Após muitos anos, Lula recupera o direito à voz e retoma a cena no JN, por Eliara Santana

Novamente, uma edição surpreendente do JN, numa semana que está recheada de edições surpreendentes, com amplo destaque do discurso de Lula

BOLETIM DO JN 10/3: Após muitos anos, Lula recupera o direito à voz e retoma a cena no Jornal Nacional

por Eliara Santana

O ex-presidente Lula fala

Digo que é uma edição surpreendente porque há grandes mudanças na estrutura e na configuração da narrativa, com novos atores em destaque, novas construções simbólicas, novos enfoques.

E na edição de 10 de março, quando o Brasil volta a bater novos recordes no número de mortos pela Covid, a edição do JN dá amplo espaço ao discurso do ex-presidente Lula – e após quase sete  anos, o ex-presidente Lula volta a ter um espaço positivo de fala, com bons destaques, na edição do Jornal Nacional. Após muitos anos de silenciamento e de recortes sempre muito negativos, o discurso de Lula e sua potência foram colocados em horário nobre para todo o Brasil.

Uma guinada na cobertura da Globo? Sem dúvida, mas tudo se ligando ao contexto histórico, ao cenário, ao momento. Nada aleatório, portanto. Nem ação de bons moços. Repaginação estratégica.  

Na formatação da narrativa, na construção do discurso midiático, nada se faz à margem do contexto histórico – o discurso se liga ao momento histórico, ao desenrolar do contexto. Não é aleatório e não é “apenas” para “levar os fatos”. É narrativa, discurso, e se constrói no percurso histórico. E esse conjunto de edições do JN, que culmina com a de 10 de março, revela todos esses movimentos.  

Vamos então aos detalhes da edição. Na bancada, Renata estava de branco, Bonner usava terno mais claro (não era preto) e camisa clara, e o fundo com imagens era sempre neutro (o fundo com projeção da marca JN). O cano carcomido por onde escorre dinheiro parece ter sido descartado juntamente com Sergio Moro.   

Já na escalada das manchetes, o discurso do ex-presidente foi anunciado. Com Bonner e Renata apresentando e destaque para falas positivas dele (com imagens também positivas):

R: “O ex-presidente Lula fala pela primeira vez desde a anulação das condenações dele na Lava Jato de Curitiba”

B: “Afirma que é inocente, que foi vítima da maior mentira jurídica em 500 anos, mas que não tem mágoa” (Nesse momento, aparece a imagem de Lula na coletiva, bem próximo).

R: “Faz críticas ao governo Jair Bolsonaro”

B: “E ataques ao ex-juiz Sergio Moro e aos procuradores da Operação”.

O primeiro assunto da edição foi, como tem sido praxe, a Covid, com um balanço para dimensionar a tragédia no Brasil. Muitos detalhes e o carimbo de incompetência no governo federal sendo mantido. O discurso de Lula veio no segundo bloco. Mas antes, logo após reportagem sobre sanção de leis relativas a aquisição de vacinas por Bolsonaro, em cerimônia “incluída na agenda quase em cima da hora” e em que todos estavam de máscara no Planalto, incluindo Jair, Bonner retorna, meio jocoso, para dizer o seguinte: “A Délis Ortis chamou atenção para um fato novo em eventos com a presença do presidente Bolsonaro”.  

Entram imagens da cerimônia, com Bolsonaro e ministros, e de vários outros eventos do presidente, e a fala de Bonner prossegue, no mesmo tom jocoso:

“O  presidente e todos os demais participantes estavam usando máscaras e mantendo uma distância maior do que a habitual entre  eles. Isso é mesmo uma novidade. Desde o dia 3 de fevereiro, em que apareceu com máscara na abertura do ano legislativo no Congresso Nacional, Bolsonaro participou de 36 eventos oficiais, de acordo com levantamento do G1, e em nenhum deles usou a proteção no rosto. E há menos de duas semanas  criticou publicamente as máscaras! Chegou a afirmar, sem nenhuma base científica, que elas produziriam efeitos colaterais. A cerimônia de hoje, em que o presidente e todos os demais participantes APARECERAM MASCARADOS, começou pouco mais de quatro horas depois do pronunciamento do ex-presidente Lula (ENTRA IMAGEM DE LULA USANDO MÁSCARA), em que ele e todos os presentes ao evento usaram máscaras (ENCERRA COM IMAGEM DE LULA).

