Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Soledad Barrett, depois da primeira anistia, por Urariano Mota

Por Urariano Mota

A grande mídia, os meios de comunicação fizeram absoluto silêncio nos últimos dias para a notícia de que a guerrilheira Soledad Barrett recebera a sua primeira anistia.

Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia fez o comunicado em 11 de dezembro. Mas a notícia correu apenas no peito da parcela mais civilizada do Brasil. Notem, a guerrilheira que foi mulher do cabo Anselmo, e por ele fora entregue grávida ao assassino Fleury, com mais 5 bravos militantes, bem que merecia o conhecimento geral do seu primeiro anúncio de justiça.

A imprensa do capital não fala, mas os artistas e militantes de direitos humanos bem sabem a importância de Soledad Barrett. No romance que agora escrevo, cujo título provisório é “Em busca do terrorista”, tenho a ambição de fazer um inventário da geração dos socialistas que eu vi. Nele, a bela Soledad reaparece como uma das personagens. Divulgo aqui um pequeno trecho da sua volta.

“Na noite em que acabamos de ver a comovente recriação de Soledad no palco do teatro Hermilo Borba Filho, quando a atriz Hilda Torres entrou em transe da personagem Sol levada à cena, transe naquele sentido dos aparelhos, dos médiuns em terreiros, depois da mágica hora em que Soledad ressurgiu, depois disso no café, no pátio do teatro Hermilo, eis que a filha única de Soledad, a sempre menina e jovem Ñasaindy, se aproxima e abraça o ex-preso político Karl Marx. (Não se espante jamais o leitor que a ficção se misture ao real nestas páginas. Não é método nem artifício, é da realidade vista e testemunhada.) Naquele instante em que eu conversava com Marx, Ñasaindy vem e lhe dá um súbito abraço. Então Marx para e com os olhos rasos lhe fala, com a voz embargada:

– Parece que estou abraçando a sua mãe. Ela era assim.

Se fosse um poema, talvez a frase acima encerrasse um verso. Mas esta é uma narração e o narrador não recebe a misericórdia de ser humano em uma linha apenas. Quero dizer, primeiro do que tudo. Quarenta e dois anos adiante, o abraço da filha, o rosto, o calor da filha reacendia em Marx a ternura da mulher que havia sido destruída no corpo, e depois passaria todo o futuro próximo a vagar como se fosse alma de mãe desnaturada e terrorista. Em segundo lugar, digo que na reconstrução da vida, difícil é dizer o que vem primeiro. Soledad está no quintal da casinha de Marx. Da cozinha ela fora até o quintal, e conversa com as companheiras de Marx e Lenin, os dois irmãos assim nomeados pelo pai, velho comunista. As mulheres sentadas fazem sapatinhos de croché para o bebê que Soledad espera. Dizem das mulheres grávidas que ficam mais belas. Mas ao viço natural das cores há na mulher que daria à luz, que engravida em angústia, uma sombra, um olhar que não vai ao futuro, que se furta e se dirige ao chão. Assim foi com Maria, em um subúrbio do Recife em 1958. Assim é com Soledad, em dezembro de 1972. Ali, entre as mulheres do povo em Jaboatão, os silêncios, a finura e gentileza de Soledad ganham a reputação de “moça muito educada”. O que vale dizer, há nela um tom de voz que não se eleva, uma atenção absoluta ao que as companheiras falam, um sorriso triste às confidências femininas onde existe solidariedade sem que se pronuncie esse nome. E, justiça seja feita, na beleza da estrangeira não se vê ameaça, porque Soledad não se insinua ou se exibe, antes procura anular qualquer fetiche de conquista no contato com os homens.  Nada de sorrisos descabidos para ser simpática, o que o vulgo masculino sempre interpreta como um convite. Nada de palavras ambíguas, ou de estímulos à corte, ou de se pôr como sexo frágil para ser tratada como uma especial. Ali, ainda não o sabemos, mas Soledad vem de treinamentos pesados na guerrilha em Cuba, onde rejeitara qualquer privilégio, como em 2009 me contaria o ex-guerrilheiro Aton Fon, dentro de um ônibus no Rio de Janeiro. Ele a conhecera em Cuba.

– Como era Soledad? – eu lhe pergunto.

Fon apoia a cabeça no encosto da cadeira e fecha os olhos.

Eu espero, sorrindo íntimo, que ele fale sobre o encanto lírico das formas da mulher. Mas ele me responde, depois de um silêncio:

– Ela era muito, muito séria.

