Guiados pelo pintor Caravaggio, Dom Quixote e Sancho Pança visitam o Inferno

Por Sebastião Nunes

O velho, alto e musculoso, conduzindo o barco que flutuava nas águas revoltas do Aqueronte, gritou para os recém-chegados:

            – Ai de vós, almas condenadas! Jamais vereis o Céu. Levadas por mim à treva eterna da outra margem, sereis em gelo e fogo perpetuamente mergulhadas. E tu, que vieste do Purgatório, afasta-te desses outros mortos!

            – Deixa de conversa fiada, Caronte – respondeu Caravaggio. – Estou aqui, como guia destes espectros, atendendo a apelo irrecusável da sublime Dulcineia del Toboso, que Deus a conserve em formosura. Ela nos forneceu salvo-conduto. Então deixa de lerdeza e conduz os visitantes para o Inferno.

            Apeou-se o magro fantasma de Dom Quixote do espectro magro de Rocinante, seu magérrimo cavalo. O espectro gordo de Sancho desceu do fantasma gordo de seu burro. Às margens do rio largo, empurrando-se e esmurrando uns aos outros, milhares de criaturas, magras e gordas, se atropelavam em desespero e fúria.

            – Quem são essas inquietas almas, ó Caravaggio, nosso guia – indagou Dom Quixote. – Por que tão ansiosas se mostram, confrontando-se sem descanso?

            – Ah, isso aí é uma mixórdia de senadores, deputados, juízes, empresários, burocratas, prefeitos e vereadores brasileiros condenados ao Inferno por corrupção. A ansiedade que demonstram é pela pressa de entrar.

            – Virgem Maria! – exclamou o simplório Sancho, arregalando os olhos. – Mas é alma penada demais. Será que não tem nem uma inocente entre elas?

 

CARAVAGGIO EXPLICA – PARTE I

 

            – Caronte é metido a besta porque acha importante a travessia das almas que chegam da divina triagem. Mas não manda nada. Só tem pose.

            – Nunca pensei que minha adorada senhora Dulcineia del Toboso fosse tão poderosa. Esse salvo-conduto, ela conseguiu com quem? – perguntou Dom Quixote, suspirando de saudade e cofiando a longa barba branca.

            – Com São Pedro, é claro. Ele é o responsável pelo trânsito na Terra, no Céu, no Purgatório e no Inferno. Deus tem mais o que fazer e não quer nada com essas idas e vindas. Quero dizer, antigamente, só vindas. Agora é trânsito de mão dupla.

            – E daqui, pra onde vão? – indagou curioso o Cavaleiro da Triste Figura.

            – Depois de atravessar o Aqueronte, esse rio turbulento que vemos, as almas são encaminhadas a um dos círculos infernais – respondeu Caravaggio. – Caronte só faz a travessia, depois cada uma segue o mapa que lhe é entregue na recepção.

            – Mas sozinhas? – Ninguém acompanha pra evitar que fujam?

            – Ah, ah, ah – riu o grande pintor. – Fugir do Inferno? Nem o maior dos mágicos conseguiria. Não tem como. Aliás, ninguém quer fugir. Além disso, aqui só tem entrada. Quero dizer, antigamente, no tempo em que os bichos falavam e as galinhas tinham dente, só havia entrada e nenhuma saída. Agora mudou tudo e o trânsito é de mão dupla. Nada como a modernidade! Mas São Pedro odiou as mudanças.

 

CARAVAGGIO EXPLICA – PARTE II

 

            – Quanto ao que o amigo Sancho perguntou, fica claro que, enquanto vivo, cada indivíduo escolhe como viver – explicou calmamente Caravaggio. – Por mais raros que sejam, sempre existem os imunes à corrupção, porém chegar ao poder é mais ou menos como cair em correnteza na época da enchente das goiabas ou ser sugado por algum redemoinho gigantesco no alto-mar. Também funciona desse jeito nos labirintos do poder. Se é preciso muita força física para escapar da correnteza ou do redemoinho, maior força moral é exigida para escapar da corrupção.

            Dom Quixote, até então distraído com a turba imensa, espantou-se:

            – Valha-me minha senhora Dulcineia! Nunca imaginei que o poder fosse que nem monstruosa sanguessuga, do qual raros escapam sem feridas ou cicatrizes – pensou um pouco e continuou. – Deve ser como lutar contra 100 malandrins armados dos pés à cabeça, todos atacando de uma vez. Ou investir contra 100 gigantes de 45 metros de altura, todos agitando os longos braços.

            – É por aí, amigo Quixote – respondeu Caravaggio. – Veja o meu caso. Nunca fui flor que se cheirasse. Basta ver meus autorretratos. Eu era feroz. No entanto, por maiores que fossem meus crimes e pecados, fui condenado apenas ao Purgatório. E sabe por quê? Por falta de vaga no Inferno. Por falta de vaga!

            – Mas Deus, nosso senhor – interrogou Sancho –, em Sua onipotência e onisciência, não foi capaz de prever a infernal superlotação?

            – Infelizmente, meu caro Sancho, nem Deus foi capaz. E se Ele não foi, quem mais seria? Por isso está o Inferno tão cheio e o Céu, em comparação, tão vazio. Penso que Ele subestimou os homens, quando os criou, na capacidade que têm de trair uns aos outros. Pensou que os puros, bons e honestos seriam infinita maioria, mas, ah… caiu do cavalo! E que tombo Ele levou! Mas foi de propósito, claro, pois assim Ele quis.

