Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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O Sabujo Quer Ser Ocidental, por Jorge Alexandre Neves

É digno de pena ver a autoimagem de alguém que se enxerga como membro de um clube que não lhe quer como participante.

O Sabujo Quer Ser Ocidental

por Jorge Alexandre Neves

Uma das sabujices mais tradicionais entre brasileiros – talvez entre latinoamericanos em geral – é sonhar em ser um ocidental. Bolsonaro fazendo continência para a bandeira dos EUA foi o exemplo típico do ato de um sabujo brasileiro. O ex-ministro Ernesto Araújo também fazia questão de ressaltar sua servilidade ao Ocidente, porém de forma mais ampla e menos vexatória, ao propor para o Brasil o que alguns chamam de “ocidentalismo fantástico” (ver: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/view/77876).

Olindense que sou, comecei minha formação intelectual no Recife da segunda metade da década de 1980. Naquele momento, contávamos com dois grandes intelectuais que faziam apologia da sociedade e da cultura brasileiras. Mais à esquerda, havia Ariano Suassuna, um paraibano radicado em Recife. Mais à direita, o pernambucano Gilberto Freyre. Ambos tinham uma visão grandiloquente do Brasil. Tratava-se de um ambiente de pensamento no qual não havia lugar para o “complexo de vira-lata”, expressão cunhada por Nelson Rodrigues, outro pernambucano. Para Ariano o Brasil era o epicentro dos “povos escuros” da “Rainha do Meio-Dia”, a terra que um dia iria realizar o sonho sebastianista do “quinto império”, um mundo utópico de liberdade, igualdade e justiça. Gilberto Freyre, por sua vez, teve a ambição de criar uma ciência, a Tropicologia, que pensaria e analisaria o mundo a partir da compreensão da vida nos trópicos, e que enxergava o Brasil como um experimento social e cultural único. O Recife de então transpirava uma arrogância provinciana muito peculiar, de uma cultura que via o Ocidente como uma terra envelhecida e desbotada. A cultura e a ciência ocidentais precisavam ser respeitadas e admiradas, mas nunca invejadas.

Saindo deste ambiente cultural, fui fazer o doutoramento nos EUA, em 1992. Lá chegando, me deparei com a tese amplamente aceita entre eles lá de “choque de civilizações”, proposta por Samuel Huntington, e descobri, assim, que não eram só os mestres do Recife que viam o Brasil – e, na verdade, toda a América Latina – como estranho ao Ocidente, mas que os próprios ocidentais nos viam como estranhos à sua cultura e à sua organização social. Em um primeiro momento aquilo foi um pouco perturbador. Todavia, não demorou muito para que eu acreditasse que aquilo era ótimo, afinal, assim, todas as gentes ficariam satisfeitas. Lá como cá, cada um com seu cada um.

É por isso que sinto-me constrangido quando vejo um intelectual brasileiro mendigando a aceitação do Ocidente, como está em um artigo publicado no Estado de São Paulo, neste último final de semana (ver: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/confusa-ideologia-antiocidental/). O artigo começa afirmando uma barbaridade, qual seja, que o ataque ao Ocidente, produzido à esquerda e à direita, “parte de ângulos opostos, mas converge para um alvo comum”. Cuma?!?!, diria o saudoso Didi Mocó… Então ficamos combinados assim, a esquerda mundo afora defende que o Ocidente se volte para a defesa da família patriarcal, o entendimento da mulher fundamentalmente a partir do seu papel como mãe (como defendido pelo deputado Nikolas Ferreira, em sua fala no evento bolsonarista do último dia 25, quando convocou as mulheres a exercerem sua feminilidade ao tornarem-se mães) ou ainda que renuncie ao princípio da laicidade do Estado (como apelou a ex-primeira dama, no mesmo evento). E por aí vai… Não vou mais gastar a “inculta e bela” criticando esta estúpida argumentação inicial do referido texto.