O bloco se encerra com chamada para o pronunciamento de Lula. É Bonner quem anuncia, e podemos observar que há uma menção reiterada a um papel histórico desse ator – ele voltou a ser o ex-presidente, e não somente “Lula”:

“O ex-presidente Lula falou hoje publicamente, pela primeira vez, sobre a decisão do ministro do Supremo, Edson Fachin, que anteontem anulou as condenações dele no âmbito da Lava Jato de Curitiba. No discurso, Lula reafirmou que é inocente, atacou o ex-juiz Sergio Moro e a força-tarefa da Lava Jato e disse que foi vítima da maior mentira jurídica já contada no Brasil”.

Na abertura da reportagem, o fundo permanece neutro, e não há qualquer menção aos comentários de Lula sobre a mídia, a Rede Globo e o próprio Jornal Nacional. A nota que a Globo havia soltado logo após o pronunciamento não foi lida novamente. 

A reportagem começa: “O ex-presidente Lula chegou ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista, em são Bernardo do Campo, usando máscara. Em seguida, explicou que iria tirar a proteção para que a imprensa pudesse ouvir melhor o pronunciamento e que iria manter a distância de todos. Líderes partidários e sindicalistas estavam presentes. No pronunciamento de pouco mais de uma hora e vinte minutos, Lula manifestou solidariedade às vítimas do coronavírus. Começou seu discurso lembrando o dia em que foi preso”. 

E entra então a fala de Lula, com uma imagem bem próxima, só ele na tela, relembrando o dia em que se entregou à PF, dizendo que sabia que era inocente e que ia provar, falando que tinha clareza sobre as inverdades que contavam sobre ele; mencionou o livro que havia sido escrito antes de ele se entregar e cujo título ele deu a palavra final – “A verdade vencerá” – porque tinha certeza que “esse dia chegaria. E ele chegou”. 

Observem que  a abertura da reportagem já sinaliza aspectos absolutamente favoráveis: ele estava usando máscara e mantendo distanciamento, se solidarizou com os brasileiros que sofrem com o coronavírus, fez criticas a Bolsonaro. Apesar dos destaques positivos, a reportagem não mostrou a fala contundente de Lula sobre a Petrobras e sobre o que fizeram com a empresa.  

A reportagem prossegue destacando trechos com viés positivo, que reiteram posicionamentos do jogo político e do ator em cena: ele não tem mágoa, ele está pensando para frente, ele quer dialogar, ele pensa nos problemas do país. A repórter fazia uma breve abertura e deixava rolar a fala de Lula. Vamos aos destaques:

“Então, se tem um cidadão que tem razão de estar magoado com as chibatadas, sou eu. Não estou. As pessoas pensam que depois de dar chibatadas, joga um pouco de sal e pimenta e a pessoa vai se curar ao longo do tempo. Não importa as cicatrizes que ficam nas pessoas.  Eu sei que fui vítima da maior mentira jurídica contada em 500 anos de história. E que a minha mulher, a Marisa, morreu por conta da pressão, e o AVC se apressou. Eu fui proibido até de visitar o meu irmão dentro de um caixão, porque tomaram uma decisão que queria que eu visse para São Paulo, que eu fosse para o quartel do 2º Exército, no Ibirapuera, e meu irmão, dentro do caixão, fosse me visitar. E ainda disseram que não podia ter nenhuma fotografia. Então, se tem um brasileiro que tem razão de ter muitas e profundas mágoas, sou eu. Mas não tenho. Sinceramente, eu não tenho porque o sofrimento que o povo brasileiro está passando, o sofrimento que as pessoas pobres estão passando neste país é infinitamente maior do que qualquer crime que cometeram contra mim. É maior do que cada dor que eu sentia quando estava preso na Polícia Federal”.

Depois dessa fala, a reportagem corta o discurso e prossegue informando que Lula agradeceu ao ministro Edson Fachin, que anulou as condenações no âmbito da Lava Jato (entram imagens de Fachin e também de Lula em outros momentos), recuperando trechos de reportagem do dia anterior. Nesse momento, há uma breve cutucada com a informação de que Fachin não julgou o mérito dos processos, ou seja, “não inocentou nem condenou Lula. Fachin enviou as ações para a justiça federal em Brasília porque elas não têm relação direta apenas com a Petrobras”.

A reportagem retorna então para o discurso no Sindicato, ressaltando que Lula falou sobre as condenações, reafirmou a inocência, “mas não falou sobre as razões que permitiram o surgimento de esquemas de corrupção durante seu governo e o de Dilma Rousseff. Fez ataques e críticas ao ex-juiz Sergio Moro, aos investigadores e aos procuradores que o acusaram”. Observem que há aqui um resgate da questão da corrupção, dos famosos “esquemas” que teriam havido nos governos petistas (porque o de Dilma é citado), mas numa referência muito breve.

