João Donato não foi um dos pais da bossa nova, por Luís Nassif

A confusão sobre sua influência foi obra de Rui Castro, em seu livro sobre a bossa-nova.

Foto @cleverbarbosa via Ministério da Cultura

Do Jornal Nacional a jornais impressos, o músico João Donato – falecido ontem – foi apresentado como um dos pais da bossa nova. Não foi. Não participou do movimento, mudou-se para os Estados Unidos no ano do lançamento do LP pioneiro de João Gilberto.

Depois, voltou e transformou-se em um dos mestres referenciais da música brasileira, como o pernambucano Moacir Santos, o carioca Luiz Eça.

A confusão sobre sua influência foi obra de Rui Castro, em seu livro sobre a bossa-nova. Castro fez uma pesquisa relevante em um livro bem escrito. Havia somente um porém: não conhecia nada de música brasileira. Sou testemunha ocular e auricular porque, muitas vezes, ele recorria a Gutenberg, o Baiano, meu amigo e frequentador de boemia da época, atrás de informações sobre a música brasileira. Participei pessoalmente de algumas dessas aulas.

Além disso, ao seu conhecido preconceito somou-se a visão extraordinariamente preconceituosa de Ronaldo Bôscoli, seu guru na elaboração do livro. Em vez de entender a música brasileira como um processo, Bôscoli teimava em situar a bossa nova como um início, um corte na música brasileira. Antes, seria apenas bolerão e baião. Além desse preconceito, Rui insistia em depreciar Jacob do Bandolim, por alguma crítica que fez à bossa nova

Entrevistei-o uma vez n a TV Gazeta e ele não tinha ideia de que uma das maiores gravações do Chega de Saudade foi justamente a de Jacob; que Dolores Duran tinha sido a “princesinha do baião”.

Certa vez, entrevistei Baden Powell para a Folha, que contou o óbvio: “nós, os músicos continuamos a fazer o que sempre fazíamos, ai apareceu uma garotada da Zona Sul que trouxe o tema barquinho, praia e chamaram de bossa nova”.

Baden referia-se ao violão da rádio Nacional que, no início dos anos 50, já juntava Garoto, Laurindo de Almeida, Bola Sete, além do violão de Luiz Bonfá, que trouxe a influência do bolero. Rui não sabia da enorme sofisticação harmônica que o bolero trouxe para o gênero canção.

Na época do lançamento do livro, Rui distribuiu uma fita cassete com algumas preciosidades que ele recolheu em sua pesquisa. Apresentou na forma de um programa de rádio. Começava mostrando um duo de Garoto ao violão e Johnny Alf no piano. Ambos já faziam a batida da bossa nova – Alf com a mão direita, nas notas finas. Encerrada a gravação, Rui decretava: “como vocês viram, isso é jazz, não é bossa nova”. Em seguida mostrava o acordeón de João Donato, a mil por hora: “como vocês viram, isto é bossa nova”.

Imediatamente liguei para ele informando do erro: a faixa de Alf-Garoto era pré-bossa nova; a de Donato era um samba sincopado da melhor espécie.

Na verdade, a grande contribuição de João Gilberto para a música brasileira foi ter assimilado a batida introduzida por Garoto e colocado, debaixo dela, o que de melhor a música brasileira produzira até então – entre os diversos ritmos, tinha especial predileção pelo samba sincopado e pelo samba-choro dos antigos conjuntos vocais.

Conheceu Donato, aliás, como colega de um desses conjuntos – não me lembro se dos Garotos da Lua ou Namorados da Lua. Na época, Donato sequer era aceito pelos conjuntos da bossa, nas boates da época, porque seu estilo era considerado muito irrequieto.

Daí sua iniciativa de mudar-se para os Estados Unidos, aproximar-se das principais figuras do jazz, beber na música latina (especialmente a cubana) e, muitos anos depois, quando nem bossa nova havia mais, voltar para o Brasil e tornar-se o músico referencial para gerações e gerações de instrumentistas brasileiros.

