Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Dominó de Botequim, por Rui Daher

Nélson Gonçalves

– Sábado, 27 de junho, fez 50 anos que meu pai morreu, “Jogo no pano… jogo… feito! Vermelho 27!”. Eu tinha dezenove e só pensava “Um céu azul de organdi, a camisola do dia, tão transparente e macia” de alguma tia, professora, ou improvável namorada. No domingo 28, minha mãe completaria 92, “Um dia sonhei um porvir risonho”.

Eu, órfão, escutei sussurros de “sentimentos”, e continuei:

– Em casa todos gostávamos de Nélson Gonçalves. Ouvíamos tudo o que o gaúcho de Santana do Livramento, gago criado no Brás, cantara por cinco décadas de encanto. Antes de viajar, passei no Araçá e enchi o túmulo de meus pais com flores e uma foto do Nélson.

– Bacana. Cantor do cacete! Sem ele teríamos sido menos felizes, falou Osorinho, referindo-se a nós e o local “Boemia, aqui me tens de regresso e suplicante lhe peço a minha nova inscrição”.

Passavam quatro horas desde que havíamos aterrissado no “Villinha Botecaria”, de Piracicaba, onde fôramos buscar o Dr. Teodoro Toledo e levá-lo a Marsilac para atender o doente Serafim. Talvez fosse necessário arrumar internação.

Junto a nós estava o ajudante Netinho. Além de ser o único a saber onde ficavam Marsilac e Serafim, como abstêmio convicto, fora escalado para dirigir.

Fazia tempo que Osorinho não via o Dr. TT, mas logo o reconheceu numa mesa de calçada do boteco a nos esperar. Menos pelo porte de homem alto, pesada gordura, longa barba branca a combinar com o paramento médico. Mais pelo “puro” robusto que fumava e o chope circundado por copinhos-guardiões com cachaças de marcas variadas.

Atendiam-nos, com simpatia que vale conhecer, os garçons da casa, Gilvan, Emanuel e Tomasinho.

O Dr. TT já se desculpara por ter-nos feito ir até lá:

– Depois daquele acidente na Rodovia Luiz de Queiroz, nunca mais tive coragem de dirigir em estradas. Só mesmo por aqui, pertinho.

– Desculpas devemos nós ao planeta por não conhecermos antes a “Botecaria”.

Pode ser que a minha introdução triste e fúnebre tenha provocado o assunto, mas o tema velhice havia tomado conta da mesa. À exceção de Netinho, que não despregava o olho da TV no futebol, todos já havíamos passado dos 60, eu na dianteira, a dois meses de ser 7.0.

– Outro dia li uma entrevista do Gil sobre isso. Dizia ele que não o incomodavam os aspectos limitantes e doloridos do passar do tempo, mas sim a crescente percepção da finitude.

– Verdade. A coisa não sai da cabeça. Acabamos de falar em Nélson Gonçalves, poderíamos ter repicado com Altemar Dutra, ou seguindo outros trilhos, Ataulfo, Garoto, Noel, e tantos mais. Quanto tempo ainda temos para ouvir novamente todos esses caras?

– Substitua-os por Paula Fernandes, brinquei. Gostosa é.

– Elizeth também era, retrucou TT.

– E na literatura então? A cada livro ou autor novo que aparece e me recomendam, pergunto: “não seria melhor reler a obra do Machado, Lima Barreto, os portugueses, ou, pior, aqueles que ainda nem mesmo li”?

– É o que sinto, Osorinho, quando olho para as estantes atopetadas de livros a incomodar minha mulher e dar trabalho a meus filhos nesta finitude próxima. Pra quê? Terei tempo de tirar da fila empoeirados Trotsky, Marx, Florestan Fernandes, reler uma página e verificar por que sublinhei certo trecho? Terá lá sobrado alguma verdade ou coisa que presta?

– Rui, TT, meus caros, e filmes, namoradas antigas, perrengues bravos, autoimolações charmosas, bebedeiras, protestos inúteis pelas ruas, quanto disso ainda teremos até o final?

Como sempre, sai do ar uns momentos e confesso um problema. Quando bebo além da conta, passo a enrolar a língua. Até aí, nada demais. Aos bêbados ocorre ficarem com a voz pastosa, chatos. Mas o meu caso é especial. Não é bem uma língua que enrolo, mas várias delas. Doença nova, talvez. Há pouco tempo não teve uma que se originou de aves, outra de suínos? A minha pode ter vindo do contato crescente com coxas reacionárias.

Caso é que, “bêbadosamba”, em meio às frases em português, misturo palavras de espanhol, inglês, italiano, alemão. Outro dia, depois de duas garrafas de vinho, discutindo com um amigo prováveis motivos para a semelhança facial de Fernando Henrique, Gilmar Mendes e Miriam Leitão, incluí na frase a palavra läpp, lábios em sueco.

