Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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Nem tudo é o que parece: um comentário sobre “Aprendizado na pandemia”, por Jorge Alexandre Neves e Dalson Figueiredo

A dificuldade em obter dados de qualidade para comparar escolas públicas e privadas é um desafio para análises econômicas e educacionais

Foto: Joel Rodrigues/Agência Brasília

do Cadernos Gestão Pública e Cidadania – FGV

Nem tudo é o que parece: um comentário sobre “Aprendizado na pandemia”

por Jorge Alexandre Neves e Dalson Figueiredo

Os resultados recentes do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) para o Brasil apresentaram um panorama intrigante para análise de políticas públicas. Contrariando as previsões, as estimativas indicam um declínio mais acentuado no desempenho escolar dos adolescentes de estratos socioeconômicos mais elevados em comparação com seus pares de estratos inferiores entre 2018 e 2022. Esse fenômeno contradiz a expectativa teórica de que as condições mais favoráveis – pais com maior escolaridade, melhor infraestrutura domiciliar incluindo acesso à internet e espaços dedicados ao estudo, além do retorno mais precoce às aulas presenciais em escolas privadas – levariam a um melhor desempenho educacional entre os jovens de famílias mais abastadas. Esse resultado contra intuitivo oferece um campo fértil para investigações sobre os impactos sociais e econômicos da pandemia na educação.

No artigo “Aprendizado na pandemia”, publicado em 26 de janeiro pelo Valor Econômico, Naercio Menezes Filho propôs uma hipótese intrigante para explicar os resultados do desempenho estudantil brasileiro no PISA durante a pandemia. Segundo Menezes Filho, “(…) para os alunos brasileiros mais pobres, o fechamento das escolas não teria impacto significativo (…) e a escola brasileira só parece fazer diferença para os alunos de famílias mais privilegiadas”. Nosso principal objetivo aqui é avaliar criticamente essa hipótese, considerando tanto a falta de sustentação teórica quanto a ausência de evidência empírica concreta. Argumentamos que tal hipótese, apesar de apresentada como um fato pelo autor, carece de fundamentação robusta em termos de teoria econômica e dados empíricos, desafiando assim sua plausibilidade no contexto educacional e socioeconômico brasileiro.

A assertiva de Menezes Filho, ao que parece, enraíza-se na percepção amplamente disseminada, porém questionável, sobre a superioridade intrínseca das escolas privadas em relação às públicas. À primeira vista, e numa análise superficial, as escolas particulares podem, de fato, parecer superiores, em média. No entanto, quando submetemos essa proposição a um escrutínio mais rigoroso, a realidade se mostra mais complexa. É aqui que reside o encanto e a força da análise científica: a capacidade de desvendar fenômenos que podem ser contraintuitivos.

Esse ponto foi habilmente abordado por José Francisco Soares e Renato Júdice de Andrade em artigo publicado na revista “Ensaio: avaliação e políticas públicas em educação“. Os autores adentraram na questão com uma abordagem direta e criteriosa, visando desmistificar essa “lenda urbana” e oferecer uma perspectiva mais alicerçada em evidências. A contribuição de Soares e Andrade é vital para entendermos não apenas a real eficácia das escolas privadas em relação às públicas, mas também para apreciarmos a complexidade do cenário educacional brasileiro, que desafia simplificações e generalizações.

“A média do desempenho cognitivo dos alunos de uma dada escola não pode ser tomada como uma medida de sua qualidade, já que escolas diferentes têm alunos com perfis socioeconômicos muito diferentes e é amplamente conhecida a influência do nível socioeconômico no desempenho dos alunos da educação básica. Diante disso, tomar a medida de desempenho como medida de qualidade é favorecer de forma inaceitável as escolas particulares que atendem a alunos socioeconomicamente mais favorecidos” (SOARES e ANDRADE, 2006: p. 118).