Luis Nassif

5 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Quero saber onde entram Lupicinio Rodrigues e Noel Rosa nesse papo. Nenhum dos dois faziam bolero nem baião e são 2 pilares da musica breasileira. Diziam que o Chico Buarque era o “Noel Rosa” da modernidade. Não vejo como tirar esses dois genios de tudo que veio depois. Influenciaram todo mundo. Cada um do seu jeito. A Bossa Nova não exististiria sem eles . Nem a moderna musica brasileira. eu acho.
    Mudando de abordagem acredito que o Marcelo D2 hoje e o que foi o Noel e o Chico no seu tempo: cronistas da vida urbana das nossas cidades e das nossas vidas.

  2. Lamentavelmente, a melhor pesquisa e narrativa sobre a história da bossa Nova segue póstuma e inaudita, sob a pena do grande José Domingos Raffaelli, de contribuição ímpar para a moderna música brasileira, mormente a instrumental. Oxalá um dia possamos consultá-la !!

  3. Nosso problema sempre foram os especialistas de ocasião. Qdo o assunto é Economia pululam os economistas/analistas de mercado formados às coxas. Qdo o assunto é Justiça, constata-se que no Brasil se encontram “todos” os Juristas do mundo. Qdo somos deparados com a Cultura Brasileira aí a situação piora. A Cultura virou um grande negócio onde todos podem dar o seu pitaco e poucos se aventuram à contradição do besteirol instalado. Quem tiver o que falar que fale, quem tiver o que contar que conte. Nassif sabe o que fala e toca, mas infelizmente, sofremos com os pobres-didatas que, através dos podres poderes da informação, procuram construir uma visão vira-lata da obra prima musical da Civilização Brasileira, distinta e inigualável, dentre outras nossas.

  4. É uma informação importante e bem recebida. Uma injustiça desfeita.
    Então, eu viajo pelo passado e penso que antes de surgir a Bossa Nova, o Brasil já era possuidor de uma imensa constelação de artistas e ritmos nacionais, que enriquecem a história da música brasileira. Vários cantores, cantoras, compositores, compositoras e instrumentistas contribuíram e continuarão contribuindo, com suas ricas obras musicais, para a evolução, atualização e consolidação de novos ritmos e novas tendências musicais. Então, eu imagino que ao recordar e passear por ritmos musicais, tais como: Carimbó, Maxixe, Choro, Ciranda, Forró, Sertanejo, Fricote, Pagode, Gafieira, Partido Alto, Maracatu, Lundu, Samba, Xaxado e etc, nós também iremos ao encontro da grande variedade de ícones inconteste, que formam nossa imensa e crescente constelação de estrelas musicais. Jamais poderemos negar as ricas e inspiradoras contribuições deixadas por artistas, iguais a: Chiquinha Gonzaga, Aracy de Almeida, Lupicinio Rodrigues, Braguinha, Nelson Cavaquinho, Luiz Gonzaga, Cartola, Ary Barroso, Moreira da Silva, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Pixinguinha, Heitor Villa-Lobos, Carmen Miranda, Adoniran Barbosa, Forcinha Batista, Almirante, Nelson Gonçalves, Jackson do Pandeiro, Juca Chaves, Ivon Cury, Orlando Silva,Angela Maria, Mário Reis, Dolores Duran, Lamartine Babo, Jamelão, Silvio Caldas, Francisco Alves, Hermeto Pascoal, Rogério Duprat, Moacir Santos, Cyro Monteiro, Jacob do Bandolim, etc,etc, etc … Cada uma dessas estrelas tiveram sua influência musical captada pela inspiração criadora da Bossa Nova, como também foram captadas pelas inspirações que criaram os recentes artistas e ritmos pós Bossa Nova. O que importa é que extraindo alguns poucos egos artísticos, em geral, todas as novidades nesse campo musical brasileiro, sempre foram bem aceitas, recepcionadas e registradas positivamente na história da música brasileira. Uma parte de artistas e ritmos marcaram sua época até saírem de cena, enquanto uma outra parte, que possui um forte peso na preferência popular, continua sendo referência muito buscada e utilizada para as novas e futuras tendências rítmicas no Brasil. Toda nossa constelação musical de artistas, que acredito ter tido sua presença inspiradora presente em alguma parte na criação da Bossa Nova, sempre estará pronta a servir sua inspiração para outras brilhantes e futuras criações.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador