Uma resenha do livro Madrugada Suja, de Miguel Sousa Tavares

Por johnnygo

Companhia das Letras – 351 páginas. 

Capa

 Este é o quarto romance do escritor e jornalista português Miguel Sousa Tavares. Depois de Equador, seu brilhante romance de estreia, publicado em 2003, ainda li No teu deserto e Rio das Flores. Todos me agradaram bastante. O autor costuma entremear histórias de amor, família e fatos da vida política de Portugal. 

Em Equador, por exemplo, a narrativa desloca-se para o início do século 20, durante os estertores da monarquia portuguesa: na pequena colônia ultramarina de São Tomé e Príncipe, o Governador enviado de Lisboa defronta-se com suspeitas de trabalho escravo e disputas entre poderosos negociantes, enquanto vive, no plano interior, uma complicada paixão. Já em Madrugada Suja, a competente pesquisa histórica de Tavares e seu agudo enfoque político nos levam às três últimas décadas do mesmo século 20, desde a Revolução dos Cravos, com a queda do regime ditatorial salazarista (1974), até o final dos anos 90. Este é o pano de fundo onde se costuram as alegrias e sofrimentos de três gerações, dos avós na decadente aldeia alentejana de Medronhais da Serra ao neto e protagonista Filipe Madruga, passando pelo pai idealista (Francisco) e pela mãe de esvoaçada lembrança (Maria da Graça), cuja breve existência deixa graves implicações futuras.

 A trama começa com o episódio que dá título ao romance. Na cerimônia de Queima das Fitas da Universidade de Évora, Filipe conhece Eva, uma miúda de 16 anos, como dizem os portugueses, dessas que se infiltram em festas acadêmicas para fingirem que já transitam pela maioridade. O resultado daquela madrugada é trágico e lançará sombras e luzes por toda a vida do rapaz. Ele tentará se esquecer dos acontecimentos, e eventualmente conseguirá, mas a vida – bem como os romances – é criativa e não se contenta com pouco. Assim, Filipe toca em frente seus planos de carreira, enquanto carrega consigo essa culpa da juventude, buscando mantê-la adormecida. Forma-se arquiteto e começa a trabalhar em uma pequena câmara municipal, até que um dia o velho problema ressurge.

À medida em que os dramas pessoais e familiares se apresentam, o escritor delineia um panorama pungente, lírico e pleno de saudosas recordações da infância e juventude do protagonista em Medronhais da Serra. A aldeia irá minguar, transformar-se em um povoado fantasma. O avô Tomaz da Burra resistirá como seu último habitante. Ali, Filipe crescerá sob o carinho protetor da avó e a companhia do avô em suas lides no campo. Uma dessas recordações me deixou bastante emocionado: o velho arremata a pesada cadeira da barbearia abandonada (que servira de ponto de encontro aos cidadãos locais), prende-lhe umas rodas e leva a esposa, já moribunda, a passear pelas ruas da aldeia. Só lendo para sentir essa emoção.

Os velhos cumpriram o papel de verdadeiros pais do garoto, enquanto a avó Filomena guardava um importante segredo trancado a sete chaves. Filipe mal chegou a conhecer a mãe, que morreu cedo. O pai, por sua vez, partiu atrás de um ideal que lhe propiciou algum sentido à vida: colaborar com a implantação da reforma agrária e do projeto revolucionário que se ensaiou após o final do Estado Novo salazarista. A narrativa evolui a partir desta meia orfandade, da primeira e impossível paixão pela professora, das cenas preciosas do cotidiano na aldeia e, como não poderia deixar de ser, do trauma daquela madrugada suja. Posteriormente, já em seu ofício de arquiteto, ele toma conhecimento da corrupção política em Portugal e a retidão de seu caráter suscita desdobramentos importantes na trama.

Se neste quarto romance o autor preserva a escrita sensível e vigorosa que transformou Equador em um best-seller, o leitor poderá colher uma impressão de certo exagero das coincidências presentes na história. É certo que a Literatura – assim como todo o domínio da Arte – constitui-se numa das maneiras mais eficazes de aproximar o ser humano do céu paradisíaco. Para os escritores, que se arriscam a ir um pouco além do gozo de usufruir, a concepção de uma obra literária vai além: transforma-os em deuses. Quem escreve é deus de cada personagem, de suas ações e até mesmo do acaso a que se sujeitam. A chamada na capa traseira do romance diz que “o leitor encontrará uma história fascinante sobre como os acasos da vida nos levam a situações-limite”. O problema se dá quando este mesmo acaso, disponível como ferramenta da criação, leva seu leitor à desconfiança, especialmente em se tratando de uma peça realista e cheia de conexões verídicas.

É claro que não mencionarei aqui esses exageros do acaso praticados pelo autor, pois não pretendo ser desmancha-prazeres. Tampouco diria que essas coincidências chegam a comprometer o romance como um todo, mas ficou-me a impressão de excesso, que remonta pontualmente alguns ganchos das novelas de TV. Apesar desse aspecto negativo, afinal de menor importância, trata-se de um belo romance. Madrugada Suja comove e captura seus leitores. Escrito em delicioso português materno, com personagens palpáveis e uma rica ambientação histórica, deixa-nos de presente, em seu arremate, um confronto instigante entre os laços de sangue e as convicções éticas do seu personagem principal.

Redação

4 Comentários

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  1. Madrugada suja.

    Não conhecia Miguel Tavares e apreciei muito o estilo,conteúdo e  o todo de  EQUADOR. Em consequência comprei madrugada Suja e tive o mesmo pensamento que o seu, muito óbvio, mas acima de muita literatura  que se vê por aí. Acredito  que ainda teremos outras  boas surpresas   com o autor.

     

  2. Em breve tudo será mistério e cinza

    Não vou poder resumir o livro cujo título é o deste comentário. Mas é o ótimo romance de estreia de Alberto A. Reis,  romance histórico num estilo que lembra os melhores momentos de um Dumas, transcorrido no Brasil logo depois da independência. Um casalzinho de franceses, ela, filha de um grande joalheiro de Paris, vem para o Brasil, mineirar ouro no Distrito Diamantino. Um esplêndido retrato do Brasil da época, mas que não fica nisso: o leitor atento não deixará de fazer um vaivém entre o país de então e o de hoje. Sugiro a todos.

    Em breve tudo será mistério e cinza, Alberto A. Reis, Cia das Letras

  3. Rios das Flores é um dos meus

    Rios das Flores é um dos meus livros predilétos, justamente porque a história do principal personagem se confunde um pouco com a história do meu avô. A diferença é a de que meu avô não era latinfundiário no Alentejo, muito pelo contrário, era apenas um aldeão do Ribatejo. Comprei neste Domingo o Madrugada Suja sem saber que era um lançamento. Pelo visto, acertei em cheio.

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