Por Leo Bueno
O Brasil passa por uma importante crise do regime político combinada com uma crise econômica, social e ambiental. Essa sobreposição está inserida numa crise sanitária à qual o executivo federal respondeu com negacionismo e corrupção.
O regime político da Nova República, que nasceu da transição negociada da ditadura militar e do ascenso das lutas sociais e populares dos anos 80 que culminou na aprovação da Constituição de 1988 e no início de eleições livres em todas as esferas, está sendo atacado por diversas representações sociais e institucionais. O fenômeno social do bolsonarismo, mais amplo do que as eleições à presidência da república, combina fatores como a cultura política de negação dos direitos humanos e a espetacularização da segurança pública, ovacionando a morte e a violência contra as periferias.
A nota dos militares, o aparelhamento das estruturas do Estado pelo partido militar, as ameaças constantes do executivo à democracia, os ataques à liberdade de expressão e a utilização da falsa discussão sobre o “voto impresso” – levantando um falso pretexto para desde já questionar o resultado das eleições de 2022 – desenham riscos concretos ao regime político da Nova República e aos seus princípios constitucionais.
O aprofundamento da crise do regime político só joga mais combustível na crise social, econômica e ambiental e vem acompanhado da agenda neoliberal do Centrão, que quer passar a boiada aprovando a privatização dos correios e a reforma administrativa.
Essa combinação produz efeitos desastrosos na classe que vive do trabalho e no seu direito ao desenvolvimento.
Desemprego, informalidade e fome pintam o quadro nacional
O IBGE anunciou que a taxa de desemprego no país bateu novo recorde histórico e chegou a 14,7% no trimestre fechado em abril, 0,4 ponto percentual acima do trimestre anterior, encerrado em janeiro (14,2%). A alta é de 3,4% de desempregados, equivalente a mais 489 mil pessoas desocupadas. O Brasil hoje tem 14,8 milhões de pessoas buscando trabalho. A taxa e o número de desempregados são os maiores desde o começo da série histórica, iniciada em 2012.
O trabalho sem nenhum direito (a informalidade) também bateu recordes históricos. A taxa de informalidade chegou a 39,6% no mercado de trabalho no trimestre até fevereiro, com 34,014 milhões de trabalhadores (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Pnad Contínua/Instituto Brasileiro de Economia e Estatística – IBGE). Apenas no último trimestre mais 526 mil pessoas se tornaram trabalhadoras informais.
O estudo Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e com a Universidade de Brasília (UnB), apontou que mais de 125,6 milhões de pessoas não se alimentaram como deveriam ou já tinham algum tipo de incerteza quanto ao acesso à alimentação no futuro durante a pandemia de coronavírus.
Outro estudo, Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em Contexto de Covid, revela que 55,2% da população brasileira sofrem alguma ameaça ao direito aos alimentos, o que gera objetivamente 19 milhões de brasileiros estão em situação grave em relação ao acesso à alimentação.
A crise do regime político – que, repita-se, sobrepõe o conjunto de crises social, econômica, ambiental e sanitária – trouxe ao país um cenário geral de grave e permanente violação dos direitos humanos, violando o sentido constitucional e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e que previam a progressividade dos direitos.
Desenvolvimento, um direito negado ao povo brasileiro
O conjunto de crises que se retroalimentam coloca novamente no cenário nacional as chagas que nos acorrentaram durante todo século XX: ampliação da dependência, desemprego estrutural, alta informalidade e a insegurança alimentar (fome). Tudo isso vem acompanhado por uma ameaça constante à democracia e aos direitos previstos em nossa constituição. O ambiente está marcado pela regressividade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Nesse cenário, o movimento sindical, os movimentos sociais, o cooperativismo e a economia solidária têm um grande desafio: propor uma política econômica que possa retomar a rota do desenvolvimento nacional, com centralidade na garantia e na progressividade ao Direito ao Desenvolvimento para o conjunto do povo brasileiro, e não só para alguns como sempre foi (situação representada no lugar-comum do “crescer o bolo para depois dividir”).
Para que o Brasil possa voltar aos trilhos e voltar a sonhar, o Programa de Reconstrução Nacional precisa retomar os compromissos e as agendas internacionais, em especial a do desenvolvimento sustentável: o Direito ao Desenvolvimento, a Agenda 2030 e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, das Nações Unidas1, deixou claro que as pessoas são “o sujeito central e deveriam ser participantes ativas e beneficiárias do direito ao desenvolvimento”. Também menciona: “o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.”
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, instituído no Brasil através do decreto n. 592/19922, coloca claramente que um país não pode olhar pelo retrovisor, precisa progressivamente ampliar e qualificar os direitos de sua população: “que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto”.
Nosso país é signatário da Agenda 20303, os 17 ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) e suas 169 metas, comprometendo-se com as três dimensões do desenvolvimento sustentável: social, econômica e ambiental.
Todos esses compromissos firmados no cenário internacional estão sendo violados e negados ao conjunto do povo brasileiro. Importante destacar que esses compromissos estão assentados no pacto social democrático de nosso país, a Constituição, que afirma em seu Art 3:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Diante das ameaças democráticas, os ataques à constituição e o cenário geral de um conjunto de crises se reatroalimentam e impõe à maioria da população um cenário de regressividade de seus direitos. Nessa perspectiva precisamos de uma Política Econômica que cumpra o Art 3. da Constituição Federal.
Daí a importância:
– da aprovação do PL 6606/2019 (anteriormente tramitando sob o número 4685/2012)4, que cria a Política e o Sistema Nacional de Economia Solidária;
– da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição n° 69, de 20195, no Senado Federal, incluindo a economia solidária no ordenamento econômico; e
– do julgamento pelo STF da inconstitucionalidade da EC 95.
Trata-se, acima, de medidas centrais para garantir que o Brasil cumpra seu artigo 3o e possa ter uma política econômica centrada nos trabalhadores e trabalhadoras e na progressividade dos seus direitos.
Garantir a economia solidária como política de estado e da constituição federal é afirmar que teremos uma política econômica que irá de fato efetivar o artigo 3o da nossa constituição, combinando a geração de trabalho e renda e a dinâmica da inclusão social e da sustentabilidade ambiental e construindo uma sociedade livre, justa e solidária.
Notas:
1 – http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/bmestar/dec86.htm
2 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm
3 – http://www.agenda2030.com.br/os_ods/
4 – PL 6606/2019 (Nº Anterior: PL 4685/2012): https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=559138
5 – Proposta de Emenda à Constituição n° 69, de 2019 no Senado Federal: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136639
Leonardo Pinho – Presidente da Central de Cooperativas Unisol Brasil, diretor tesoureiro da UNICOPAS e ex Presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos.
Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
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