Melhorar a confiança é necessário, mas quem disse que é fácil?
por Rogério Christofoletti
Um dos fantasmas que mais assombram editores e gestores de mídia é a queda da confiança pública no jornalismo. Há décadas pesquisas tentam captar quanto as pessoas acreditam nas notícias, numa clara tentativa de perceber se a indústria está no caminho certo. A leitura de gráficos desanimadores leva à imediata interpretação de que o jornalismo não está atendendo às expectativas da sociedade, o que resulta inevitavelmente em perda de relevância, diminuição no consumo, queda nas receitas e crise de sustentabilidade.
O volume insuficiente de dados que permitam afirmar sem medo que a credibilidade está em baixa, e a constatação de que outras instituições muito diferentes – como governo, igreja e bancos – também assistem à erosão de suas confianças, tudo isso embaça um pouco a visão sobre o cenário. Afinal, o jornalismo vive uma crise de credibilidade ou ela é generalizada?
Parece cada vez mais claro que este é um tema complexo e com muitas nuances. Confiar em alguém é um processo marcado por exigências pessoais e a esperança do cumprimento de certos compromissos. Acreditar no funcionamento de um produto também não depende só de aspectos técnicos. E para termos um relacionamento com uma organização levamos em conta ainda fatores como tempo de conhecimento mútuo, taxa de acertos e vantagens nas condições de entrega do que contratamos. Quer dizer, embora a confiança seja um elemento essencial para trocas diversas e para a própria preservação da sociedade, seu processo de construção e manutenção é dinâmico, complexo e variado.
Delicada e perseguida
Em março de 2021, preocupada com os elementos que poderiam reter a credibilidade jornalística, a editora britânica Marcela Kunova se perguntava se verdade era o mesmo que confiança. Segundo ela, com base em entrevistas com especialistas de mídia, não basta dizer a verdade, já que o próprio conceito de verdade pode ser relativizado a depender do episódio narrado. Há outros fatores que ajudam a consolidar a confiança das pessoas na mídia e nas notícias. É um processo complexo que, depende, inclusive da sensação de representatividade. Isto é, se o público não reconhecer a sua realidade no noticiário, vai considerá-lo menos confiável. Esforços para ampliar a inclusão, por exemplo, são necessários, e, segundo Kunova, a indústria do jornalismo ainda tem um longo caminho a percorrer.
Na mesma direção, em fevereiro de 2022, a colunista do The Guardian Arwa Mahdawi lembrava que confiança é difícil de construir e fácil de se deteriorar, bastando deslizes em coberturas ou mesmo histórias de bastidores mal contadas.
Note que há fatores exteriores ao jornalismo que também interferem nas taxas de confiança do jornalismo. Rasmus Nielsen aponta para o caso de veículos e jornalistas independentes que são, ao mesmo tempo, admirados por jornalistas e parte do público por seu trabalho independente e contestados em sua credibilidade por outras parcelas da audiência. O diretor do Instituto Reuters para Estudo do Jornalismo, vinculado à Universidade de Oxford, afirma que mais do que a precisão factual, o ambiente político local interfere também em quanto as pessoas acreditam ou não na mídia. “Especialmente em países polarizados, onde políticos proeminentes atacam rotineiramente a mídia de notícias independente e frequentemente orquestram campanhas coordenadas por seus apoiadores (…), não surpreende que aqueles que apóiam esses políticos sejam céticos em relação aos veículos independentes que buscam responsabilizá-los”, explica. Para Nielsen, as dinâmicas políticas impõem custos àqueles que buscam responsabilizar os poderosos de forma independente, e um desses é o “custo da coragem”. A qualidade do trabalho jornalístico e o quanto nele podemos acreditar é interpretada sob a luz da política doméstica e das indisfarçáveis simpatias ou vieses partidários das pessoas.
Outro estudo do Instituto Reuters já chamava a atenção para fatores importantes para o resgate de confiança do público em ambientes politicamente muito divididos. A partir de dados coletados em quatro países, inclusive o Brasil, a pesquisa com 52 consumidores regulares de notícia apontou que imparcialidade e precisão das informações são muito valorizados pelo público e fundamentais para fazer com que ele acredita nos meios de comunicação.
Ainda de olho na ultra-polarização política, o pesquisador Daniel Trielli prevê que os índices de confiança na mídia corporativa devem continuar a cair, pois há setores da sociedade que se decepcionaram tanto com algumas marcas que abandonaram o seu consumo e simplesmente não pretendem voltar a fazê-lo. Ele se baseia justamente no caso do Brasil e de grupos bolsonaristas que de forma extremista descartam o noticiário jornalístico convencional.