– Como assim? – pergunto.

– Ela rejeitava qualquer ajuda para o equipamento que carregava. Subindo a serra, ela rejeitava. ‘Eu sou igual ao companheiro’, ela dizia. ‘Eu me viro sozinha’.

– Ela era uma das poucas mulheres no treinamento de guerrilha. Você nunca se enamorou dela? – pergunto.

– Eu nem cogitava.

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Uma repórter de bom coração, com mágoa e emocionada, perguntaria ao cabo Anselmo muitos anos depois:

– Mas você amava Soledad?

Ele, recebendo a susto o golpe da pergunta, procura ganhar tempo :

– Eu?…. Olha, é um sentimento difícil pra mim. Ela era uma pessoa linda, poeta, falava várias línguas… O que aconteceu com ela não foi culpa minha, entende? Foi ela quem se condenou, não fui eu. Por mim, ela estava fora do massacre.

– E por que você não a avisou?

– Está louca? Eu ia ser morto se abrisse pra ela o que eu sabia.

– Morto por quem? Por ela ou pela repressão?

– Por ela, claro. Sol … ela era uma pessoa muito ideológica. Cruel, com aquela carinha de santa.

– Ela era cruel? – a repórter pergunta tendo na lembrança a imagem do corpo de Soledad no necrotério. – Cruel?

– Você nem imagina do que são capazes os comunistas. Eles matam mesmo.

– Você está vivo.

– Sim, só Deus sabe como. Eu fui o sorteado pra sobreviver.

A repórter para e não quer saber se ele atribui à roleta da vida o seu plano sistemático de infiltração, entrega de companheiros e permanentes novas quedas. Ele, o sorteado. A ironia não deve descer a esse ponto. A repórter se preocupa com algo, para ela, mais essencial.

– Mas você amava Soledad?

– Olha… eu amava Soledad. Mas um amor à minha maneira, entende?

– Como assim, à sua maneira?

– Assim… eu tinha afeição, amor por ela. Mas o amor pra mim é uma coisa prática, entende?

– Entendo. Sacrificar a sua vida pela amada, nunca.

– Isso é romantismo.

– E você se ama, Anselmo?

– Claro. Eu sou um cara normal.

Então Anselmo sorri com um sorriso que não ouso adjetivar. Ele poderia ter falado: ‘Amo a mim mesmo acima de todas as coisas. Amo só e somente a mim’, e não seria mais eloquente que a fala ‘eu sou um cara normal’. Ao se expressar assim, ele também quis dizer: se fizerem um matadouro, se sangrarem uma mulher feito porco, eu não sou o porco. Esse bicho destripado não me diz respeito. Não importa se o porco é Soledad, se lhe arrancaram o feto a porrada, não é comigo, eu não sou a porca Soledad. Eu sou um cara normal. Eu me amo. Eu me amo a mim mesmo, só a mim, somente a mim e a mais ninguém. Com todas as minhas foças, esperteza e inteligência. Durmo bem, do alto do meu conforto. Porco é quem é sangrado na tortura. Eu, coitado de mim, tenho horror à sujeira do sangue. Eu sou um cara educado, com alma de artista, de formação cristã, entende? Mas não sou Cristo. Nem Cristo nem porco.

Então a repórter recolhe o gravador, porque sabe agora que o cabo Anselmo está em um domínio onde o amor e a solidariedade não têm lugar nem razão de ser. Ele é um extraterrestre que não entende a língua dos que sentem a dor alheia. De repente dá nela uma vontade de tocá-lo para ver se ele é mesmo de carne e osso. Mas assim não faz por ter medo de que ele transmita um vírus de brutalidade e cinismo, que no Brasil ainda não têm vacina ou remédio”. 

 

*Na Rádio Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/274271-35

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

12 Comentários

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  1. Urariano

    Te parabenizo por esse trabalho incansavel de resgatar pessoas como Soledad, barbaramente assassinadas pela ditadura militar. Tenho acompanhado, nem sempre comentando, mas lendo suas crônicas sobre a crueza e beleza daqueles tempos e das figuras que lutaram por essa democracia, que finalmente nos alcançou. E espero que perdurara ainda que muitos cuspam sobre ela, sem atentar para sua importância.

    Espero seu livro, pois desejo muito ler suas historias.

  2. Soledad

    Há exemplos entre nós, como de SOLEDAD, que dá a vida por um ideal. E gente sensível como o Mota que não deixa a memória desses(as) mártires caírem no vazio.

