Caso Palocci: A mídia como promotoria e suas injustiças irreparáveis

A concretude do processo jurídico corre o risco de passar a um segundo plano, e a mídia a exercer o domínio narrativo do caso segundo os seus interesses

Por Maurício Caleiro

No Observatório da Imprensa

“Ouvir o outro lado” é um dos preceitos fundamentais do bom jornalismo, como se aprende na universidade. Porém, no que se refere à esfera midiática brasileira, também um dos mais negligenciados, sobretudo no que diz respeito a matérias denunciativas.

O modo como esse preceito é (ou deixa de ser) empregado certamente varia muito de redação para redação. Ainda assim, parece correto afirmar que o problema é menos de omissão do que de proporção. Ou seja, ainda que eventualmente persistam, aqui e ali, na mídia comercial, matérias unidirecionais, que não fornecem nenhum contraponto ao que é denunciado (exemplo recorrente: aquelas que envolvam o MTST nos telejornais da Band), muito mais frequentes são casos em que se verifica uma desproporção pronunciada entre o destaque dado à matéria acusatória e aquele reservado às respostas do “outro lado”.

O “outro lado” no JN

O Jornal Nacional tem sido um exemplo particularmente rico para examinar a questão – e não só pelo papel padronizador que, como longevo líder de audiência, exerce. Mas sobretudo por ser um telejornal que de forma patente incorporou a rotina de ouvir o outro lado – a ponto de vira e mexe se vangloriar por isso. Porém, analisada com alguma profundidade, a forma padrão com que o JN lida com a obrigatoriedade de ouvir o outro lado, não sobra muito do que se orgulhar. Por três motivos:

1) Ocorre, quase sempre, uma desproporção enorme entre o tempo destinado a acusações, comparado com o tempo reservado às respostas dos acusados;

2) As acusações costumam ser feitas no formato de uma matéria jornalística completa, com cabeça, passagens, vários entrevistados, imagens ilustrativas, documentos com trechos destacados na tela. Já as respostas quase sempre limitam-se a uma leitura, por um dos apresentadores, do que foi dito pelo(s) acusados(s) ou seu(s) advogado(s), sendo que não raro informa-se que, em relação a um ou mais acusados, nem este nem seu advogado foram localizados pela produção do programa;

3) Não há, nessa tal leitura de respostas, sequer um esforço para aparentar isenção. Pelo contrário: pertencem já ao folclore jornalístico brasileiro os recursos não verbais – como levantar de sobrancelhas, entortar de cabeça, compressão ocular, gestos com as mãos, suspiros de enfado – que Bonner utiliza no JN (e de forma ainda mais acintosa, Leilane Neubarth em telejornais da Globo News), ao darem voz ao “outro lado”. Ou seja, o “outro lado” não deixa de ser fornecido, mas, no formato e na atuação dos âncoras, vem editorializado, comentado, relativizado por performances não verbais que com frequência o desautorizam, quando não beiram o achincalhe.

Comentários não verbais

Ora, não é preciso ser especialista em Análise do Discurso para se aperceber que, em quesitos como impacto, narratividade, plausibilidade e credibilidade uma matéria completa tende a soar muito mais convincente do que uma mera leitura de respostas, ainda por cima “comentada” desfavoravelmente por suspiros e demais elementos de linguagem não verbal.

Essa distorção sistêmica originada por uma aplicação deturpada e viciada do conceito de “ouvir o outro lado”, além de ferir o amplo direito de defesa dos acusados, tem como principal característica instaurar um modelo narrativo que, seja qual for o caso, tende a hipervalorizar a acusação a, resguardados os suspirosos trejeitos com que banca o ventríloquo do “outro lado”, fazer o jornalismo atuar como uma espécie de auxiliar midiático da promotoria.

Escândalos Político Midiáticos

Esse quadro se agrava nas ocasiões nas quais a denúncia envolve altas autoridades e se transforma no que o pesquisador J. B. Thompson, num texto clássico, chama de Escândalo Político Midiático (EPM). É quando, nas palavras do professor Venício A. de Lima:

“O controle e a dinâmica de todo o processo deslocam-se dos atores inicialmente envolvidos para os jornalistas e para a mídia. Passa a prevalecer uma lógica parecida com a que preside a cobertura jornalística das disputas eleitorais que já foi comparada às corridas de cavalo: o que importa é saber qual jornalista e/ou empresa de mídia está à frente da outra, qual consegue “esticar um pouco mais a corda” e avançar com novas denúncias” (2006. p. 13).