O sol começara a iluminar a última segunda-feira de junho do ano 2015. Data a que nunca mais voltaremos. O sábado e o domingo de meus pais aniversariantes estavam mortos, como logo estariam aqueles três idosos, entre risos e tropeções, descendo um morrinho do boteco até a beira do rio Piracicaba, para ver de lá o dia amanhecer.

Netinho viria com o carro a nos pegar e levar até Marsilac e o português Serafim. Lembrei-me que, no final da tarde da segunda-feira, tinha encontro marcado com Manoel, na Federação Paulista de Dominó.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

11 Comentários

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  1. ÊEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEÊ, Dominó de botequim !

    Espelho é uma letra de João Nogueira que passou para Diogo Nogueira que passou para …TODOS NÓS.

    Faz um tempo, como em seu relato, resolvi: a partir dali nada de guardar meus discos de vinil , nas respectivas capas de plástico. Alguns já completaram 40 anos… nunca lhes havia desencapado, pois teriam que ser preservados, as capas lindas idem etc. etc.

    Finitudes….

    Decisão: Nada de preservação para a posteridade.

    Joguei as capas fora e, surpreendentemente, encontrei “outras capas”, lindas, coloridas, ainda cheias de vida a serem saboreadas.

    Metáfora vital .

  2. Finitude ou Impermanencia

    Muito bom caro Rui! 

    “Outro dia li uma entrevista do Gil sobre isso. Dizia ele que não o incomodavam os aspectos limitantes e doloridos do passar do tempo, mas sim a crescente percepção da finitude.”

    Ao ler o seu comentário lembrei-me de um dos mergulhos que fiz ao Zen Budismo, quando era mais jovem. O mestre sempre levantava a necessidade de entendermos o conceito da impermanência, ou que não somos permanentes. Que somos finitos, ou  a chamada finitude. Dizia que este conhecimento nos levava a perder as ilusões e a concentrarmos a fazer o que de melhor achassemos, para nós mesmo e para os outros. Da não necessidade de acumularmos bens e as tristezas das coisas  que haviamos deixado de fazer ou viver.

    Hoje na sua idade, aproximadamente, quando penso no assunto fico contente de ter deixado levar por ele. Era um tremendo CDF, cheio de obrigações e comecei a viver de verdade (não confundir com pôrra louquice), aproveitar os pequenos  momentos deleciosos tais como :de não ter horários fixos para levantar-me  e nem para deitar-me, quando possível fazer uma comida de que gosto, e durante a sua preparação  acompanhar bebendo uma deliciosa cachaça Salinas, sorrir o máximo que pudesse, falar uma palavra alegre ou de estímulo a que encontrasse. elogiar o esforço feito pelo outros e aí por diante.

    Assim fui tirando os cadáveres da minha carroça, que agora está muito mais leve de se levar. Os budistas dizem que levamos uma carroça e que pela vida a fora vamos “adicionando cadáveres”,  como nossas mágoas, enganos, maus pensamentos, problemas antigos que não mais existem, nossos desafetos que podem estar mortos ou mudados há muito tempo, as pedras dos sapatos que não mais existem e aí por diante.  deveríamos jogá-los fora, para que a carga fique mais leve ou deixe de existir.

     

     

  3. Caro Rui,
     
    Obrigado pelo

    Caro Rui,

     

    Obrigado pelo post.

    Lavou minha alma.

    O Nelson é a minha voz favorita.

    Valeu mesmo!

    “Boemio, mais um trago, e missão cumprida!”

    Abraço.

  4. Caros,

    amigos e amigas Julião, Odonir e Anna. Não fossem vocês três, tinha me determinado ser este o último Dominó. Nem apareceu lá na frente ou “subiu” como gostam de dizer os reis da nova comunicação, a digital, que também deixa impressões suspeitas. 

    Confesso ter escrito este texto com muita emoção e dificuldade. Os motivos são óbvios para quem o leu. Não é fácil escrever sem entrar no óbvio debate político ou econômico. Criar algo emotivo, com certo humor, personagens do cotidiano tão próximos de nós. Mas o pouco caso geral é extremamente frustrante, mais até do que a remuneração que, vocês sabem, na internet, é nenhuma (e ainda critica-se as impressas …).

    Mais uma vez: não fosse a delícia das palavras que vocês dedicaram ao Dominó, na próxima semana, eu não viria aqui contar qual a doença de Serafim ou o que me falou o Manuel na Federação.

    Por vocês, continuarei tentando trazer um pouco de baixa literatura bem humorada ao CLIPPING geral que está tomando conta da blogosfera no Brasil, pronta a dizer que não temos mais jeito, a não ser que sigamos os milhões de receitas a cada dia publicadas. Beijos.  

