Dois anos da morte de Thiago de Mello: um poeta singular e plural
por Rômulo de Andrade Moreira[1]
“Pois aqui está a minha vida.
Pronta para ser usada.
Vida que não guarda
nem se esquiva, assustada.
Vida sempre a serviço
da vida.
Para servir ao que vale
a pena e o preço do amor.”[2]
Há dois anos, no dia 14 de janeiro de 2022, morria em Manaus, aos 95 anos, o poeta, tradutor e jornalista Thiago de Mello.
Nascido em Barreirinha, no interior do Amazonas, Thiago de Mello é um dos poetas mais importantes do Brasil, especialmente por contar, em prosa e em verso, sua luta pela preservação da floresta amazônica, a maior do planeta.
Um de seus poemas mais conhecidos é “Os Estatutos do Homem”, escrito logo após o início da ditadura militar, que foi traduzido para várias línguas em todo o mundo, e incluído no livro “Faz Escuro, Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar”.
Entre suas obras poéticas, destacam-se “Mormaço na Floresta”, “Vento Geral” e “Poesia Comprometida com a Minha e a Tua Vida”.
Em prosa, publicou livros como “Amazonas, Pátria da Água” e “Amazônia – A Menina dos Olhos do Mundo”, da década de 1990. Também publicou a obra de não ficção “Borges na Luz de Borges”, em homenagem ao seu amigo Jorge Luis Borges.
Sua última obra publicada foi pela editora Valer, em 2021, “Notícias da Visitação que Fiz no Verão de 1953 ao Rio Amazonas e seus Barrancos”.
Thiago de Mello chegou a cursar medicina, curso que abandonou para ingressar na diplomacia na década de 1950, tendo sido adido cultural na Bolívia e no Chile, carreira somente interrompida pelo golpe militar de 1964.
Ele chegou a ser preso pelos militares, e foi exilado durante anos em países como Argentina, Portugal e Chile, onde conheceu o poeta Pablo Neruda, que se tornaria seu grande amigo, cujos livros Thiago de Mello traduziu para o português.
O poeta morreu no Amazonas, terra em que nasceu e que sempre viveu desde que voltou ao Brasil, nos últimos anos da ditadura.
Abaixo, o seu poema mais célebre, dedicado ao seu amigo Carlos Heitor Cony.
OS ESTATUTOS DO HOMEM
(Ato Institucional Permanente)
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
[1] Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
[2] MELLO, Thiago de. “A vida verdadeira”.
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