A mídia como promotoria

Em decorrência dessa nova dinâmica, a concretude do processo jurídico corre o risco de passar a um segundo plano, e a mídia a exercer o domínio narrativo do caso segundo os seus interesses, que, podendo envolver de índices de audiência a compromissos políticos, de vendagem de exemplares a ganhos empresariais, não necessariamente coincidem com os da Justiça.

A relação entre a mídia – Rede Globo à frente – e a “operação Lava-Jato” marca, ao mesmo tempo, o ápice e o momento de saturação de tal dinâmica, posto que a concretude dos processo jurídicos, as sentenças finais de alguns casos, desautorizam e desmentem de forma cabal acusações que a mídia enquanto dublê de promotoria sustentara como se de fato se tratasse. É o que demonstram os eventos abordados nos próximos parágrafos.

Este mês de agosto foi pródigo de casos que evidenciam o quanto tal comportamento midiático, plenamente estabelecido há mais de três décadas, pode ser enganoso e contrário à verdade dos fatos, com graves consequências políticas, familiares, pessoais.

A delação rejeitada

Cronologicamente, o primeiro caso foi o descarte oficial, pela Polícia Federal, por falta de provas, da declaração de Palocci à Lava-Jato contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, entre outros. Para a PF, “Os únicos elementos de corroboração da delação produzida pelo ex-ministro Antonio Palocci são notícias de jornais que, na coleta de provas, não se confirmaram”, como resumiu o site especializado Conjur, segundo o qual, “As invectivas do ex-ministro petista foram usadas para vasculhar a vida pessoal e empresarial de dezenas de pessoas — que foram para o noticiário como cúmplices de crimes. Mas os delitos comprovados até agora foram praticados pelo próprio Palocci, que falsificou agendas de compromissos e contratos para dar ares de veracidade ao que disse.”

O caso torna-se ainda mais grave quando se constata que o teor da falsa delação, amplamente divulgado pela mídia, foi, na contramão da lei, tornado público pelo então juiz Sérgio Moro a dias das eleições presidenciais de 2018, caracterizando claro propósito eleitoral – conduta que seria repreendida pelo STF e obrigaria o ex-juiz a se desculpar perante o tribunal.

Proscritos inocentes

Outro grave caso que evidencia a imparcialidade e a precipitação condenatória da mídia é a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) de inocentar e extinguir a punição de Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT e de José Genoino, ex-presidente do partido, ambos acusados de falsidade ideológica em ação penal relacionada ao caso Mensalão.

Os dois foram, intensamente, no período em que o caso esteve em evidência, e episodicamente, quando ocorriam desdobramentos da ação penal, vítimas de um dos mais impiedosos linchamentos midiáticos já produzidos no país, uma autêntica campanha de difamação e condenação a priori, que para Genoíno correspondeu à sua prescrição da vida pública. Para, ao final, quando inocentados, esta decisão receber nem um milésimo do espaço e da atenção que a mídia destinará às acusações.

O articulador difamado

Os casos de condenação midiática não corroborados pela Justiça não se limitam, convém sublinhar, a tempos recentes nem a petistas. Um dos políticos mais proeminentes do país, presidente da Câmara quando do impeachment do ex-presidente Fernando Collor e um dos presidenciáveis mais cotados à sucessão, o peemedebista Ibsen Pinheiro (1935-2020) foi vítima do que depois se descobriu tratar de uma armação. Mas, enquanto esta vicejou, ele foi execrado nos telejornais, na Veja, nos diários.

A exemplo do que ocorrera com Genoino, viveu a sua Sibéria, foi proscrito da vida pública. Foram preciso anos para que provasse sua inocência e voltasse à vida política, mas sem jamais recuperar o status político e a popularidade de outrora, e sendo, até o final de sua vida, olhado com imerecida desconfiança por setores mal informados da opinião pública.

Impunidade midiática

Em comum aos três casos – e a tantos outros – há a desproporção entre as muitas horas e capas dedicadas a denúncias e os poucos segundos e cantinhos de páginas voltados à divulgação das sentenças que as desmentiram; o achincalhe e o linchamento de figuras públicas por um longo período de tempo sem nenhuma contramedida que, ante o reconhecimento de sua inocência pela Justiça, os recompense ou recupere sua imagem pública; a absoluta ausência de retratação por parte dos veículos midiáticos.

