
Sociedade Age e Democracia Reage
por Fernando Nogueira da Costa
A identificação dos brasileiros com o espectro ideológico de esquerda cresceu e alcança hoje 49% da população, segundo o Datafolha. O percentual abrange ideias sobre comportamento, valores e economia. É o mais alto da série histórica para a pesquisa, iniciada em 2013.
De 2017, ano seguinte ao golpe, quando foi realizado o levantamento anterior, para cá, o perfil ideológico mudou: antes havia uma divisão mais igualitária entre direita (40%) e esquerda (41%). Agora, sofrendo com um desgoverno de extrema-direita, incapaz de atender à demanda social, o igualitarismo se tornou a opção é predominante.
A pesquisa, feita a partir de respostas dos entrevistados a perguntas sobre temas que separam as duas visões de mundo —como drogas, armas, criminalidade, migração, homossexualidade, intervenção governamental na economia e impostos—, mostra 34% têm ideias próximas à direita e 17% se localizam ao centro.
Não à toa, corresponde grosso modo à última pesquisa eleitoral do Datafolha: Lula tem 48% das intenções de voto e Bolsonaro, 27%. Na sequência, em patamar mais baixo de intenção de voto estão Ciro Gomes (PDT), com 7%, André Janones (Avante), com 2%, Simone Tebet (MDB), com 2%. Considerando os votos válidos, quando são excluídos os votos em branco ou nulo e os indecisos, Lula alcança 54% das menções e Bolsonaro, 30%. Este não agrada mais nem mesmo a todos os brasileiros conservadores.
Segundo recente pesquisa Datafolha, o Partido dos Trabalhadores é o preferido de 28% dos entrevistados. Em um muito distante segundo lugar, aparecem empatados PSDB e MDB, ambos com 2% cada um. Empatados tecnicamente com eles, PDT e PSOL têm cada um 1%. Os demais partidos não chegaram a pontuar, ou seja, 2/3 da população brasileira não têm preferência partidária.
A dedução diz respeito ao ativismo dos simpatizantes de esquerda em favor da candidatura Lula, representativa de uma Frente Ampla desde o centro até a esquerda. Dentro dessa perspectiva política, onde a sociedade age através da democracia e agora começa a colher os melhores resultados, o leitor compreenderá a importância do livro recém-lançado de Liszt Vieira, A Democracia Reage: o Brasil de 2020 a 2022 (Rio de Janeiro; Editora Garamond; junho de 2022. 292 páginas).
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Conheci Liszt Vieira ao participar de seu comitê eleitoral em 1982. Foi a primeira campanha realizada por militantes do PT, quando a sociedade civil reorganizada impunha sua hegemonia cultural em favor da democracia sobre a sociedade política. Esta era dominada pelo regime ditatorial da casta dos militares aliada à casta dos mercadores desde o golpe de 1964.
Os movimentos sociais de base, inclusive o estudantil, já tinham conseguido fraturar essa aliança, na eleição de 1974, ao apoiar candidatos progressistas do MDB de oposição autêntica à ditadura. Essa eleição 1974 ficou marcada na história política da esquerda brasileira como uma guinada com o abandono da tática de luta armada em favor da estratégia democrática.
Liszt Vieira passou por profunda mudança pessoal ao longo de sua notável vida. Formado em Direito e estudante de Ciências Sociais. Depois da edição do AI-5, em dezembro de 1968, assim como diversos outros militantes ativos do Movimento Estudantil (ME), instigados por amizade – “política se faz junto a companheiros amigos” –, tornou-se integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Participou ativamente no sequestro do cônsul japonês, em fevereiro de 1970, para libertar companheiros sob prisão e tortura dos militares.
Foi também preso e torturado. Obteve sua liberdade, em julho de 1970, na negociação pela vida do embaixador alemão. Este havia sido sequestrado no Rio de Janeiro. Foi banido para a Argélia. Depois se mudou para Cuba, Chile, Argentina e França, onde concluiu o mestrado em Ciências Sociais na Universidade de Paris.
De volta ao Brasil, após a Lei da Anistia pactuar perdão mútuo para torturadores e torturados, foi eleito deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT-RJ) em 1982. Na década de 1990, foi coordenador do Fórum Global da ECO-92, do Fórum Brasileiro e do Fórum Internacional de ONGs. Foi nomeado presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, cargo ocupado de 2003 a 2013.
Desde 2004, tornou-se professor de Sociologia da PUC-Rio até a aposentadoria. É doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).