A preocupação com as pessoas que não compõem o público habitual de mídia já havia sido manifestada por Rick Edmonds, analista do setor no Instituto Poynter. Com base nas recentes pesquisas do Instituto Reuters, o autor conclui que poucos esforços para construir a confiança do leitor foram além dos consumidores existentes e prováveis assinantes. Se os meios se concentrarem nas parcelas mais dispostas a confiar na mídia, as mais indiferentes ou desconfiadas – que também são as mais difíceis e resistentes – correm o risco de serem deixadas pra trás, alerta o analista. Para Edmonds, que concorda com as conclusões do estudo do Instituo Reuters, “não é hora de desistir de identificar segmentos de público persuasíveis e de um esforço contínuo para ganhar sua confiança”.
Iniciativas de resgate
Em 2022, um estudo do professor Tim Groot Kormelink, da Universidade de Amsterdã, listou as quatro razões que levavam pessoas a não assinar um meio impresso ou digital: custo alto, oferta suficiente de notícias gratuitas na internet, o “compromisso” que uma assinatura pressupõe e problemas técnicos do produto ou de sua entrega. A pesquisa holandesa é um experimento limitado na amostra de participantes, mas traz pistas de como a fidelização de consumidores no mercado de fornecimento de notícias é um processo complexo e multifatorial. Essa fidelização – concretizada num relacionamento perene como uma assinatura – é uma dimensão mercantil da credibilidade jornalística. Afinal, ninguém assinaria um veículo se não depositasse nele confiança.
Em busca de resgate de confiança, diversas vozes apontam caminhos. O jornalista norte-americano Dan Salomone questiona se a mídia corporativa precisa trazer de volta os ombudsman para restaurar parte de sua credibilidade. A indagação foi feita em abril de 2021 e o autor se baseou em diálogos com oito ex-ombudsman da imprensa dos Estados Unidos. Sete deles concordam que o regresso desses críticos de mídia ajudaria no processo de restauração da confiança, mas o próprio Dan Salomone reconhece que o gesto não resolveria a questão por completo, embora fosse um passo importante. Segundo os entrevistados do autor, um ombudsman verdadeiramente independente pode ajudar no resgate da confiança da mídia “sendo honestamente crítico e independente quando a organização de notícias se desvia de seus próprios padrões e usando oportunidades para explicar o processo”.
Outro argumento recorrente é que a transparência ajuda a resgatar a credibilidade no jornalismo, pois permite ao grande público um conhecimento mais amplo de como marcas e indivíduos trabalham, de quais interesses os movem, entre outros aspectos. Esse conhecimento ampliado gera uma familiaridade importante para o aprofundamento da relação entre os públicos e os fornecedores de notícias. Existem projetos, sobretudo nos Estados Unidos, que se apoiam nessa ideia para estimular uma postura de maior abertura pública por parte do jornalismo. O Coming From, por exemplo, é liderado pelo professor Jay Rosen, do Studio 20 da Universidade de Nova York, e se dispõe a reunir iniciativas de transparência no jornalismo. “Incentivamos os jornalistas a compartilhar quem são, como pensam e de onde vêm, para que o público possa entender melhor e se envolver com suas reportagens”, explica a equipe do projeto. A coleção engloba casos em que veículos e profissionais mencionam os valores que guiam suas práticas, transparência financeira, detalhes sobre procedimentos editoriais, metas estabelecidas, inclinações políticas e contextos históricos da organização de notícias e dos jornalistas envolvidos.
É certo que a credibilidade é condição que jornalistas e meios perseguem cotidianamente porque ela intensifica um relacionamento com o público que se pretende ser forte e duradouro. Embora seja um conceito falado a todo o momento dentro e fora das redações, há muita incerteza sobre como ela é formada, o que pode preservá-la e como ela funciona na prática. Como o fantasma que assombra o jornalismo – a queda da confiança -, a credibilidade tem natureza imaterial e é cercada de mistérios. É intangível e volátil, mas cobiçada. É invisível, mas insistimos em materializá-la em números e gráficos. Tem uma dinâmica quase mística, e talvez essa incapacidade de dominá-la alimente ainda mais o nosso desejo de compreendê-la.
Rogério Christofoletti – Professor de jornalismo na UFSC e pesquisador do objETHOS
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