O comissário Maigret, sem sair da cama, soluciona um caso complexo, por Sebastião Nunes

Num país surrealista como o nosso, em que a extrema-direita finge que vai para a esquerda e volta às pressas para a extrema-direita, nada como um pouco de ficção surreal, que pode estar bem próxima da realidade absurda que vivemos.

O comissário Maigret, sem sair da cama, soluciona um caso complexo

por Sebastião Nunes

Tentou falar, mas não conseguiu. Tudo que lhe saiu da boca foi um grunhido semelhante ao ronco dos porcos:

– Gruunnooonnnuuunnnnooooh!!!

– Cala a boca, Maigret – disse sua mulher, tentando manter a calma. – Desse jeito não consigo tirar sua temperatura.

Debaixo do espesso cobertor, o doente suava e tiritava. Passara a noite anterior na porta de uma boate mal afamada de Montmartre, esperando a saída de um traficante internacional de armas, por sugestão do Ministério do Exterior, que suspeitava de fortes ligações com altos escalões de um país da América do Sul. Antes de deixar a campana sua cabeça já doía, mas ainda assim telefonou para o Quai des Orfèvres, sede da polícia judiciária de Paris.

– Lucas, meu velho, preciso de você imediatamente – disse um pouco ofegante ao mais fiel e capaz de seus inspetores. – Preciso que me substitua numa tocaia. É coisa grande e não podemos perder a pista.

Com inacreditável rapidez, Lucas chegou dirigindo um dos famosos carrinhos pretos do Quai. Imediatamente Maigret explicou a sugestão-intimação, entrou num táxi e mandou seguir para o Boulevard Richard Lenoir, onde o esperava a paciente Louise, que ele teimava em chamar de senhora Maigret apesar de quase 30 anos de casados.

Agora estava de cama, infeliz, sem o cachimbo de todas as horas, esperando a chegada do doutor Pardon, seu velho companheiro de jantares memoráveis.

– Trinta e nove e meio – disse a mulher lendo o termômetro. – Enquanto Pardon não chega, você vai tomar um grogue e duas aspirinas para baixar a febre.

Maigret não respondeu. Seus olhos não se desviavam do telefone, como se desse modo conseguisse acompanhar Lucas na porta da boate.

Obediente como uma criança triste, engoliu as aspirinas e sorveu, aos golinhos, o grogue quase fervendo, que lhe irritou ainda mais a garganta. Foi quando Pardon chegou, bem vestido como sempre.

– E então, meu velho, o que foi desta vez? – perguntou, piscando para Louise, que o apressara escada acima: tinha pavor de doença.

Maigret, de péssimo humor, resumiu a noitada. Pardon ouviu calado, depois mediu a pressão, a temperatura, e por fim se ergueu:

– Nada demais – disse ele, guardando os aparelhos. – Um simples resfriado por conta das estripulias noturnas. Nada que uma semana de cama não resolva.

O inspetor arregalou os olhos. Pardon sorriu e se despediu: não era a primeira nem a última vez que obrigava Maigret a tirar umas férias curtas.

TRABALHANDO NA CAMA

Finalmente o telefone tocou. Maigret o pegou antes de Louise e quase gritou:

– Lucas? Novidades?

Não era Lucas, mas o próprio ministro do Exterior, que ao ligar demonstrava a gravidade da situação.

– Maigret? Novidades?

O comissário achou graça. A mesma indagação, a mesma ansiedade.

– Nada de novo, senhor ministro. Logo que tenha algo novo ligo imediatamente.

O ministro desejou melhoras e desligou apressado. Decerto teria reuniões com o presidente e não gostaria de aparecer de mãos vazias.

– Lucas? Alguma novidade? – perguntou quando o telefone tocou de novo.

 – Nada por enquanto, chefe – disse o inspetor. – Mas mandei, como pediu, cercar todas as entradas e saídas da boate, inclusive aquela do porão pela qual escapam os ratos quando o navio afunda. Mas, atenção! O sujeito está saindo. Vou desligar e retornar em seguida.

Maigret, desesperado, olhou para o cachimbo e depois, suplicante, para Louise. Mas ela permanecia irredutível e, com um abanar de cabeça e lábios crispados, deu a entender que de forma alguma ele teria acesso a qualquer dos cachimbos enfileirados na mesinha de cabeceira. Maigret suspirou.

O telefone tocou.

– Acaba de sair, chefe – disse Lucas. – Estava com dois sujeitos enormes, tipo guarda-costas, e uma loura fantástica, estilo Hollywood década de 1950. Mal olhou para mim, sorriu vagamente, e entrou numa limusine último tipo.

– Veja lá dentro – comandou Maigret. – Especialmente no porão e nas gavetas do gerente. Mas depressa antes que destruam eventuais provas!

Desligou e esperou. Lucas retornou meia hora depois.

– Encontrei, chefe! – disse ele excitado. – Encontrei! Na gaveta do gerente. Um pacote grande de folhas impressas, com a rubrica “Confidencial”. Dentro do pacote, cerca de uma centena de grandes folhas impressas, sem o destinatário, mas com descrição completa do conteúdo. Armas de grosso calibre. Desde submetralhadoras e fuzis de alta performance até metralhadoras de longo alcance. Um tipo de arma em cada folha com a quantidade especificada. Entre cem e mil. Imagino que se destinavam a containers. Mas tão interessante quanto é o endereço impresso em todas as folhas.

– Que endereço?

– Palácio do Planalto, Praça dos Três Poderes – Brasília, DF, 70150-900, Brazil.

Durante longos minutos permaneceram em silêncio. Em seguida se despediram e Maigret ligou para o ministério do exterior, dando conta do êxito da missão.

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“Num caso criminal, há geralmente um único culpado, ou um grupo de culpados que agem em conluio. Na política é diferente. A prova é a quantidade de partidos que existem na Câmara.” (Jules Maigret)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Sebastiao Nunes

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