgínia. Mas não nem pra comentar. Depois disso veio 2023. O Ano I do mandato 3. Mas nada efetivamente mudou. Apenas em aparências. Talvez nem nisso. Intramuros, em 2023, a caça às bruxas continuou. Agora com sinais trocados. Os identitários voltaram ao poder furiosos e sedentos por revanche. Alguns vários estão envelhecidos. Mas como dizia um sábio: os canalhas e os cretinos também envelhecem.

Triste sina das universidades pelo mundo e pelo Brasil.

Que a tragédia da professora Claudine Gay da Universidade de Harvard ensine alguma coisa às coletividades universitárias brasileiras.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

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