    É o resgate necessário da memória desses bravos(as) lutadores(as) que enriquecem nossa história e nos faz orgulharmos de sermos brasileiros.

    São o lastro moral e ideológico que iluminam a vida de quem pelo menos, tem um mínimo de sensibiidade e respeito, por aquele momento histórico tenebroso , por que passamos.

  3. Urariano

    Dileto Amigo Urariano,

    Pudera ter a sua capacidade e seu estilo literário. Mais uma vez você me coloca em êxtase com esse texto. A importância da temática, nem ouso discutir. Apenas me alegro e me regosijo pela vitória de Soledat, mesmo que tardia. Quisera fosse mais contundente essa alegria se o malevolentíssimo cabo Anselmo morto. Mas, dileto amigo Urariano, me rendo ao seu talento e ao seu amor pela justiça. Sinto uma pessoa importante, muito, pois tenho no meu rol de amigos: você.

    Abraços e:

    “ESTEJA E SEJA E FIQUE FELIZ!”

    Luiz de Almeida

    1. Salve, Luiz de Almeida

      “Não se possui o que não se compreende”, Goethe dizia. Assim entendo o teu comentário, Luiz. Muito obrigado pela generosa compreensão do amigo e professor de literatura.  

  4. Soledad

    Prezado Urariano

    Há episódios que, na memória, permanecem cerrados, pelo selo da tragédia. Para mim, este foi o caso do tenebroso massacre em Pernambuco. E não por conta de Soledad, mas de Pauline. Esta eu conheci na Suíça. Linda como depois vi que era também Soledad. E Pauline era alegre como uma menina, capaz de brincar jogando travesseiros, uma noite em que tivemos de dormir em 3 numa grande cama, na casa de um amigo, em Geneve. E Pauline tinha a mesma determinação inflexível de lutar por uma causa em que todos acreditávamos. A ponto de voltar ao Brasil, mesmo sabendo do alto risco da empreitada. E logo depois receberíamos a notícia da tragédia. Este foi o selo que barrou a memória. Depois, li sobre a monstruosa figura do Cabo Anselmo, e a imensidão da tragédia maior de Soledad e do filho que trazia no ventre. Mas, mesmo assim, tudo, de certa forma, ainda permanecia distante. Até que você, com sua palavra iluminada, foi aos poucos devolvendo para mim a figura viva, real, de Soledad. De Pauline, depois, ainda encontraria rastros, o irmão que se tornou político, o instituto com o nome da família e o companheiro da Suíça, economista importante da PUC-SP e até hoje meu amigo. Mas Soledad permaneceria um mistério, exceto para os círculos militantes mais próximos, se não fosse seu incansável esforço de nos devolver, com o calor solidário de sua busca e a delicadeza de sua palavra amorosa e firme, a figura exemplar dessa estrangeira que deu sua vida por nós e pela mesma causa de nossa pátria comum, a humanidade. Por ela, pude entender melhor Pauline e resgatá-la na memória e no coração. Memória dessas e de tantas outras grandes mulheres que são parte indissociável de nossa história de luta pela justiça, a liberdade e a dignidade humana, contra o escândalo da desigualdade e da miséria, contra a iniquidade da vileza e da traição. Por isso gostaria de deixar registradas, aqui, minha admiração e gratidão por seu trabalho, junto com um comovido abraço.      

    1. Muito obrigado, Maria Montes

      Tantas coisas a te responder, mas a mais simples é agradecer o teu necessário depoimento. Hoje  pela manhã rascunhei mais ou menos isto: “a invocação às musas, feita por mais de um poeta, não era um recurso retórico. Era a necessidade de forças para continuar, porque dura é a reflexão sobre  o terror sofrido e silenciado”. 

      Então, muito obrigado.

  5. Soledad
    Urariano,
    sem medo de me repetir; Soledad e sua integridade nos remeterá sempre ao valor inestimável da Liberdade.
    A homenagem em tuas palavras, a tua rendição à finitude expressa na tristeza daquele olhar, são uma deferência a envolver esta Mulher no inefável, no onírico.
    Soledad, em teu relato, carrega a força da fatalidade, do destino inexorável a todos nós: viver nosso quinhão e dele extrair lições.
    Quanta dignidade nesta e em tantas mulheres que conhecemos, ainda assim esquecidas na poeira dos tempos.
    Belo. Quando do lançamento de seu livro, por favor, nos informe.
    Bom Domingo.

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