Jagunços espancam indígenas no sul da Bahia

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Barbárie no sul da Bahia: Jagunços incendeiam 28 casas e espancam indígenas

Por Patrícia Bonilha,

de Brasília

Mais um episódio de extrema violência envolvendo a disputa de terras ocupadas pelo povo Tupinambá ocorreu na Bahia. Desta vez, a cena dos crimes foi o município de Itapebi, localizado no extremo sul do estado, há cerca de 600 km da capital Salvador. Na última sexta-feira (7 de março), por volta das 9h, dezoito jagunços – dentre eles dois ex-policiais – fortemente armados circularam a aldeia Encanto da Patioba, renderam três homens, duas mulheres e duas crianças, espancaram dois idosos e um casal, mataram animais domésticos e de criação, roubaram bens, ameaçaram estuprar uma das mulheres e incendiaram todas as 28 casas da aldeia.

“Foi um massacre. Queimaram tudo o que estava dentro das casas: roupa, comida, documentos, tudo. E o que não queimaram, eles roubaram: motosserra, rádio, fogão, celular, motor de farinheira (que gera energia) e um ralador. Mataram cachorro a facão. Atiraram nos perus. Acabaram com nossas galinhas, a gente tinha pra mais de 400 galinhas na comunidade toda. Destruíram nosso canavial. Cataram nossas roças, nossas abóboras. Não sobrou nada”, se indigna o cacique Astério Ferreira do Porto, de 63 anos. Mostrando as marcas da violência deixadas em seu próprio corpo, ele relata que foi jogado no chão e algemado pelos jagunços. Em seguida, apanhou muito, e de todo jeito: paulada, chute, pano de facão, “até de chapéu de couro… também xingaram muito a gente. Tudo pra gente entregar onde estavam as outras lideranças que eles estavam procurando”.

Ele conta que os jagunços chegaram de uma vez. A maior parte da comunidade conseguiu fugir para o mato porque foram avisados minutos antes que eles estavam “descendo pra aldeia”. “Seu” Astério, “seu” Preto, de 73 anos, Robinho, “dona” Eliete, 45 anos, e uma mulher, mãe de duas crianças (uma de cinco anos e outra de sete meses) não conseguiram correr a tempo.

Continuam o relato, afirmando que com armas apontadas para as suas cabeças, os jagunços portavam pistola 765, espingardas 44 e 12, rifle calibre 38, pistola 380, facão na cintura e até dois fuzis “que talvez sejam R15”. “Eram 18 jagunços e não tinha nenhum desarmado”, afirma Astério, ainda sentindo as fortes dores na perna esquerda, no dorso e na região abdominal.

Também com vários hematomas no corpo, principalmente nas costas e braços, Eliete de Jesus Queiroz relata que levou um tapa tão forte no ouvido esquerdo que quatro dias depois do atentado ainda sente tonturas e muita dor. “Eles chegaram a ameaçar que iam estuprar nós. Nossa sorte é que, depois que viram as crianças, eles pararam de bater em nós duas. Mas as crianças ficaram traumatizadas e logo depois o menino vomitou bastante”, relata. Seu Preto, considerado um ancião, e Robinho também foram vítimas da violência dos jagunços e pistoleiros.

Após usarem 25 litros de gasolina para incendiarem as 28 casas da Patioba, destruindo completamente a aldeia, os jagunços colocaram os indígenas à força dentro de seus carros e os dois ex-policiais os levaram para a delegacia de Itapebi porque – inacreditavelmente – queriam denunciá-los pelo porte de uma espingarda velha usada para caçar tatu, paca, gavião, “mas que nem prestar muito tava prestando mais, porque tava sem espoleta”, conta Astério.

Como o delegado não estava, foram levados para o município de Eunápolis. Mas o delegado local não quis recebê-los, pois se tratava de um fato da jurisdição de Itapebi, para onde voltaram e registraram um boletim de ocorrência, onde os indígenas aproveitaram e relataram toda a barbárie a que haviam sido submetidos. No entanto, absolutamente nada aconteceu com os jagunços. Como mencionado nesta matéria, dois deles são ex-policiais. Somente por volta das 19h, os Tupinambá foram liberados – dos jagunços e pela delegacia.

