Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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Tempos sombrios, por Daniel Afonso da Silva

E, pior: os mandatários do planeta parecem todos sonâmbulos como às vésperas de 1914 e no entremeio dos acordos de Munique de 1938.

Athos Bulcão

Tempos sombrios

por Daniel Afonso da Silva

Virologistas de todas as partes indicam a possibilidade da insurgência de uma nova onda de Covid-19 neste fim de ano. O natal dos ucranianos vai ser o mais desolador desde a independência do país tem trinta anos. A situação em Israel e na Palestina segue simplesmente convulsionada e eternamente sem solução. As várias Áfricas no interior do continente africano jamais estiveram tão indispostas umas com as outras e com suas antigas metrópoles. O presidente Joe Biden vem de ser objeto de um pedido de impeachment e, com isso, amplifica a pavimentação do caminho para o retorno do magnata Donald J. Trump à Casa Branca. Na Argentina, el loco chegou simplesmente barbarizando com a sua outsider concepção de anárquico-capitalista da vida – uma concepção, convenhamos, que ninguém sabe muito bem do que se trata. Na Holanda, o extremista Geert Wilders conseguiu chegar ao poder para o espanto de muitos e a alegria de outros tantos. Viktor Órban da Hungria e Giorgia Melonia da Itália já viraram frequentáveis e conviviais e, agora, fazem tranquilamente parte da paisagem política local, regional e mundial – ninguém ousa mais desqualificá-los nem os destratar. Marine Le Pen consolida as suas passadas firmes rumo à presidência francesa. Venezuelanos reabilitaram uma antiga escaramuça com o Reino Unido, hoje, Guiana e prometem ir até o fim. O Brasil vem de confirmar um “comunista” – com muitas aspas – no Supremo Tribunal Federal e o presidente Lula da Silva se diz contente e feliz. E, se nada disso bastasse, “la maison brûle” [a Terra está pegando fogo] – 2023 teve os dias mais quentes registrados na sequência de registros sobre dias quentes – “et nous regardons ailleurs” [e nós olhamos para outros lugares] – porque, sinceramente, ninguém sabem muito bem o que fazer diante da verdadeira guerra climática que nos aflige a todos.

Eis um singelo retrato de 2023. E tem mais.

Ao longo do impasse russo-ucraniano-europeu-norte-americano-ocidental e da nova fase da contenda israelo-palestina-europeia-asiática-africana-ocidental-médio-oriental os ponteiros do relógio do Apocalipse se fixaram em 23:58:30 indicando que faltam, assim, exatamente, um minuto e meio para o fim do mundo. Sim: o embate nuclear voltou aos horizontes de modo tão ou mais perigoso quanto em 1962. Sim: o mundo está, como nunca, sem bússolas e não é nostalgia voltar ao passado para evidenciar a indigência dos dias que correm.

Em 1962, o mundo ainda dispunha da abundância de homens de Estado em lugar de meros gestores da ação estatal que os tempos atuais obrigam a denominar de chefes de Estado. Naquele momento agudo da história recente do após Segunda Guerra Mundial, Charles de Gaulle, Winston Churchill, Mao, Konrad Adnauer, Antonio Segni e tantos outros eminentes e verdadeiros homens de Estado com a sua vida davam testemunho da imperiosidade do trágico na vida e do trágico na história. Todos eles – goste-se ou não – traziam no corpo e na alma as marcas do traumatismo sem-nome e sem paralelos das guerras totais. Essa ambiência conferia e impunha aos negociadores os destinos do mundo níveis de dignidade moral, grandeza espiritual e responsabilidade humana completamente inexistentes e inimagináveis no entorno das atuais lideranças supremas do planeta. Ao que tudo indica, hoje, não existem mais telefones vermelhos entre as chancelarias nem entre as presidências.

Jean-Luc Barré, historiador e político francês, nesse sentido, vem de publicar o primeiro volume de uma imensa biografia do general De Gaulle. Em verdade, não são muitas as existentes. Existem numerosos arquivos públicos e privados ainda inacessíveis. Isso quer dizer que a moldura desse gigante do século XX continua muito incompleta mesmo que muito já se tenha dito e escrito sobre ele. De toda sorte, é, no mínimo, curioso o título de Barré: De Gaulle – l’homme de personne [De Gaulle – o homem de ninguém]. Mas, mais curioso que o título, é demasiado intrigante as razões do projeto da trilogia sobre o general: na constatação de Barré, todos os segmentos políticos franceses em atuação atualmente – dos extremistas à esquerda e à direita aos centristas no poder – se reivindicam do gaullismo e dos exemplos do general.

A pergunta é uma só: por quê?

Pode não parecer e por isso é importante se lembrar que o general De Gaulle foi simbolicamente expulso do poder após as tensões francesas de maio de 1968 e a derrota no referendo de 1969. O que também não segue evidente é que esse herói das guerras totais e responsável direto pela recomposição da França depois de 1958 foi legado ao degredo da imaginação política francesa até bem recentemente. Talvez somente o marechal Pétain tenha sido tão combatido, ostracizado e desmoralizado em vida.