Em decorrência disso, verifica-se a submissão de pessoas e famílias a uma brutal, abrangente e duradoura carga de sofrimento psicológico, rejeição social e problemas profissionais, com reflexos financeiros que podem ameaçar a própria subsistência, em nome de falsas acusações.

Portanto, a continuação desse padrão de comportamento pela mídia como dublê de promotoria, postura acusatória que, como já dito, perdura por mais de três décadas e se agravou durante os anos de hegemonia da Lava-Jato, significaria a manutenção consciente da impunidade ante a destruição de reputações e o desrespeito a premissas básicas do Direito. Suspeito não é acusado, réu não é culpado, há um trâmite jurídico a ser respeitado e a mídia não pode agir como promotoria e muito menos como um juiz premonitório, que condena a priori.

Jogo de interesses

Não se trata, aqui, de insistir na crença na revisão ética de condutas por parte da mídia, fingindo desconhecer o papel primordial que seus interesses econômicos e políticos sempre desempenharam em tal processo. Nem o capitalismo brasileiro, nem o passado das empresas midiáticas permitem esse tipo de ilusão.

Trata-se, sim, de chamar a atenção do público para tais graves distorções. Pois é este que, deixando de agir como um aldeão da Idade Média ante a tortura em praça pública, como um consumidor voraz do sangue do opositor político, como um espectador sadomasoquista de programas policialescos vespertinos, quem pode exigir da mídia uma cobertura mais serena e equilibrada, que respeite a presunção da inocência, trate o leitor/espectador como adulto e efetivamente dê voz ao “outro lado”, deixando à Justiça a incumbência de, se for o caso, condenar.

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Maurício Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Redação

2 Comentários

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  1. Eu acho que melhor do que esperar que “ouvir o outro lado” seja feito de forma imparcial pela mídia, melhor seria controlar a origem. Isto é: a investigação. Um processo que, antes de ser julgado possa macular a imagem do acusado, deveria se tornar público apenas pelo menos após o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público. Acabaria-se com essas notícias do tipo: “Polícia Federal investiga fulano…” .

    E mais: esse negócio do cara ser denunciado, ter prisão preventiva decretada, e depois de sua vida virar de ponta cabeça a justiça arquivar por ausência de provas… Isso não deveria ser considerado normal. Pode até existir, mas não pode ser considerado normal, de rotina, como está acontecendo hoje. Deveria ser considerado um bug. Uma falha. Deveria haver alguma sindicância ou coisa assim nesse casos, não necessariamente para punir os acusadores, mas pelo menos pra se registrar a falha e tentar evitar outra no futuro.

    Numa entrevista vi Sérgio Moro ser questionado sobre isso e responder que é “normal” uma sentença ser reformada. Ora! Pode até ser aceita, mas “normal”… não deveria ser. Dizer que um cidadão recebe a notícia de que foi condenado a 9 anos de prisão pra depois a justiça entender que não havia provas… isso não pode ser considerado normal.

  2. “…Caso MALUF: A mídia como promotoria e suas injustiças irreparáveis…”…A concretude do processo jurídico corre o risco de passar a um segundo plano, e a mídia a exercer o domínio narrativo do caso segundo os seus interesses…” Mas não foi exatamente assim que foram construídos 40 anos de Redemocracia? Mais 40 anos de NecroPolítica? Não foi exatamente assim que abortamos a competência e excelência do maior Prefeito e Governador de São Paulo, em detrimento do Nepotismo Fascista Varguista que atolava em ‘QuintoMundismo’ esta Nação desde 1930, renascendo e preservando na Anistia de 1979? Não foi assim que ressuscitamos além do Nepotismo Fascista da Presidência Tancredo Neves, Ivete Vargas, Leonel Brizola, a parceria cafajeste com UDN de José Sarney? Os interesses e sentenças da Imprensa Nacional, suas Empresas e Financiadores antecipando e direcionando as Sentenças Judiciais? Não foi exatamente esta Judicialização e Exploração Midiática que construiu a Redemocracia Tupiniquim? O tempo realmente é senhor da razão. E a Verdade, Libertadora. Sob esta tal Justiça Democrática, vemos a CENSURA absurda de Matéria deste Veículo a respeito de BTG. Constituição Cidadã? Liberdade de Imprensa? Pobre país rico….

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