A Polícia Federal, de Porto Seguro, e a Fundação Nacional do Índio (Funai) foram informadas sobre as extremas violências e violações a que foram submetidos os Tupinambá, mas até o fechamento desta matéria ainda não tinham ido à aldeia da Patioba, segundo os indígenas.

Na segunda-feira (10), Eliete e Astério, após apresentarem denúncia no Ministério Público Federal (MPF), fizeram exame de corpo delito no Instituto Médico Legal (IML) de Brasília. Na terça, após atendimento médico em hospitais, fizeram a denúncia ao Ministério da Justiça e na manhã desta quarta-feira (12) denunciam a barbárie a que foram submetidos ao Procurador Geral da República (PGR), Rodrigo Janot. À tarde fazem o mesmo na Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Não se trata de uma mera coincidência

Cabe aqui ressaltar que a reunião na PGR havia sido agendada antes deste atentado ter acontecido na aldeia Patioba. Solicitada por organizações indígenas e indigenistas, a proposta é justamente denunciar a crescente violência contra os povos indígenas em várias regiões do Brasil e associá-la a políticos da bancada ruralista que vêm incitando esta violência. Em fevereiro, estas organizações entraram com uma representação na PGR contra os deputados federais Luiz Carlos Heinze (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS) por terem feito afirmações, gravadas em vídeo e veiculadas amplamente nas redes sociais, carregadas de preconceitos e incentivos à violência como solução para os conflitos agrários com os indígenas.

Inimigos mais que conhecidos

“O que a gente percebe é que falta vontade mesmo do governo e da polícia de fazer justiça. Aqui, não precisa investigar nada. A gente sabe quem foi que fez isso com o nosso povo. Eles não se escondem. O próprio José Gastão falou pra gente a lista das pessoas que eles querem matar”, afirma José Moreira Campos, o Juquira, uma das lideranças indígenas ameaçadas de morte, que não estava na Patioba quando os jagunços chegaram.

De acordo com os depoimentos feitos pelos Tupinambá ao MPF e na PGR, os dois ex-policiais, que também são fazendeiros, Gilmar (cujo verdadeiro nome seria Teodomiro) e José Maciel estavam entre os jagunços e, inclusive, foram os que os levaram para as delegacias. Outros responsáveis pela barbárie apontados pelos indígenas aos órgãos federais são o fazendeiro Peba, Juarez da Silva Oliveira, ex vereador e candidato derrotado do PP à prefeitura de Itapebi na última eleição, e o gerente da fazenda Lombardia, José Gastão. Após a invasão e destruição da aldeia, de acordo com os Tupinambá, a grande maioria dos jagunços se encaminhou para a fazenda Condomínio. “Nós vimos eles entrando na fazenda”, afirma Astério.

Além de Juquira e Astério, outros cinco Tupinambá da aldeia Patioba estão ameaçados de morte: o cacique Roberto, o vice cacique Carlos, o ex cacique Jovenal, a liderança Adauto e Jefinho, filho de uma liderança. Juquira conta que eles precisam se retirar da aldeia de tempos em tempos e vivem sempre preocupados com a possibilidade de que as promessas de morte sejam cumpridas. “Eles querem nos matar porque sabem que a gente não vai sair da terra que é nossa. Meu bisavô morreu aqui, meu avô morreu aqui, meu tio morreu aqui. Os parentes da Eliete morreram aqui. Só que a gente não tinha documento da terra. Índio não tinha mesmo documento da terra, mas nós não vamos negociar a nossa terra”, garante Astério.

A disputa pela terra

Segundo Astério, Juquira e Eliete, o governo federal e a Funai têm uma grande responsabilidade sobre as violências e violações contra os Tupinambá porque não fazem nada em relação à área reivindicada pelo povo como tradicional. “A Funai foi lá em 2005, 2006. Mas é só promessa. Daí, os fazendeiros vão se apossando de terra que é terra indígena e do Estado, vão nos ameaçando e nos matando. O ancião Salomão foi assassinado na Aldeia Patioba há cinco anos, e isso fez com que muitos de nós ficassem com medo e desistissem da terra”, rememora Astério.