De toda maneira, a morte do presidente Jacques Chirac em 2019 sucedida pela morte do presidente Valery Giscard d’Estaing em 2020 pôs, literalmente, fim às referências vivas dos seguidores e imitadores supremos do general. A presidência azarada do socialista François Hollande ficou anos luz de distância da importância da presidência de seu homólogo socialista François Mitterrand. Sobre as presidências de Emmanuel Macron basta que sejam abertos os principais periódicos franceses e europeus para se notar a ausência de rumo. Como dizem por lá, jamais se assistiu tamanha ambiguidade traduzida num “ao mesmo tempo” que serve para justificar tudo e nada. O Júpiter Macron do início foi reduzido a um anão Emmanuel ao final.

Por essas razões, os franceses estão retomando às suas bases e reabilitando a totalidade da história e da memória do general De Gaulle – com todas as suas rugas, erros e acertos – para ensaiar voltar a sonhar o futuro.

Impressionantemente, na Itália, na Alemanha e no Reino Unido faz-se o mesmo. Churchill, Adnauer e Segni voltam sorrateiramente ao noticiário, aos debates, às discussões e à memória coletiva. Basta que se leia com calma os cadernos culturais de seus principais periódicos e se flane pelas listas de publicações recentes do gênero não-ficção de suas principais editoras. A elucubração mais recorrente de todos segue sendo como Churchill ou Adnauer ou Segni agiriam sobre tal e qual assunto; apoiariam ou não a Ucrânia; apoiariam ou não Israel; condenariam ou não o Hamas.

Os norte-americanos, por sua vez, jamais retiraram o Lincoln da Guerra Civil e os Roosevelt 1 e 2 – o do canal do Panamá e o do new deal – do seu imaginário imediato. Entretanto, parecem endeusá-los tanto que não conseguem retirar deles nenhuma lição. E, ao que tudo indica, vão voltar a eleger Donald J. Trump.

Mas o que importa é notar que europeus e norte-americanos estão retornando aos seus grandes líderes. E estão fazendo isso agora porque estão, efetivamente, com medo do fim do mundo.

Todos pouco a pouco vão reconhecendo que foi um equívoco gigantesco fustigar os russos com varas curtas. E, agora, a duras penas, começam a perceber que os fantasmas de Stálin, Catarina, a Grande, Pedro, o Grande e Ivan, o Terrível seguem ambientando as ações do presidente Putin e os milhares de anos de história da China, antes e depois de Confúcio, seguem vivos nas ações de seus mandatários atuais.

Rememorando com sutileza, não foi ao acaso que um dos últimos gestos de Kissinger antes de morrer centenário foi visitar a China para lembrar aos chineses, aos europeus e aos norte-americanos que os gestos contam mais que mil palavras na gestão dos destinos internacionais. Kissinger – admirador de Confúcio, Richelieu, Metternich, Mao, Ho Chi Min e Charles de Gaulle; além de um dos construtores do mundo após 1989-1991 – sabia muito bem da gigante insanidade dos europeus e norte-americanos em tentar produzir uma guerra por procuração na Ucrânia para deliberadamente enfraquecer a Rússia e, por tabela, comprometer a China no médio prazo.

A famigerada memória coletiva dos sofrimentos dos povos conta e Kissinger, mais que quaisquer diplomatas do século XX, sabia disso. Entretanto, ao que tudo indica, os atuais mandatários do planeta que fustigam a Rússia, a China, os médio-orientais e os não-ocidentais deixaram de ser sensíveis a tudo isso.

Os ucranianos, sabidamente, por tudo isso, agonizam desde os primeiros minutos da alvorada do dia 24 de fevereiro de 2022. A inquestionável bravura ucraniana – desses soldados de valor que prometeram lugar até o seu último homem –, de lá pra cá, foi virando desespero. O prefeito de Kiev está agastado com o presidente Zelensky. O chefe de estado maior também. Os europeus, depois do 7 de outubro de 2023, percebem Israel como prioridade irrestrita. A União Europeia – sob forte influência da negativa húngara – tende a não conseguir renovar o seu apoio econômico aos ucranianos. O ingresso da Ucrânia na aventura europeia – todos sabem, especialmente os ucranianos – não passa de uma quimera; e se eventualmente deixar de sê-lo vai virar uma tragédia para todos os envolvidos. Os norte-americanos, a partir de seu Congresso, decidiram priorizar a neutralização do ingresso de mexicanos ilegais em seu território que seguir apoiando os ucranianos. A OTAN – leia-se, os Estados Unidos – não vai intervir militarmente e todos sabem disso desde o princípio. O Conselho de Segurança das Nações Unidas segue paralisado; pois a Rússia e a China continuam membros-permanentes e, portanto, com poder de veto; e, claro, não aceitarão nada contrário à Rússia. Os não-ocidentais – africanos, asiáticos, latino-americanos e médio-orientais – possuem urgências mais palpáveis para afrontar; consequentemente, Israel, Palestina, Ucrânia, Rússia e mesmo as mudanças climáticas firam distantes e abstratas demais para todos eles.

Sim: tempos estranhos construídos entre nós.  

E, pior: os mandatários do planeta parecem todos sonâmbulos como às vésperas de 1914 e no entremeio dos acordos de Munique de 1938.

La maison brûle” [a Terra está pegando fogo] em todos os sentidos e não simplesmente no climático e “et nous regardons ailleurs” [e nós olhamos para outros lugares] porque, sinceramente, todos viraram impotentes por não saber o que fazer. Tempos, sinceramente, horríveis. Tomara que não virem – em alusão à Arendt – sombrios.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

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