Nos parágrafos seguintes, começa a parte mais desinformada e maliciosa do texto, quando o autor vem falar de uma “confusa ideologia antiocidental”, vinculando toda a crítica que se faz ao Ocidente hoje às teorias decolonialistas. Primeiramente, qual teoria decolonialista? A do “árabe” Edward Said, da nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, da sudanesa Rogaia Mustafa Abusharaf, do brasileiro Ailton Krenak?  Há muitas teorias decoloniais e desconfio que talvez o autor do artigo não conheça muito sobre o assunto (ressaltando que também não sou nenhum especialista). Em segundo lugar, boa parte do que se poderia chamar de “ideologia antiocidental” da esquerda tem muito pouco a ver com teorias decolonialistas, está muito mais associada às antigas e tradicionais críticas ao imperialismo. O autor do texto se dedica a referências às revoluções francesa e estadunidense, fazendo de conta que não sabe que a crítica da esquerda hoje ao Ocidente está muito mais associada à destruição do Iraque, do Afeganistão, da Líbia e da Palestina (basta ouvir uma das últimas falas do Presidente Lula para perceber isso de forma absolutamente cristalina), ou ainda à postura arrogante e egoísta com a qual os países ocidentais lidam com as levas de imigrantes que fogem da miséria e da violência em sociedades destruídas e espoliadas pelo próprio Ocidente (como foi brilhantemente explicitado pelo presidente da Namíbia diante de um diplomata alemão, em um vídeo disponível na internet).

Em seguida, o autor do texto chega ao ápice do cinismo, ao afirmar que o “fato de que a generalização dos valores liberais e democráticos ainda hoje seja parcial é mais uma razão para reafirmá-los, sobretudo num momento histórico em que forças obscurantistas e reacionárias ganham terreno em todas as partes do planeta”. Será que o autor ignora a quantidade de extraordinárias experiências democráticas que foram destruídas por intervenção – ou, no mínimo, com auxílio – do Ocidente? Será que ele não consegue enxergar o óbvio, qual seja, que o liberalismo tem várias faces e sua face econômica está sendo responsável pela destruição de suas faces política e cultural, promovendo, justamente, a emersão do monstro da lagoa, do Beemote, ou, como ele prefere se referir, de “forças obscurantistas e reacionárias”? Talvez se ele lesse os livros de um famoso filósofo ocidental da atualidade, Michael Sandel, de Harvard, ou o último livro de Anne Case e Angus Deaton (este último, Prêmio Nobel de Economia de 2015), professores de Princeton, conseguisse compreender melhor como o liberalismo econômico está destruindo o liberalismo político, no Ocidente. Acredito que grandes nomes ocidentais de vetustas instituições ocidentais – como Harvard e Princeton – poderiam fazê-lo enxergar o óbvio.

O texto é concluído com a mensagem que, me parece, o autor, de fato, queria trazer, a crítica à esquerda que “silencia diante das atrocidades do Hamas, hesita em condenar a Rússia na sua guerra de agressão à Ucrânia (…) e, no Brasil, não compreende que o País é, sim, parte do Ocidente, com suas marcas próprias e singulares” (grifo meu). É isso, ele não poderia ter terminado o artigo de outra forma! É digno de pena ver a autoimagem de alguém que se enxerga como membro de um clube que não lhe quer como participante. Quanto ao Hamas e à Rússia, não vou gastar meu verbo destrinchando uma série de coisas, como o fato de que a criação do Hamas foi financiada pelo estado sionista (como mostrou reportagem do Washington Post) – e que só existe porque o sionismo não cumpriu sua parte no Acordo de Oslo, muito pelo contrário, expandiu a colonização dos territórios palestinos (no mais, que insensibilidade brutal ter publicado esse texto cretino um dia depois das imagens dos sionistas metralhando famintos em Gaza) – ou ainda que o Ocidente não cumpriu sua parte estabelecida no Ato Fundador OTAN-Rússia, de 1997, bem como o fato de que o Ocidente tem como prática invasões de países soberanos. Concluindo, quem não leu o artigo, minha recomendação é não ler. Acredito que a leitora ou o leitor vai se dividir entre dois sentimentos: pena ou indignação!

Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

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