A dificuldade em obter dados de qualidade para comparar escolas públicas e privadas é um desafio significativo para análises econômicas e educacionais.  De forma pioneira no Brasil, Soares e Júdice (2006) conseguiram fazer esta comparação com uma amostra de estudantes de escolas de Belo Horizonte. Vejamos os resultados:

“como o conjunto dos efeitos de todas as escolas têm média zero, fica claro que as escolas particulares tipicamente têm mais efeitos negativos do que positivos. Isto quer dizer que, o desempenho observado nas escolas particulares é devido mais ao NSE de seus alunos e não às suas práticas e políticas internas” (SOARES e ANDRADE, 2006: p. 120).

A diferença de desempenho entre estudantes de escolas privadas e públicas se deve, fundamentalmente, ao nível socioeconômico e não às características de qualidade supostamente superiores das escolas privadas. Por que, então, famílias pagam caro para que seus filhos estudem em estabelecimentos particulares? Provavelmente, por três razões: a) o chamado “efeito de pares”, ou seja, ao matricularem seus filhos em escolas com estudantes de maior nível socioeconômico, os pais esperam – com razão – que eles tenham melhor desempenho (o que ocorre, de fato, justamente por serem estudantes de famílias com maiores recursos pecuniários e não-pecuniários para investir em seus filhos); b) a busca por inserção dos filhos em redes sociais mais “sofisticadas”, que são aquelas de pessoas de maior nível socioeconômico e c) porque estão em busca de “distinção” para sua prole, como diria Pierre Bourdieu, o falecido sociólogo francês.

É verdade que os achados de  Soares e Júdice (2006) se baseiam em informações de duas décadas atrás para uma amostra específica – apenas uma cidade. Assim, decidimos fundamentar nossa conclusão de que a hipótese proposta por Naercio Menezes Filho é pouco plausível a partir de uma análise dos dados do PISA de 2018. Na ausência do experimento natural, para usar o termo empregado pelo autor, será possível observar o desempenho da amostra de estudantes brasileiros antes de qualquer efeito da pandemia. Implementamos nossa análise a partir da ferramenta de exploração de dados do próprio PISA para buscar medidas de escores médios da amostra brasileira em comparação aos resultados médios da amostra dos países da OCDE. Utilizamos a escolaridade da mãe, que é a variável mais importante para determinar o desempenho educacional de crianças e adolescentes, além de ser uma proxy do nível socioeconômico.

Os gráficos abaixo mostram a relação entre a escolaridade das mães, medida  a partir da escala ISCED, que vai de não ter qualquer escolaridade até ter nível superior completo, e a vantagem relativa (percentual) das médias gerais das três disciplinas (linguagens, matemática e ciências).

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Quanto maior a escolaridade da mãe, maior é a diferença relativa das médias da amostra da OCDE em comparação com as médias da amostra brasileira. No caso da área de linguagem, o ajuste dos dados ao modelo é fortíssimo (R2 = 0,95), como pode ser visto abaixo. Ora, o que devemos concluir destes resultados? Anote aí: em termos relativos, as escolas que fazem um melhor trabalho são justamente aquelas que atendem filhos de mães com menor escolaridade, ou seja, aqueles estudantes mais pobres. Isso é exatamente o inverso da explicação proposta por Naercio Menezes Filho. Obviamente, seria arriscado afirmar que, no Brasil, as escolas dos pobres são melhores do que as escolas dos ricos. Todavia, é mais do que razoável concluir que a explicação proposta por Menezes Filho de que “a escola brasileira só parece fazer diferença para os alunos de famílias mais privilegiadas” não conta com qualquer suporte da realidade. Vejamos os dados desagregados por disciplina.

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A essa altura a leitora ou o leitor deve estar se perguntando, então, o que poderia explicar os resultados surpreendentes do Brasil no PISA 2022? Abaixo delineamos uma conjectura que consideramos mais plausível.

