“A bossa nova já deu a virada na mitologia amorosa nacional”, Caetano Veloso

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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De O Globo
 
‘Choro tua tristeza’ e a virada na canção popular do Brasil
 
Por Caetano Veloso
 
Vivo cantando “Chora tua tristeza”, desde que aprendi no primeiro disco de Carlos Lyra. Gil é quem destacava Lyra e procurava tocar todas as suas composições. Esse samba do qual nunca me afastei não era composição de Lyra mas de Oscar Castro Neves. Oscar o compôs aos 16 ou 17 anos, em parceria com Luvercy Fiorini. A descida para o relativo menor, liderada pela melodia que explicitava a terça da dominante desse relativo, lhe dava um ar de composição romântica; as palavras de Fiorini reafirmavam essa tendência. A atração pela grande canção americana não se traduziu, na bossa nova, apenas em elegância formal, mas também em admitir que a poesia das canções pudesse exibir algum otimismo: diferentemente das canções americanas, em que as histórias de amor vitorioso são mais frequentes do que as de amor fracassado, os sambas, as valsas, as toadas, os sambas-canções brasileiros (assim como os boleros mexicanos e cubanos e os tangos argentinos) pareciam nascer da certeza de que uma cantiga só chegaria ao coração do ouvinte se falasse de traição, rompimento e separação. Refazendo o gesto de “Chega de saudade”, “Chora tua tristeza” anunciava que a canção popular no Brasil iria virar essa mesa. Sambas quanto a isso revolucionários como “O barquinho” não surgiriam sem a comissão de frente de “Brigas nunca mais” e seus dois antecessores. Acho que essa virada nas letras teve e tem consequências de toda ordem em nossa vida. Sua dimensão política nem tão cedo será devidamente apreciada. É imensa.
 
Canto tão em casa o samba de Castro Neves que só o fui gravar por causa de uma carta que recebi de Maddalena, irmã de Federico, me instando a fazer uma apresentação em Rimini para a Fudação Fellini.
Ela conhecia a música que fiz sobre Giulietta Masina e tinha lido entrevistas minhas a jornais italianos em que falo sobre os filmes do seu irmão e da sua cunhada. Eu estava nos Estados Unidos quando recebi a carta. Desde o primeiro instante pensei em “Chora tua tristeza”. Passando por Los Angeles, liguei para Oscar e pedi que ele me tirasse, por telefone, uma dúvida de harmonia. Oscar me disse que viria até o hotel onde eu estava, “Em quarenta minutos estou aí”. Ele só queria saber se eu não ia sair. Eu ia ficar no hotel. Ele veio e achou que não havia nada propriamente a consertar. Mas pedi para ele tocar depois de mim. E conversamos. Oscar era um sujeito simplesmente maravilhoso. Mesmo em Salvador em 1963 eu não imaginava João Gilberto cantando “Chora tua tristeza”. Era uma coisa muito íntima e minha o gosto por aquela canção. Como com “La strada” ou “Noites de Cabiria”. E da mesma natureza. Um crítico inglês, desses presunçosos que escrevem em revistas de rock, desancou o álbum que saiu do show que fiz para a Fundação Fellini. Ele dizia não haver nada de felliniano no disco e só ouvia a redundante bossa nova de outros discos brasileiros. Era um idiota e estava errado. “Chora tua tristeza” era núcleo de um sentimento que eu reencontrava no cinema felliniano. “Coimbra” e “Coração materno” eram radiografia de Nino Rota. Mas isso são outros quinhentos (leio mil coisas erradas sobre discos e shows meus, mas não respondo ou guardo quase nada; esse artigo do inglês sobre “Omaggio a Federico e Giulietta” eu nunca esqueci, embora não tenha uma cópia comigo). Já a colaboração de João com Oscar no disco do México é coisa que, quando a gente ouve, entende que aquilo fatalmente iria acontecer. 
 
“Astronauta” é prova de que João e Oscar tinham de se encontrar. Entrei nesse assunto todo porque meu amigo Fernando Salem me contou que em sites de letras e cifras “Chora tua tristeza” aparece como se fosse composição minha. Não é. É de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini. De “Marinheiro só” (anônimo tradicional da Bahia) a “Sozinho” (de Peninha), há uma pá de músicas que muita gente pensa que compus, quando só quis cantá-las.
 
“Chora tua tristeza” tem aquela descrição da felicidade no amor que cria um ambiente de responsabilidade. “É tão bonito gostar e querer ficar com alguém”. Manda chorar para que a tristeza fuja, como da cara de Cabiria no final do filme. Mas não é essa a ligação. A ligação é o clima íntimo vivido por quem canta e viu Fellini.
 
Sozinho e só, penso no movimento “Não vai ter Copa” e nas disritmias brasileiras. Olho os relógios de rua que, além das horas, dizem dia, mês, temperatura e penso em quanto se renovam coisas assim nas ruas do Brasil sem que a gente sinta sinal de que essas coisas vão durar. Quando sairemos do mundo de construções que já são ruínas? Bem, a bossa nova já deu a virada na mitologia amorosa nacional. Não consigo crer que esse esforço gigantesco tenha sido em vão.
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. (Tou com tanta vontade de

    (Tou com tanta vontade de comentar Caetano como algum Lobao que nem conheco, mas isso eu tenho que perguntar:  alguem entendeu alguma coisa desse texto?!)

    1. Referências mue caro, referências….

      O artigo – com outros n de Caetano – usa de muitas referências, as quais são preciso ter de memória ou ir atrás.

      Filmes, livros, gravações….

      Se  você não entedeu, comece pescando  as mesmas e releia – com calma –  o artigo.

      Vale a pena

      1. Gratissimo, Edu:  eh que

        Gratissimo, Edu:  eh que post-1979 eu nao tenho referencia cultural brasileira quase nenhuma!  Nunca duvidei do talento literario de Caetano…  embora o unico item dele que eu li -publicado no NYTimes- era purissimo “precious rubbish” porque era “critical quackery” -referencia cultural a dois livro de mesmo nome, dos quais eu so li o primeiro, pikinininho e com um soco pra la de poderoso.

        Desse post eu nao tenho condicao de entender nada.

  2. Concordo que a canção

    Concordo que a canção brasileira pós-seresta deriva da canção americana, formalmente e em seu estofo melódico. Mas isto vem diretamente dentro de um universo onde reinam Dick Farney, Lúcio Alves e Tito Madi. Quando abrange as grandes cantoras, Maísa e Elisete, há um puxão para outro tipo de evolução filoamericana, de Dolores Duran e Antonio Maria, que opera uma transição melódica onde as letras são o oposto das letras otimistas e saudáveis das canções americanas. É naquele primeiro trio que dá a verdadeira transição. Para quem considera que eles eram demasiadamente americanos, há a surpresa de puxar do fundo da cultura maravilhas como “Eu vi, a água do rio correr, canoa do negro passar…” e outras semelhantes, nada mais brasileiro. A bossa nova é o achado melódico definitivo que vem da batida do João ao violão, e seu desdobramento em conjuntos de alta qualiddade musical. Mas já é completamente brasileira, mesmo quando traz elementos bem americanos, porque os traz sobre uma estrutura já definida e poderosa que é brasileira.

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