Peter Brook (1926-2022), por Walnice Nogueira Galvão

Peter Brook trouxe seu provocador Hamlet com protagonista negro ao Brasil (2002) e apresentou aos brasileiros novos enigmas e impasses existenciais

EPA/CLAUDIO ONORATI

Peter Brook (1926-2022)

por Walnice Nogueira Galvão

Peter Brook foi um dos mais notáveis homens de teatro de seu tempo. Genial, shakespeareano até à medula, emprestou sua grife a magistrais encenações, inovadoras mas também clássicas.

Seria diretor de duas respeitáveis casas da Inglaterra, a Royal Shakespeare Company e a Royal Opera House de Covent Garden. Do pouco que deixou perenizado em película destaca-se um Rei Lear com o grande ator shakespeareano Paul Scofield, também monopolizado pelo palco. É celebrada  sua montagem circense de Sonho de uma noite de verão, lembrando aquela registrada em filme por Max Reinhardt nos anos 20.

Em idade avançada, já aos 93 anos, escreveu Reflexões sobre Shakespeare, onde oferece ao leitor o balanço da devoção de toda uma vida.

Ficando pequeno para ele seu país, transferiu-se para Paris, onde fundou e dirigiu o teatro Bouffes du Nord. Nessa casa, encenou clássicos e não clássicos, mas sempre com sua marca registrada: Shakespeare. Ali dirigiu uma de seus mais espetaculares trabalhos, a adaptação do épico Mahabharata, o livro sagrado do hinduismo, com suas batalhas entre homens, demônios e deuses. Teve duração de 9 horas. Ainda bem que não foi inteiramente perdido, porque engendraria um filme, bem mais reduzido, com 3 horas. Peter Brook escolheu um elenco internacional, misturando raças e nacionalidades. Gostava de abeberar-se em outras civilizações e por isso andou frequentando  encenações teatrais na África, de cuja cultura era entusiasta. E trouxe ao Brasil, que visitou mais de uma vez, Tierno Bokar, de autor malinês sobre líder espiritual africano, e um Hamlet negro.

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O “Teatro Negro” tem histórico rico e interessante. O pai desse teatro é um autor de  relevância ímpar, o americano Eugene O´Neil. Seu acerto maior coube a The emperor Jones (1920), tragédia que correria mundo, na qual um carregador de malas convence os habitantes de uma ilhota no Caribe de que ele é seu rei. A certa altura o protagonista foi vivido no palco e depois no filme pelo grande baixo Paul Robeson.. Fonte de inspiração, geraria  uma ópera e outros filhotes, como um balé de Villa-Lobos para um festival em Nova York.

Chegaria então a vez da ópera-blues de Gershwin Porgy and Bess (1935), que estourou no mundo todo, e, de extraordinária beleza plástica e musical, é reencenada até hoje. Em outra fase, Jean Gênet, em Les nègres (1958), problematizaria a questão da identidade étnica, misturando atores negros com máscaras brancas a atores brancos com máscaras negras, interpelando os preconceitos do espectador. Alguns poucos filmes tiveram a ousadia de encenar dramas brancos com elenco negro, acertando o alvo Carmen Jones, dirigido por Otto Preminger, transposição da ópera Carmen.

No Brasil, O imperador Jones ressaltaria a estreia do Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias do Nascimento em 1944. Este incansável militante da causa negra foi autor e ator no palco, diretor de teatro, tradutor. E também  político,  ocupando o cargo de deputado e de senador. Abriu caminho para uma dramaturgia negra, que logo se tornaria abundante, e para artistas negros.

Houve então uma verdadeira voga dessa inovação, chamando atenção a tragédia Anjo negro de Nelson Rodrigues; as quatro peças do teatro negro de Antonio Callado, à frente a comédia Pedro Mico, com protagonista favelado, campeão de popularidade; e muitos outros. Depois de um hiato de décadas, essa voga renovou-se ultimamente, havendo de novo abundância de dramaturgos, entre eles e elas destacando-se Cuti.

Marcou época um feito extraordinário: a criação de Orfeu do Carnaval (1956), da autoria de Vinicius de Morais, com música de Tom Jobim, cenários de Oscar Niemeyer e elenco do Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento. Pela primeira vez negros seriam vistos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.  O filme decorrente, Orfeu Negro, ganharia a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar.

Assim, quando Peter Brook trouxe seu provocador Hamlet com protagonista negro ao Brasil (2002), apresentou aos brasileiros novos enigmas e impasses existenciais, multiplicando aqueles pelos quais Hamlet já é renomado. E o público teve a oportunidade de receber o impacto da obra do grande homem de teatro.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

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