E retorna à fala de Lula:

“Eu digo pra vocês, anteontem foi um dia gratificante. Eu sou agradecido ao ministro Fachin porque ele cumpriu uma coisa que a gente reivindicava desde de 2016.A decisão que ele tomou, tardiamente, cinco anos depois, foi colocada por nós desde 2016. A gente cansou de dizer: a inclusão do Lula, e inclusão da Petrobras na vida do Lula, como criminoso, era a razão pela qual a quadrilha de procuradores da Lava Jato, não o Ministério Público, a quadrilha de procuradores da força-tarefa, e o Moro, entendiam que a única forma de me pegar era me pegar pra Lava Jato, porque eu já tinha sido liberado em vários outros processos fora da Lava Jato, mas eles tinham como obsessão, porque eles queriam criar um partido político, de tentar me criminalizar”.

Nessa fala de Lula no Sindicato, ele faz menção à “edição épica do JN”, com a votação da suspeição de Moro, mas isso não é mostrado na reportagem do JN.  Aparecem brevíssimas imagens de Sergio Moro na referência ao processo do triplex do Guarujá e depois, quando a reportagem relembra a votação da suspeição do ex-juiz, com os votos de Gilmar e Lewandowski e o pedido de vistas de Nunes Marques. Dessa vez, Moro aparece em imagens pouco favoráveis.

E retorna o discurso de Lula:

“O processo vai continuar? Vai. Tudo bem, eu já fui absolvido de todos os processos fora de Curitiba. Mas nós vamos continuar brigando para que o Moro seja considerado suspeito. Porque ele não tem o direito de se transformar no maior mentiroso da história do Brasil, e ser considerado herói por aqueles que queriam me culpar. Deus de barro não dura muito tempo. Eu tenho certeza que hoje ele deve estar sofrendo muito mais do que eu sofri. Eu tenho certeza que o Dallagnol deve estar sofrendo muito mais do que eu sofri. Porque eles sabem que eles cometeram erros.”

Retorna a repórter para dizer que Lula falou diversas sobre a pandemia, manifestou solidariedade aos profissionais de saúde e ressaltou a importância do uso de máscaras e do distanciamento social. “E a condução do combate à pandemia não foi o unico tópico de condenação ao presidente Bolsonaro. Lula dedicou boa parte do discurso a criticar a política que facilita o acesso de armas à população, a política econômica e o desemprego alto. E num tom de campanha disse que pretende conversar com todos os políticos, mesmo aqueles com quem não compartilha as mesmas ideias”.

Prossegue o discurso na reportagem:

“Desistir jamais. A palavra desistir não existe no meu dicionário. Eu aprendi com a minha mãe: lute sempre, acredite sempre, teime sempre. Porque se a gente não acreditar na gente, ninguém vai acreditar. Se a gente não se respeitar, ninguém vai respeitar a gente. As pessoas que me detratam durante todos esses anos, eu quero dizer pra vocês: eu quero nesse país conversar com a classe política. Porque, muitas vezes, Haddad, muitas vezes, Boulos, a gente se recusa a conversar com determinados políticos. Mas veja, eu gostaria que no Congresso Nacional só tivesse gente boa de esquerda, gente progressista, mas não é assim. O povo não pensou assim, o povo elegeu quem ele quis eleger. Então nós temos de conversar com quem está lá pra ver se a gente conserta esse país”.

A repórter anuncia outra entrada dizendo que Lula não pensa em processo eleitoral:

“Eu quero dizer pra vocês que a minha cabeça não tem tempo para pensar em candidatura em 2022. Quando chegar o momento de discutir 2022, nós vamos ter imenso prazer de anunciar ao Brasil que nós estamos pensando em 2022, e vamos discutir se vai ter um candidato de uma frente ampla, vamos discutir se vai ter um candidato do PT, mas aí eu acho que é pra frente”.

Fim da reportagem com o pronunciamento. Entra Bonner pra dizer que Moro e Dallagnol não se manifestaram e que “numa entrevista à CNN Brasil, no início da noite, na entrada do Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro declarou que o governo federal repassou recursos para estados e municípios combaterem a pandemia, disse ainda que não houve escândalos de corrupção em seu governo e que as críticas do ex-presidente Lula não têm base”. 

Sem dúvida, uma edição histórica, que traz de volta à cena midiática o ex-presidente Lula numa construção favorável. Claro, narrativa é construção que se liga ao processo histórico e se dá de acordo com interesses dos jogadores. Portanto, sigamos observando os desdobramentos. Os rumos do Brasil se alteraram drasticamente nestes últimos dias, não há dúvida, e essa edição do JN mostra essa guinada gigantesca. Sigamos atentos e fortes.     

Redação

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