    1. Caríssimo Rui,subiu sim.E

      Caríssimo Rui,

      subiu sim.

      E não é isso o que realmente importa, mas que seja uma obra inteira, feita com “inteireza”, já dizia o Bardo Maior – Pessoa – pela boca de Ricardo Reis.

      Para ser grande, sê inteiro: nada 
                Teu exagera ou exclui.
      Sê todo em cada coisa. Põe quanto és 
               No mínimo que fazes.
      Assim em cada lago a lua toda 
              Brilha, porque alta vive.

      Foi esta inteireza que nos cativou; e você sabe o que disse o Príncipe sobre cativar, cuidar, etc.

      Estaremos, e não tenho nenhum receio de falar por todos, te esperando aqui no próximo domingo!

      E por muitos e muitos outros!

      Até!

    2. Caro Rui, não desista, por favor

      Sempre contente com sua colocações . São elas que nos alegram mesmo no momento político de incertezas que vivemos.

      Com elas respiramos um pouco mais leves .

       

      Abraços, do Julião

    3. Delícias ? Delícias são as SUAS palavras, Rui

      Chamei um pessoal pra cantar pra vocês do dominó.

      Acontece que chegaram atrasados. Foram buscar o Zeca em Xerém, lá na minha Xérem.

      Cerveja vai, cerveja vem. A noite caiu. O céu esfriou, e pudemos chegar só hoje pra cantar pra vocês.

      Perdoe-nos o atraso, viu.

       

      Abraços a todos.

       

      [video:https://www.youtube.com/watch?v=iuD2KwYbJGo%5D

  5. Vivi os tempos mais distintos

    Vivi os tempos mais distintos da dupla Nelson Gonçalves e Caubi Peixoto. Eles, como todos os grandes artistas, viajavam o Brasil inteiro, porque eram ouvidos pelos rádios, e só não faziam matar as jovens de tantas alegrias, e endeusamento pelas vozes distintas, poré, vibrantes que ambos tinham como os mais penetrantes em todas as culturas brasileiras, desde os Norte, passando pelo Centro, sudeste, indo ao Sul. Eram divinos mesmo.

    Caubi ainda está vivo, e prossegue sendo aquela figura muito respeitada, muito lembrada, merecidamente. Que tenha saúde e prossiga entre nós enquanto puder, enquanto o povo brasileiro o mostrará às novas juventudes sua trajetória artística.

    Mas, sinceramente, vou morrer muito indignada com a morte esquecidade de Nelson Gonçalves. Ele tinha uma voz como poucos, e cantava com o coração e a alma. Nelson, diferente de Caubi, foi vítima do vício das drogas, e por isso sofreu muito. Por acaso sei que ele teve na sua última esposa, mãe de seu filho, quem lhe deu a mão e por ele sofeu também, e com ele viveu os momentos dele, de muita infelicidade para sobreviver aos vícios. 

    Um dia perdi meus documentos dentro de um táxi no Rio, que foram parar na rádio Globo, que sempre prestou esse serviço de entrega de coisas perdidas. Muito feliz fui buscar minhas jóias perdidas, e lá vi entrar, e vi pela prmeira vez a imagem viva de Nelson Gonçalvez. E presenciei aquele homem tão magrinho, e tão debilitado, que me deu muita pena. Mesmo assim, tive muita vontade de dizer-lhe o quanto cantava suas canções desde minha meninice, e como amava aquela voz. Nada disse, mas me dei por feliz de vê-lo tão perto ao menos uma vez.

    Lembro-me muito bem que soubemos da morte de Nelson Gonçalves em meio a homenagens que as televisões prestavam a um político que morrera um pouco antes. Foi durante o governo de FHC. Sempre penso que foi no dia d amorte do filho de FHC, presidente do Congresso à época. Depois acho que foi no dia em que morreu outro tucano, amigo de Fernando Henrique. O fato é que o estardalhaço sobre a morte do político foi tão grandiosa, e tão sem sentido, que Nelson Gonçalves mal apareceu. Aí, pensei que depois a imprensa resgataria aquelas imagens da vida do grande cantor quando passasse aquele espetáculo sobre a ida de um político de tão pouca imporância, se comparado a Nelson. 

    Nada sobre Nelson Gonçalves. Até hoje poucos são os que fazem alguma homenagem àquele grande cantor. Há uns dois anos Ratinho levou ao palco a viúva e o filho de Nelson Gonçalves, e com muito respeito fez hoemangens lindas à memória dele. 

    Enfim, queria entender a razão dessa amnésia nacional sobre uma figura tão importante da arte da música popular brasileira. Será que é discriminação porque o homem foi viciado em cocaína?

     

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