Definitivamente, a realidade é muito mais complexa do que costumamos imaginar. Essa questão que colocamos acima deixou muitos analistas intrigados. Ora, nós esperávamos que ao ficarem em casa com pais mais escolarizados, estudantes de maior nível socioeconômico teriam uma queda de desempenho muito menor do que estudantes de famílias mais pobres, que têm pais com menor nível educacional. Mas, é bom relembrar: o resultado observado a partir do exame padronizado de larga escala foi exatamente o contrário.

Após bastante reflexão, acreditamos que o resultado surpreendente se deve a outros dois fatores: a) estudantes mais ricos passaram a ter muito mais acesso a mídias digitais, a partir da pandemia (algo que, até baseado na experiência que um de nós tem de ser pai de um menino de quase 11 anos de idade, nos faz acreditar que após a pandemia, nunca mais conseguimos fazer nossos filhos voltarem a um contato mais parcimonioso com as mídias digitais), do que estudantes de famílias mais pobres, tendo, portanto, aqueles passado a ter costumes que dificultam o desenvolvimento cognitivo. Há uma ampla literatura científica que mostra o impacto negativo do excesso de exposição a novas mídias sobre o desenvolvimento cognitivo, inclusive sobre a saúde mental e níveis de ansiedade; b) num país onde as escolas privadas cobram caro, mas, em geral, oferecem ensino em tempo parcial, parte significativa do investimento na educação dos filhos que as famílias de maior nível socioeconômico fazem se dá no contraturno, algo que sofreu uma queda muito forte durante a pandemia, prejudicando, assim, o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem de novos conteúdos.

Nossa análise sugere que os fatores identificados anteriormente fornecem uma hipótese mais robusta e alinhada com os dados observados do que a explicação oferecida por Menezes Filho. Essa conclusão é importante para a compreensão da educação básica no Brasil, por várias razões. Em primeiro lugar, ela indica que os desafios enfrentados no setor educacional não são exclusivos de instituições públicas ou privadas, mas permeiam ambos os setores. Em segundo lugar, ressalta a necessidade de avaliações baseadas em evidências rigorosas antes de se inferir sobre a superioridade da eficácia ou eficiência das escolas privadas em relação às públicas. A disparidade no desempenho educacional entre estudantes de diferentes estratos socioeconômicos não pode ser atribuída simplesmente à suposta inferioridade das escolas públicas, mas deve ser entendida no contexto da escassez de recursos nas famílias de menor renda. Portanto, aprimorar a educação básica no Brasil requer uma abordagem integrada que combine políticas educacionais com políticas sociais, visando um desenvolvimento equitativo e inclusivo.

Sobre os autores:

Jorge Alexandre Neves é Professor titular do departamento de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ph.D. pela universidade de Wisconsin-Madison/EUA, pesquisador PQ-2 do CNPq, ex-diretor da FAFICH-UFMG.

Dalson Figueiredo é Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences a visiting scholar na Universidade de Oxford – 2021/2022.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

1 Comentário

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  1. Muito bom o artigo. Sobre o tema, há um indicador que pode revelar o fator de agregação de valor ao ensino: IDD (indicador de diferença de desempenho entre alunos ingressantes e concluintes no Ensino Superior). Dê uma olhada no IDD das IFES e das Privadas… ele revela que o patamar de entrada é condição determinante. Segundo, os exames de larga escala são suspeitos para avaliar desempenho de escola, como afirma alguém que esteve no parto dessa metodologiam, Diane Ravitch. Em seu livro, ela explica as razões dessa suspeita. Finalmente, merece reconhecimento que sociólogos e economistas analisem a educação formal… Porém, me pergunto: como reagiriam esses economistas, se Saviani ou outro especialista em educação se metesse a analisar o mercado? Sem querer defender o direito a feudos nas ciências, afinal Feyerabend tem razão ao falar de anarquismo epistemológico, parece-me que valeria a pena dar espaço para especialistas da área.

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