Os três moravam desde 2002 na aldeia Vereme, mas tiveram que deixar a área por conta de uma reintegração de posse realizada em 2012. “Chegaram a usar até os sem terra contra a gente. Mas depois o fazendeiro da São Brás, mesmo dono da fazenda Lombardia, entrou com liminar contra eles também”, conta Juquira.

Após as 35 famílias saírem escoltadas da área pela Polícia Militar e pela Funai, parte da aldeia se dispersou. Apenas alguns foram para a aldeia Patioba, localizada há seis km de distância. A família de Astério e mais duas ficaram por seis meses dentro da sede da Funai e, posteriormente, foram encaminhadas pela própria Funai também para Patioba.

De acordo com Astério, o dono das fazendas São Brás e Lombardia se considera dono da área de três alqueires que os Tupinambá ocupam – tanto na extinta aldeia Vereme como na recém destruída Encanto da Patioba, que contava com 31 famílias. “Esta terra está, inclusive, penhorada há mais de 30 anos. Acho que pelo Banco do Brasil”, afirma o cacique.

Método antigo: a violência

O aumento da violência contra os povos indígenas na Bahia é evidente e remete aos tempos da ditadura e ao auge do coronelismo no estado, ocorrido nas décadas de 1970 e 1980.

Segundo os Tupinambá de Olivença, que moram na região de Buerarema e Ilhéus, desde o início deste ano, vários indígenas foram mortos. Três jovens morreram depois da implantação de uma base do Exército dentro da área já identificada como território tradicionalmente indígena em fevereiro. “Nós não queremos o Exército em nossa terra. Eles nos tratam como bandidos. O que precisa ser feito é a demarcação de nossa terra para que possamos viver em paz”, afirmou ontem a cacique Valdelice, da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, em reunião no Ministério da Justiça.

Na área da aldeia Patioba, o mais recente ataque havia ocorrido apenas há cerca de 15 dias, quando o carro de um dos indígenas deixado no porto em Itapebi foi incendiado.

Sem casa, suas roças e animais, móveis, roupas, comida e, muitos sem documento, desde o dia 7 de março, os parentes de “Seu” Astério, “dona” Eliete e Juquira dispersaram-se em Eunápolis. “Somos indígenas, mas agora estamos como indigentes”, concluiu com tristeza o cacique.

Apesar de viverem no estado onde os colonizadores portugueses chegaram há 514 anos e terem seu histórico, modo de vida e incontáveis processos de resistência registrados em extensa bibliografia, o povo Tupinambá não tem ainda terras homologadas na Bahia. “Até quando será assim?”, parecia a pergunta nos olhos pequenos e sofridos de “seu” Astério.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

5 Comentários

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  1. Coloquem na conta do pessoal

    Coloquem na conta do pessoal que estimulou a violência até não mais poder. O resultado da cultura do ódio é esse; quero ver o pessoal vir aqui, AGORA, explicar que o uso violência chama atenção para a causlá blá blá blá… E, aí? Como é que fica agora, a defesa da lei do mais forte? Quero lembrar que os que defenderam o tempo todo esse tipo de prática são, exatamente, os que vão, agora, tentar explicar que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa… O ódio dos coxinhas é pinto perto dos interesses de quem pode valer-se dele para conquistar seus objetivos. Quem introduziu e batalhou com afinco, teantando até teorizar sobre o assunto foram os mesmos que, dentro das Universidades brasileiras, posam de defensores da causa indígena. Vão dizer, ah mas era só a gente que podia quebrar tudo pq a gente é bem nascido e depois consegue se livrar. Pois tá aí; abriram a porteira. Que não sejam levianos de culpar governos e partidos pelo que vcs mesmos fizeram. Uma barbaridade dessas e quase nenhum comentário. Muito triste. Os Black Blocs do campo, acordaram sacudidos pelo gigante. Era uma questão de tempo. 