É um intelectual muito culto da estirpe dos ativistas com toda sua vida dedicada à militância de esquerda. Nesse sentido, entende-se seu livro recém-lançado, cujo período analisado através de artigos e crônicas publicados em publicados em alguns órgãos da imprensa, como Carta Maior, Le Monde Diplomatique Brasil, Eco 21, A Terra é Redonda, Outras Palavras e O Globo, se segue ao do analisado em seu livro anterior. A Democracia resiste: o Brasil de 2018 a 2020, referiu-se ao primeiro tempo do governo do capitão reformado, eleito de forma incidental.
A eleição do presidente passageiro, incapaz para a responsabilidade do cargo, aconteceu de forma fortuita e/ou imprevisível. Foi acidental, eventual, episódica.
Desde logo, todos os analistas sensatos percebiam: ele estava destinado à lata-de-lixo da história do Brasil. O pior foi o país entrar sob pandemia sob a guarda de um sujeito com instinto genocida, indiferente à morte de milhares de seres humanos.
Causou desastres e retrocessos, praticamente, em todas as áreas de governo. Não tem nada a apresentar de positivo, sequer suas políticas eleitoreiras, populistas de direita.
Caso o meu amigo tivesse solicitado, meu aconselhamento talvez esnobe seria justamente não perder muito tempo com o inominável: ele o cita 320 vezes no livro! Dedica toda a Parte II – O Grande Retrocesso: o Brasil entre a Razão e o Obscurantismo – às suas crônicas a respeito desse governo condenado ao breve esquecimento.
Seus artigos muito bem escritos e embasados em dados servirão para os historiadores no futuro relembrarem os tempos árduos vivenciados pela sociedade brasileira sob uma pandemia mortal e um desgoverno idem. Mas o leitor comum talvez se canse com a redundância ou repetição das denúncias contra o maldito, o perverso, o malvado…
Em compensação, o leitor ficará extasiado com a Parte I – Passado e Futuro: Dois Momentos. Referente ao Passado, ele disserta sobre Pátria, Natureza e Identidade Nacional. Quanto ao Futuro, ele analisa a Crise Ecológica e a Utopia do Ecossocialismo.
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Todos devem se interessar também pela Parte III – Degradação Ambiental e a Sobrevivência da Humanidade. Liszt é um reconhecido especialista nos temas tratados: devastação ambiental e a urgência de um Green New Deal; meio ambiente: inimigo a ser abatido por indiferentes à humanidade; clima: cinco anos do Acordo de Paris; contrassenso e destruição: a contribuição brasileira; crise ecológica e sobrevivência da humanidade; do neoliberalismo ao New Deal Verde; COP-26, Brasil e a catástrofe anunciada; a Amazônia ameaçada de extinção.
Na Parte IV, muito interessante e oportuna na atual conjuntura geopolítica, analisa a possibilidade de surgir uma Nova Ordem Mundial, após o conflito Rússia-Ucrânia-Estados Unidos. Faz também uma reflexão sobre o período pós-pandemia com um retorno de um papel mais ativo do Estado, inclusive na economia. Examina se o neofascismo é a nova roupagem ou o último refúgio do neoliberalismo. Não deixa de examinar o advento da China como “economia socialista de mercado”.
Ele conclui o livro, na Parte V, com uma série de pequenas Crônicas e Pílulas. No total do livro somam 102!
Caso o meu amigo solicitasse meu aconselhamento prévio – e caso editor eu fosse, baseado na minha experiência com editores e a editoração dos meus livros digitais – eu diria para ele transformar cada uma das quatro partes seguintes à primeira em capítulos temáticos. Ficariam à semelhança da primeira: mais analíticos e profundos cortando as redundâncias e repetições típicas de juntar crônicas e/ou artigos semanais.
Mas isso, absolutamente, não é impeditivo de o leitor tirar muito bom proveito em termos de conhecimento da leitura do livro A Democracia Age.
Ela é provocativa, estimula o leitor a refletir. Por exemplo, Liszt Vieira afirma: “a ideia de nação como identidade cultural unificada é um mito. As nações modernas são híbridos culturais. O discurso da unidade ou identidade oculta diferenças de classe, étnicas, religiosas, regionais etc. As diferenças culturais foram sufocadas em nome da construção da identidade nacional” (2022: 21).
Devido à opressão e ao sufoco das identidades culturais, religiosas, étnicas, de gênero ou sexuais etc., bem como da divisão da sociedade em classes, hoje, a esquerda clama por pauta identitária. Embora alguns temas de interesse transponham fronteiras territoriais, como a defesa da Amazônia, ela não pode deixar de apresentar e defender um projeto nacional social-desenvolvimentista com sustentabilidade ambiental.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Dívida Pública e Dívida Social: Pobres no Orçamento, Ricos nos Impostos (ou Pobres no Ativo, Ricos no Passivo)” (2022). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected].
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].
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