 

OS CÍRCULOS INFERNAIS

 

            – Mas espere aí, meu caro – exclamou Dom Quixote. – Os círculos infernais, pelo menos na concepção do imortal poeta Dante, são nove. Em algum deles deve haver vaga. Não digo no círculo dos assassinos, por exemplo, que hoje se mata num piscar de olho. Nem dos puxa-sacos, pois é através deles que os poderosos se afirmam. Nem dos agiotas e avarentos, faces opostas da mesma moeda. Também aí não deve haver lugar. Mas, digamos… digamos… É, tá danado. Tá complicado encontrar vaga.

            Conversa vai, conversa vem, chegaram à outra margem.

            – Descei, infelizes! Jamais encontrareis o caminho de volta. Com ou sem salvo-conduto. Deixai toda esperança, ó vós que entrais!

            – Não enche o saco, Caronte – irritou-se novamente Caravaggio. – Além de velho, caduco. Não sabe que os tempos mudaram? Que não existe mais o Inferno de antigamente? Que o próprio Deus, do alto de Sua sapiência, mudou tudo?

            – Nunca! Não mudou nem vai mudar. Não acredito numa só palavra do que dizeis! – aturdiu-se o velho barqueiro, eternamente velho, eternamente condutor de almas para o Inferno. – Isso é blasfêmia, e toda blasfêmia será castigada.

            – Vamos, meus amigos. Em frente, que o Inferno nos espera. Esqueçam esse velho maluco e falastrão, pois temos mais o que ver e fazer.

 

NOVOS RUMOS DO TURISMO

 

            Logo em frente, abriram-se silenciosamente as portas de amplo e moderno elevador, dotado de poltronas reclináveis, ar-condicionado e música ambiente.

            – Uauuu! – exclamou Sancho. – Isso é muito melhor do que lombo de burro.

            – Pois é – disse Caravaggio. – Como nunca saiu do Aqueronte, o velho barqueiro Caronte não sabe das transformações. Mas você ainda não viu nada.

            Dom Quixote, pouco acostumado a mordomias e modernismos, só olhava para um lado e para o outro, através das janelas panorâmicas do elevador. Viu coisas do arco-da-velha – ou mais. Tudo lindo, maravilhoso, fantástico.

            – Estão gostando? – perguntou sorridente Caravaggio. – Pois é só o começo. Foram-se os tempos em que o Inferno era lugar de sofrimento. Hoje é o mais avançado centro turístico do mundo. Enquanto o antiquado Céu vive às moscas, no Inferno todos os lugares estão reservados com anos de antecedência.

            – E quem são os condenados, digo, os felizardos que vêm para cá? – indagou curioso Dom Quixote. – Quero dizer, quem tem preferência?

            – É por sorteio – respondeu Caravaggio. – Reunido com Satanás, Deus, em Sua sapiência infinita, decidiu que as entradas fossem sorteados entre os condenados. E assim tem sido feito desde… desde quando mesmo? Pois não é que esqueci?

            – Não tem importância – interrompeu Dom Quixote. – Mas como é que Caronte não sabe disso? Como não vê ninguém saindo?

            – Ah, aí é que está – sorriu novamente o grande pintor Caravaggio. – A saída é pelo Purgatório, que fica do lado oposto. Os condenados se recusam a deixar o Inferno, mas o que podem fazer? Quando insistem muito, aí sim, os velhos métodos entram em ação: tridentes afiados, caldeirões de óleo fervente, ar fedendo enxofre etc.

 

EXPLICANDO O INEXPLICÁVEL

 

            Embasbacados, atoleimados, bestificados e outros ados, entraram no Inferno o espectro magro de Dom Quixote e o gordo fantasma de Sancho Pança. Maravilha das maravilhas. Os olhos lhes saltaram das órbitas. Impossível acreditar no que viam. Tudo que existe de bom na Terra ali estava, multiplicado milhares de vezes. Nem vou tentar descrever as delícias de que poderiam desfrutar durante sua – infelizmente – curta permanência de apenas quatro anos, quando expirava o salvo-conduto.

            – Claro que já ouviram falar de moral, ética, solidariedade, coisas do tipo, não ouviram? – indagou Caravaggio, rompendo o encantamento dos dois.

            – Ouvimos – concordou Sancho balançando a cabeça. – E daí?

            – Daí que todas essas velharias perderam o sentido. Com um Inferno destes, quem quer ir para o Céu ou está preocupado com ética? Besteira. Falar nisso, estão vendo aquele pessoal ali, naquele bosque, dividindo um caminhão de dólares?

            – É mesmo, cara! – espantou-se Dom Quixote. – Olha só, Sancho. Aquele ali não parece… E aquele outro não é a cara do…

            (Aqui encerro este relato, por absoluta incapacidade de nomear todas as felizes criaturas que viviam nos maravilhosos resorts infernais. O pano desceu e nossos amigos foram para as profundas dos infernos, para felicidade deles e desgosto nosso, que nunca conheceremos as delícias que experimentaram nos breves anos de visita ao novo e maravilhoso paraíso.)

Sebastiao Nunes

3 Comentários

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  1. Engraçado há uma turma que está em todas!

    O que se nota é que há uma turminha que está em todas e trocam de parceiros, os GRANDES EMPRESÁRIOS, algumas vezes eles andam com os políticos, outras vezes com diretores de estatais, normalmente com fiscais, e mais in extremis com o judiciário (a última saída) logo eles deveriam estar no bloco da frente do inferno.

    1. É… não sei se entendi bem,

      É… não sei se entendi bem, mas as regras, salvo-condutos, ou o código de conduta propriamente dito, vêm sendo construídas desde muito antes do Caravggio, do Dante, do Dom Quixote e do Sancho Pança. Vêm de antigos impérios, especialmente do romano. Com a palavra as máfias; inclusive as constituídas sob a forma de mega-corporações sequestradoras de países.

      E, Ave, Cesar, é os meusovo!

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