    1. Cristiana,

      Quem estimulou (e estimula) a violência não são os defensores das causas indígenas, que infelizmente tem pouquíssima gente de seu lado. Note que é o CIMI quem denuncia isso aí, e mais que denuncia: é vítima de todo tipo de violência física ou de ataques virtuais, como esses que se tornam maioria até num blogue progressista como este. Não é à-toa que tantos colegas tem abandonado este barco aqui. No mínimo, é lamentável que alguém que como eu defende o governo Dilma e o PT não reconheça o horror que é sua aproximação com o que há de pior na direita brasileira: os latifundiários e agronegociantes. E o abandono dos desvalidos que deveria defender.

      1. Com todo o respeito Cristiana

        Com todo o respeito Cristiana , vc acredita que a violência contra os povos indígenas começou ontem ? Esse “pessoal da cultura do ódio” , nesse caso , seria quem … black blocs talvez ?!

        A disputa pela terra entra quando e onde nesse conflito ? Latifundiários & poder político eterno são miragens ?

        Acreditar na “cordialidade” da formação da nação brasileira é um desrespeito para com suas vítimas e um desserviço para a superação dessa histórica violência.

        Realmente Jair Fonseca , tá difícil esse barco …

  2. É que dá tanta clivagem na

    É que dá tanta clivagem na sociedade, estimulada pelos bem pensantes. Temos, agora, o povo negro, o povo indígena, o povo branco dos zói azul. O povo negro querendo com suas cotas. O povo indígena, suas terras. O povo branco, já com tudo, e  sendo o culpado eterno dos demais não terem nada.  Antes, tínhamos orgulho de nossa miscegenação, responsável por tudo aqui acontecer de maneira mais suavizada. Agora, apesar de ainda mestiços, somos uma nação profundamente dividida.

    Parece-me que esse é um projeto bem pensado, maquivaleicamente pensado, para obter e permanecer no poder. Dividir, para conquistar. Dividir, formar grupos de militantes (pelas cotas, pelos LGBT, pelos sem-terra, pelos sem-teto, pelos sem-transporte) e cada um, a seu modo e discurso, dizer que fora da luta e do partido que possa lhe abrigar, não há salvaçao. Triste, tudo isso…

  3. Leis de papel vs Armas de

    Leis de papel vs Armas de fogo.

     

    Aqu8i no Brasil acreditam que podem simplesmente decretar uma lei que proíba os ruralistas de mandarem seus jagunçoa atrás dos povos oprimidos e … puf! Os jagunços somem no ar, e tudo fica resolvido.

    Vou contar uma história sobre povos indígenas que é semelhante a esta mas que teve um final feliz:

    Quando o colonizador espanhol Pizarro chegou ao Peru, os Incas que lá viviam já esperavam a chegada dela. Eles já tinham ouvido da conquista do Mexico pelos espanhóis e antes que chegassem até o Reino deles construíram cidades refúgios escondidas nas montanhas dos Andes, uma destas cidades era Macchu Picchu.

    O Imperador Inca e alguns de seus auxiliares ficaram entretendo os espanhóis enquanto seu povo fugia para Macchu Picchu, levando as mulheres e as crianças junto. Deixaram para trás cidades apinhadas de ouro, para que os colonizadores perdessem tempo saqueando e o povo Inca tivesse tempo para fugir.

    As ordens do Imperador Inca para todo o povo era de não lutar, pois os inimigos tinham armas desconhecidas contra as quais nada poderiam. Além do mais ele sabia que por mais que os europeus perdessem, voltariam sempre de novo, com mais navios e maior número de guerreiros, pois como ele mesmo dizia os inimigos eram “criaturas más entregues às trevas”.

    A maior parte do povo Inca obedeceu o Imperador e se salvou, Macchu Picchu era tão bem escondida que levou quatrocentos anos para acharem, e os poucos que quiseram lutar contra os espanhóis, desobedecendo a ordem Imperial tiveram um fim trágico, morreram ou foram escravizados.

    O Imperador Inca era muito Sábio, e governou um dos Impérios mais bem organizados que já existiram na Terra. Ele sabia que contra inimigos mais bem armados, só a estratégia e planejamento exímios salvam.

     

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